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Ouvia misturada a chorumela de Ditinha. O coice pegou de resvalo e ofendeu pouco, só um roxeado na canela fina, foi bem pouca dor, o tanto de servir pra aprender a obedecer e ficar longe de animal coiceiro. Resmungou o pai abrindo o baú atrás do fumo.
A menina de dentro da camarinha chorava miúdo, puxando, vez em quando, um suspiro profundo. Foi quietando até adormecer nos braços da mãe, segurando minhas mãos.
Sentia tudo misturado... fiz o caminho do Uauá todo com a menina nos braços doendo, apertando mais tristeza.
O estandarte era que primeiro puxava o povo em procissão, cada um levava sua imagem e sua gente, entoavam um canto de louvor a Nossa Senhora:
Oh, Senhora Mãe de Deus
Nas estradas nos levai
Para o bem e seu valor
Nas estradas nos levai
Todos nós em seu louvor
Vinha com a menina no colo acompanhando a penitência quando a fuzilaria começou. Os soldados atiravam em qualquer um, ignorando a fé desarmada, confundindo imagens num alvoroço delirante. A reação transformou a marcha compassada e devota em pura ferocidade. Vi muitos homens e mulheres atirarem-se na frente das balas, agarrarem-se às lâminas das baionetas e lutarem com chuços e pequenas facas, corpo a corpo gritando, “que a proteção nos proteja”. Os soldados fugiram diante da reação deixando estremeço, armas, fardamentos e o Uauá com as casas abertas e abandonadas, corpos de feridos e muitos mortos. Ali restou também um começo de guerra.
Com a menina ainda nos braços, desacreditando no que via, assisti à dor pelos mortos romper o ar naquele quase silêncio... os feridos sendo tratados com orações. Dali se esvaía a vida de paz e trabalho, no lugar de seus santos e cantos agora o que carregavam era mantimentos, armas e munições e a certeza do canto de morte matada.
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Acordei todo sujo de pó e estradas. Era ela quem batia, trouxera-me uma comida feita especialmente e uma garrafa de vinho tinto. No descomposto que estava fiquei tentando uma formalidade qualquer. Desnecessário, parecia familiarizada com a casa; foi para a cozinha abrindo portas e gavetas, preparando a mesa, pedindo que me lavasse logo; uma intimidade posta, que eu não lembrava onde começara.
Para mim as horas passavam como um grande mistério e não sei quantas durou aquele jantar. Sei que havia um encantamento nos gestos, nos nossos olhares; sei que conversamos durante muitas garrafas que bebi, enquanto ela bebericava um único copo e me contava coisas da vida, da família, do namorado, do curso que fazia na universidade, de como gostava de crianças; só que não tenho certeza se me contou tudo aquilo naquela noite, talvez tenha sido no decorrer de muitos dias, porque também misturava o tempo enquanto percebia Anabel. Falava do meu trabalho de uma maneira tão bonita e me construía de um tamanho que desconfortava e envaidecia.
Não me lembro nem de quando foi que ela começou a cuidar de tudo no meu cotidiano... quando dispensou a diarista, quando começou a vender trabalhos guardados e quase esquecidos, pinturas antigas e algumas experimentações. Não sei como foi esse consentimento. Só lembrava de esperá-la quando acordava e buscava alguma lógica para o que estava acontecendo comigo... aquela sensação estranha que tirava a vida da ordem natural e me punha frente a frente com aquele trabalho denso e triste.
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Acavalado era o jeito, uma casta de animais deprimindo o olhar que a feira punha nos muitos passando. Gaiola de passarim na custódia de gente grande e do menino derriando o andar. A farinha do curvo da mão pra boca cortava a ardência da caiçuma tomada de só vez. Bebida e bravata juntavam o ponto e davam rumo ao cano da arma, hora do patrão da tropa embiocar. O chumbo varreu o ar, destroço cresceu num largo, finou menino e passarim no meio dos atirados.
Não sei quantas vezes vi aquela cena se repetir na minha frente. A feira se enchia das mesmas pessoas, a mesma tropa do Barão passava ostentando a enormidade do viço, a gaiola, o menino acompanhado do pai, o punhado de farinha, os desafetos, o risco da morte triscando lento até desenhar sua valia entambocando o lugar. Fazia um silêncio e os instantes vinham para trás, quando o pai tomava o menino nos braços.
De repente, numa das vezes, um cantador esmoléu veio pelo canto da rua sendo conduzido pelo menino morto com sua cantoria, largando o primitivo do demônio que desabonitava o mundo:
ternantonte seu menino
tirinete sor Diabo
sestro das parte quente
sabugando nas metade
pelos meio riscador
e o cão nos couros
ridimunho do penoso
e o cão nos couros
rabiçaca da verdade
e o cão nos couros
pagando nas alvissas
e o cão nos couros
do morituro na laçada
e o cão nos couros
trocando vida por nada
ternantonte seu menino
tirinete sor Diabo
sestro das parte quente
sabugando nas metade
jura de peia
casa de cacimba fechada
jura de peia
luta de mato
jura de peia
nos arrudeios
jura de peia
cabueta remedado
jura de peia
diabruro
coiteiro...
eita erro!
jura de peia
embeiça a esbrega
e o cão nos couros
cumprissaio, enfieira
estufando o entojo
e o cão nos couros
fasta medonho
jura de peia
fouveiro ingiado
jura de peia
nascituro de pó
jura de peia
cão do sor Diabo
jura de peia
pro Deus dum só
cagando dobrado
- Ponha achega que o avaro é pecado - gritou de dentro da cantoria estendendo o coité quase tocando meu rosto. Um bafo quente e podre me deu nojo; o menino segurava no braço do cantador com a mão esquerda enquanto com a direita aninhava o passarim morto. Pela reixa da janela de uma das casas, uma criança com papeira persignava, repetidas vezes, como estivesse vendo o próprio cão. Um estalo forte num outro fraco e morno findou e pôs o frio no meu corpo.
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Os gravatás se punham no seco do leito pedregoso da grota; decerto algum dia um rio ajudando acaudalar o Vaza-barris. O lugar tivera abundância de sustentar muito gado, hoje a estiagem lavrava seu jeito. A sequidão semeava a aflição em cada animal adubado com o cheiro da morte. O sol dava nas pedras tremeluzindo as vistas e o vaqueiro sossegava o aguilhão temendo derrubar a rês e plantar mais uma perda.
Olhava as cumeadas como se evocasse chuva; jogava na boca seca o punhado de farinha de bró e se dava à sina, fechando o embornal quase vazio; pensando pedir campo pelo mundo e desmanchar o ano de fraca partilha procurando as reses desaparecidas; penado com a doença da fome rondando a vida na caatinga.
De longe, sentia os pensamentos do vaqueiro Mariano, desamparado e cabisbaixo, tocar as idéias e enxergar a esperança. Nem ele sabia que procurava o Belo Monte.
Lá, quando chegou com suas três cabeças de gado, os dois bodes, o jumento, o cavalo misturador, a carabina chuchu, a mulher e os cinco filhos, viu as roças na beira do rio, os animais em quantidade que nunca vira, no cuidado de todos, pequenos e grandes, todos por todos. Na regra, quem quisesse rezar, rezava... e o trabalho se punha na vontade do melhor fazer. Um pequeno roçado, o lote de cabras, o farto num simples de viver, a escola, as rezas diárias e o respeito de todos tirando o mais rude da poeira do gibão. Ali plantou e entregou sua vontade.
MQ
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