segunda-feira, 31 de agosto de 2009
GESTOS DE CADA LUGAR
continuação...
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TELELÉM
Marco Antonio Quinan / Marcos Quinan
o jabuti tá na porta / telelém... telelém...
o jabuti quer entrar / telelém... telelém...
se o lugar não comporta
não adianta chamar
o jabuti faz a volta
mora em todo lugar
telelém... telelém... telelém... telelém... telelém
o urubu tá na porta / telelém... telelém...
o urubu quer entrar / telelém... telelém...
se o lugar não comporta...
não adianta gritar
o urubu faz a volta
voa pra outro lugar
telelém... telelém... telelém... telelém... telelém
o peixe-boi tá na porta / telelém... telelém...
o peixe-boi quer entrar / telelém... telelém...
se o lugar não comporta
não adianta esbarrar
o peixe-boi faz a volta
nada pra outro lugar
telelém... telelém... telelém... telelém... telelém
o Brasil tá na porta / telelém, telelém...
o Brasil quer entrar / telelém, telelém...
é o seu povo que importa
não adianta esperar
olha bem a sua volta e põe o Brasil no lugar telelém... telelém... telelém... telelém... telelém
Arranjos: Eudes Fraga e Sávio Deib
Eudes Fraga: voz
Sávio Deib: samples: pandeiros – violão de aço - violoncelos – violinos – violas – flautas - caixas – teclado – triângulo
Em janeiro de 2008 também com meu parceiro Marco Antonio Quinan fizemos especialmente para a dupla, o Telelém. Canção lúdica que permite trocar versos e significar gestos instigando o ouvinte a se perceber e perceber o em volta.
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continua
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MQ
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domingo, 30 de agosto de 2009
VINICIUS DE MORAES
Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello (mendicantes), ou como te chame a sabedoria dos povos e dos homens
Este é o impuro, o inconstante, o trágico, o leproso e possivelmente o morto
Este é o que sacrifica a vida pelo prazer da hora, e se desgraça
Este é o homem da mulher, o homem da carne, o homem da terra
Este é o que peca e não se arrepende, o supliciador e o criador do espasmo
Este é o mágico do desespero, o inquisidor e o sedutor, o poeta triste
Meu são Francisco de Assis! acolhe teu amigo e teu criado
Tenho um mistério a te dizer, mas quem sabe não o ouvirias
Ó dá-me teu sorriso, são Francisco, e me purifica
Eis que converti meu demônio a mim e meu anjo a mim
Porque me sinto covarde de não poder dormir e precisar fechar a porta
És tu um dom da minha miséria e serias o mesmo
E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti
E [ ... ] porque aceito minha depravação e faço a minha queixa sem piedade
Sou digno como o animal nobre que morre em silêncio e sem lágrimas
Mas sou impuro como a terra que recebe a consumação da carne
Meu são Francisco, ouve o meu voto e compreende o meu vazio
Tu és a Palavra – a palavra inexistente – a poesia
Não creio em Deus mas creio em ti – Deus é minha melancolia
Tenho o lar e tenho o mar, e nada tenho
Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão de ser feliz
És a infância não vivida, és a mocidade não merecida
Ninguém o sabe senão tu – nem mesmo eu sei! nesse momento
Porque há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga
Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala
Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu sensível
E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo
E que a transportou na memória em amor e que foi traído
E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura
Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado
Porque fazemos um – eu e a mulher – e não há dois arrependimentos
Ouve o apelo mais íntimo, o que não está nas minhas palavras
O santo, o herói e o poeta – três penitências do mundo
Nunca te verei no céu, nem nunca me verás no inferno
Não me verás no céu porque não há paixão para a serenidade
E dá-me nesse dia de chorar todas as lágrimas contidas
Ó grande santo louco, meu irmão, taumaturgo em minha alma
Just now I have been in a [ ... ] party in the Magdalen’s cloister
(Boa gente inocente [... ] alguma bebida em seus quartos
Nunca criatura criada foi tão pagã como eu, so help me God! (assim Deus me ajude!)
Em vão te direi – ou não? – porque não vens beber meu vinho
São Francisco de Assis! meu irmão, meu único inimigo
Tive uma jetatura: a mulher; uma aventura: a poesia
Mendigo: mendigo o pão de meus pais, o amor de meus amigos
Santo! tenho gana de te dizer: foge de mim! evita o meu contato escuro
Quatro livros escrevi – e sou tão moço! e nada compreendo de mim
E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens viscondes
Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites
sábado, 29 de agosto de 2009
VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
Estalo de galho turiá
Tomei gole da branquinha
Terminado o salgamento
A cambada de pescada
Temperei com bem coentro
No jirau colhi jambu
Trouxe cuia de farinha
Aturiá estalou no fogo
Toda seiva que retinha
Nessa hora noutro gole
Saudei Boaventura
Dei um tanto para Mera
Agradecendo a fartura
Assim sempre que for usar
Fogo de galho aturiá
Não se esqueça de lembrar
Quando ouvir ele estralá
De cada um dos vaqueiros
Que vivem lá no sagrado
Zelando pelo destino
Desse mundo judiado
“Barranco de canarana
Toiças de mururé
Meu coração flutuante
Nunca sabe o que qué”
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MQ
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GESTOS DE CADA LUGAR
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CAIXEIRAS DO MARANHÃO
Marcos Quinan / Juliana Balsalobre
Busca o mastro
Abre a tribuna
Vem tocar... vem tocar... vem...
Quem quiser
Pode rezar
Vem dançar... vem dançar... vem...
Com o som
Das nossas caixas
Convidamos pra louvar
O divino santo rei
Vem dançar... vem cantar... vem...
Derruba o mastro
Chegou a hora
Da tribuna se fechar
Para o ano de deus amém...
As caixeiras vão voltar
Para o ano de deus amém...
As caixeiras vão voltar
Arranjos: Eudes Fraga e Sávio Deib
Eudes Fraga: voz
Sávio Deib: samples: caixas – teclado – triângulo
No fim da primeira viagem, presenteado com um livro e vídeo pela Juliana, intuímos fazer as Caixeiras do Maranhão, baseado na sua vivência com as caixeiras no Maranhão, no que eu já conhecia dessa manifestação e no que li e assisti. Assim nos tornamos parceiros.
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MQ
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sexta-feira, 28 de agosto de 2009
SERTÃO D'ÁGUA - MERINA
continuação...
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Merina
Um cheiro de cravo e canela recendia na noite espalhando sua vontade. Sabia esperar quando queria. Fingia afazeres, preparava a água na bacia com pitadas de cravo e canela, deixava no canto do quarto o dia inteiro, encorpando o cheiro. Esperava a boca da noite pra banhar e arrumava os cabelos vagarosamente até ele chegar, instigando com o cheiro e o calor do corpo as mãos grossas de Sabá, cheias de mistério, capazes de cortar mil achas de lenha no dia e, à noite, fazê-la arder até a madrugada em gozos e enlevo.
Era toda a vida que queria Merina. Sozinhos naquela beira, sem filhos, acostumaram viver isolados na curva daquele braço. Uma vez por ano visitava a madrasta na época do Círio. Uma vez por ano a madrasta vinha com a tia, que gostava de Sabá como fosse filho. Ficavam sempre a semana em receitas e picuinhas e na vontade de Zinhá em ir no Anambé, apesar da febre sempre por lá. Acabava nunca indo.
Merina não se importava mais com a história dele, até a cicatriz que a assustou uma vez passou a fazer parte da beleza que agora via. Descobria a cada dia que passava um mais bonito escondido, seu homem, gostava de falar: - meu homem.
Só achava triste ele não ter o que lembrar, por isso cuidava sempre estar satisfazendo o menor gosto de Sabá. Desde passar óleo de andiroba pelo corpo todo de manhã, antes dele sair pra tirar lenha - evitando os piuns - até levar a cuia de açaí com farinha de tapioca no mato onde estivesse lenhando.
Quando sacava a mandioca, separava uma quarta e tratava pra peneirar o cuí que ele gostava de misturar com mutuã e muita pimenta de cheiro. Às vezes, ele a surpreendia no manival e ali mesmo eles se deitavam numa touça qualquer e o atorá voltava vazio.
Quando Sabá a encontrou na casa da tia, sua madrasta não gostou de vê-la com ele, não sabia quem era, aquela cicatriz o fazia parecer um bandido, não tinha criado a enteada com estudo e prendas para qualquer um, dizia. Mas quando soube ser ele o herói com medalha que a cunhada Zinhá, muitos anos atrás, cuidou e falava tanto na pensão; que recebia soldo da Brigada Militar, mudou de opinião.
Dona Bilinha era uma senhora muito distinta, havia acabado de criar os enteados, viúva e costurando para boa freguesia, achava Merina muito nova ainda pra viver isolada, na distância dela. Tratava Sabá bem, mas não dava muita intimidade, receava um pouco aquele homem mais velho e sem uma família, um passado direito, uma religião.
Merina, nas viagens que Sabá dava a Belém para vê-la, ficava olhando pra ele, imaginando aqueles silêncios na vida futura dela, mas durava apenas o instante que as mãos lhe pegavam os seios ou passeava pelas suas coxas. Gostava do atrevimento de Sabá. Já lhe dera inteira antes do casamento, era seu homem, despudorado e acanhado ao mesmo tempo, ela gostava daquele jeito dele, direto, conhecedor dos arcanos de seu corpo, sabia tocá-la em cada parte, senti-la embevecida de prazer, queimando.
Quando perguntava por outra na vida dele - e se tivesse mulher e filhos? - Ele respondia que, nos documentos no quartel era solteiro, mas teve muitas outras quando viajava no Purus. Sem apego nenhum falava de Dotéia, Maria Pipira, Didira e Nanu, dizia.- Nenhuma tinha teu cheiro Merina, deitava só com o corpo.
Estranhava que ele não lhe perguntasse nada de sua vida, era atencioso com tudo, ouvia calado seu tempo de menina, via sorrindo ela cantar e dançar lundu, até gostava, não se importava com o par quando iam a alguma festa. Mas não demorou nada pra aprender os passos e a acompanhar, era o jeito do ciúme dele.
O que mais gostava Merina era de ir com Sabá ao Ver-o-Peso. Ali era pouco conhecido mas o tratavam com muito respeito. Quando Didico ou alguém mais antigo o distinguia e apontava, ela se sentia importante com tanta gente vindo falar com seu futuro marido.
Quando chegaram no Pau d’Arco, levados por Manel da Coroa, Merina gostou, gostou muito do que viu. A casa construída no alto do barranco com varanda na frente e um passadiço até o trapiche, no meio do limpo. Os cômodos separados nos vãos das portas por cortinas de miriti, o talho na cozinha, as achas de acapu empilhadas no canto, a bacia de banho pendurada, o oratório com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré na sala, um luxo que sua tia ajudou Sabá arranjar. Meio de lado entre a casa e o trapiche um enorme pau d’arco ladeado de pupunheiras, biribás e açaizeiros.
Atrás uma samaumeira separava o roçado de mandioca da casa de farinha assentada em palafitas no igarapé do Pau D’Arco, ao lado contrário da casa a pilha de talhas no rasgado de barranco que dava até pra vapor encostar. Mas o que mais lhe agradou foi a Criola. Quando Merina se aproximou, ela a olhava curiosa, mexendo a cabeça devagar como se olhasse ora com um olho, ora com outro, balançando o bico bem devagar, destravando a língua:
- Muçu nucomo... muçu nucomo... muçu nucomo...
Zim se trançava nas pernas de Sabá e nem tomava conhecimento da presença dela. Demorou tempo o dia que estava sentada no trapiche com a maré cheia, os pés dentro d’água; Zim chegou de mansinho, enfiou a cabeça no seu colo e ficou ali quietinho.
Por anos agüentou a solidão daquela ponta de braço, agüentou o cozinhar pros caboclos lenheiros, o silêncio das horas durante o dia e o barulho dos bichos na mata durante a noite, ficava ouvindo a pipira e sonhando com movimento da pensão da tia no Reduto, tanta gente pra conversar tantos assuntos, vontade de dançar um lundu nas festas de Ana Cavoca, queria descansar da tagarelice igual, da Criola, do latido à-toa de Zim e do modo calado de Sabá só dando valor no serviço, pensava Merina.
Tentava adivinhar o que ele sentia quando parava sem gestos olhando a imensidão d’água como se ficasse esperando alguma coisa, sabia tristeza nele.
O meu homem ficou sendo hoje o igual ontem, igual... igual... igual... pensava. Foi se desacostumando a banhar de bacia perfumada com cravo e canela para esperá-lo, ele parecia nem ligar. O fogo dos primeiros tempos virou brasas cobertas de cinzas, avivadas só vez em quando. Merina sentia falta do toda hora como no começo, falta de filhos que Sabá queria tanto, de ir mais vezes à Vila de Beja, dalguma festa de batuque. Conformada, armava o cacuri, esperava a freteira de lenha, o mês do Círio todo ano, cada dia mais macambúzia e sozinha.
Quando vieram chamar, Sabá estava no mato derrubando um cumaru, Merina foi só com Batuco na vigilenga pelo igarapé na reponta, por entre as ventosas e maruins até onde ele adelgaçava chegando no Anambé. O folhame quase cobria a choça, uma desolação. Ela deitada no chão num tupé, o fogo apagado e o tendal vazio, as lamparinas acesas ao redor e o filho sentado no monte de palha de arumã brincando com embuás, falando baixinho como se entendesse: - sezão veio... veio... veio... Embrulhada no tupé, a tapuia foi enterrada com o tosco crucifixo que Batuco fez e a oração que Merina rezou em silêncio.
Antes de voltar ao Pau d’Arco deu um banho em Bité, dali não levando mais nada. Preocupava, de Sabá chegar e não encontrá-la. Foi o que aconteceu, encontrou o marido no fogão esquentando óleo de copaíba com o pé cortado num resvalo de machado. O marido entendeu o avexo, tratou com carinho, como o menino Bité fosse filho.
Naqueles primeiros dias, Merina cuidou do sobrinho com quinino e leite de amapá, medo da moléstia ter vindo instalada. Bité bugiava indene, gostando do chá de fava de jucá com mel aliviando a tosse. Raspava com as mãos a cuia do caribé que a tia fazia, sempre pedindo mais.
Com a presença do sobrinho, o Pau d’Arco e a vida de Merina mudaram completamente. Agora tinha com quem conversar, fora a Criola. Ensinava Bité como um filho, contava historias, parecia ter a idade dele quando iam banhar juntos. O menino encheu a vida de Merina em todos os dias.
- Bité vem passar mutamba no cabelo da tia!...
E assim foram criando o menino. A vida mudando pra Merina, mais alegre apesar do alheamento de Bité com muitas coisas do costume deles. Voltou a ter alegrias, ensinando o sobrinho lidar com talas de arumã, fazer paneiros e moquear um tamuatá. Voltou a preparar ipuruna com a ajuda de Bité, a tirar a bacia do gancho, descansando a pitada de cravo e canela para o banho e o agrado de Sabá.
Um dia apareceu Batuco mais um casal de tapuios, parentes de Bité com o jamaxim vazio. Vieram pelo mato e ali ficaram parados sem falar nada, um ao lado do outro. Batuco contou que eles moravam na mucruará, uma hora dali.
- Sabá num vai gostá, tu sabe... falou Merina pra Batuco, que logo deu pressa de ir embora. O casal ficou ali no terreiro, calado, um ao lado do outro. Nem olhar não olharam pra Bité e ele, muito curioso, queria saber quem eram, por que não falavam nada.
Quando Sabá chegou todo picado de cabas não gostou de ver os dois tapuios, mas mesmo assim mandou separar uma quarta de farinha, tabaco e um pouco de sal, deu a eles dizendo que se quisessem trabalhar, encontrassem ele e os companheiros na samaumeira do Cimeu, bem cedo, tinha serviço de lenha pra ele e na farinha pra ela.
Desse dia em diante os tapuios passaram a aparecer de quando em quando. Muitas vezes chegavam ainda escuro assustando todos. Merina tinha medo mas fazia o mesmo, uma quarta de farinha, tabaco e o sal. Bité acostumou de vê-los sempre ali, sem falar nada, um ao lado do outro, e toda vez os chamava pra trabalhar, imitando o tio. Era o povo de Bité agregando neles.
continua...
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quinta-feira, 27 de agosto de 2009
VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
Benzedura
A verdade inventada
Retirou da estatura
Destruiu todo legado
Que tramava a usura
Pediu proteção pra casa
Benzeu de olhar olhado
Reforçou a mestiçagem
Remorso virou de lado
Desejou que o mal ficasse
Só em quem o perseguia
Rezou foi dentro da vida
Do bem que ali erguia
Chamou parte do querer
E também muita fartura
Um tanto maior da lei
Que só no amor mensura
“Veneno tiro com as mãos
Panema com pensamento
É só emprestar a fala
E fazer o chamamento”
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JAC. RIZZO - Verdade inventada
O meu retrato
é bonito
não mostra
as rugas na alma
as armadilhas do tempo
o amargo
dos desencontros
Ele é sereno e alegre
Não mostra
o sal das horas
que arderam na pele
Angústias e amarguras
que escureceram
o olhar
Esconde a alma coitada
O meu retrato é bonito
A vida é que foi malvada
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Jac. Rizzo - http://jacrizzo.blogspot.com/
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quarta-feira, 26 de agosto de 2009
ORAÇÃO DE FLORESTA E RIO - embolada
para jackson do pandeiro
zé, que som de pandeiro
requebrou na madrugada
zé que som de pandeiro
destilou da alforjada
i, é...? i, foi...? olha o zambê
candongo da mourão
andando rumo de noite
acordando a alvorada
apareceu roda de coco
na serra da borborema
i, é...? i, foi...? dança de bangulê
florando num par de mãos
umbigada contra o açoite
ritmado do sertão
i, é!... e foi assim zé
som de pandeiro
embolou a embolada
i, foi...i, é...
e foi assim, sim zé
som de pandeiro
embolou a embolada
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RIO DO BRAÇO
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Cantiga De Sonhar
(Marcos Quinan / Renato Gusmão)
Tem a casa da farinha
O cheiro do meu corpo
De mel e flor
Ou de aluá e cauim
Cheiro dos mato
Que o vento espaia
Resende um tanto em ti
No silêncio do curral
As aves nas lonjuras
Se anunciam num belo cantar
Corre mucama abre a janela
Deixa seu canto entrar
Teço no fio das palmeiras
Imbalos que o vento espaiou
Sonhos de bem querer
Quando deito imbalanço
Imito as ingazeiras
Na rede ingá
Num bocejar sem fim
Anda mucama, canta molenga
Que espriguiçar é bom
Vem ó mucama, tange os piuns
Faz iaiá sonhar
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Arranjo – Fernando Carvalho
Voz – Chico Aafa
Viola de 12 Cordas / Violão Nylon – Fernando Carvalho
Cello – Saulo Moura
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MÁRCIA CORRÊA - Questão de tempo
Não era o tempo do verbo que a entristecia.
Mas, o tempo da espera, dos adiamentos.
Tempo da imprecisão, das incertezas.
Foi então que fechou a porta do tempo,
E aquietou a tristeza no escuro do pátio
À espera da chuva e do vento,
Que lhe trouxessem algum discernimento.
Disse-lhe a chuva, sábia de melancolias,
Que deixasse mesmo por conta do tempo.
Soprou-lhe o vento, varredor de pensamentos,
Que tirasse férias do contar das horas
E escutasse com cuidado a voz do sentimento.
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Márcia Corrêa - http://novopapeldeseda.blogspot.com/
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terça-feira, 25 de agosto de 2009
ANIBAL BEÇA - 1946...2009
Espelho
Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.
Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.
Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto
Nessa voragem, vaga um mar de calma
Que me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
que sobrou de mim são essas sombras.
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SERTÃO D'ÁGUA - SABÁ DO TALHO III
continuação...
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A experiência como foguista do Purus lhe deu traquejo em lidar com a lenha. Quando o vapor encostava nos pontos de abastecimento, raramente encontrava o combinado. Os caboclos ignaros, ora vendiam ao primeiro que passasse e iam para a seringa fazer peles, ora deixavam recado pelas mulheres: que a juta deu preço e tinham ido colher fibra.
Inúmeras vezes abasteceu o Purus com a ajuda dos tripulantes, tirando a machado, desgalhando a terçado, o que fosse mais fácil cortar. Aos passageiros pedia que apanhassem sacaí, não se afastando muito. Essa vivência mostrou a ele o valor que tinha uma acha de lenha para as caldeiras, o quanto poderia render o fornecimento regular aos vapores.
Naqueles anos todos, os atrasos do Purus eram muito pequenos, fazendo com que houvesse uma preferência por suas viagens. Entre os viajantes, homens importantes no comércio da borracha, guarda-livros, caixeiros viajantes, pessoas ligadas ao comércio, às casas aviadoras, às seguradoras, gente abastada, artistas e homens do governo. Comandante Fontenele agradecia ao foguista essa regularidade, deixando que ele transportasse o que quisesse e convidando-o sempre para conhecer alguém mais ilustre que estivesse a bordo, sempre o destacando por seu feito heróico na Guerra de Canudos, como quando o apresentou para a grande artista Celina Delisses e o tenor italiano Mário Torcatto. Sabá ficou ao lado do comandante sem entender uma palavra da conversa, sorrindo sem graça. Adelmo e Rapinha riram dele, imitando seu acanhamento o resto da viagem.
Tanta gente importante conhecida no vapor não lhe eram da menor valia. Os ribeirinhos, esses sim, valiam a lenha, a farinha do seu ganho à parte, com eles sabia conversar, rir, vadiar e reaprender o que sabia desarrumado, trancado dentro, obliterado, naquele sertão d’água.
De Manaus, Sabá nunca conseguiu gostar muito, nem desembarcava com os outros, ficava sempre olhando da amurada os passageiros descerem, o comandante entonado ir pros braços de sua amásia, discretamente depois da cuia de mujangué. Cidade grande como Belém, Sabá não sabia de quê, mas tinha medo, ficava arrumando desculpas e serviço pra não descer do vapor nem para ir às casas de mancebia.
Foi com o afastamento do comandante Fontenele, por causa da idade, que Sabá resolveu deixar o Purus, seguir a vida só negociando. Escolheu ficar em Cametá, onde já vinha deixando na mão do seu Catuxo a mercadoria que trazia no Purus.
Mesmo na crise, comprava e vendia peles de borracha e balata, o único que pagava um preço mais justo por elas. Contentava em ganhar menos nas trocas que fazia; era seu jeito de negociar, ganhar pouco mas sempre. Ali ficou até o dia que, avistando com Manel da Coroa, soube da dificuldade que estavam tendo os vapores em conseguir lenha para as caldeiras. O amigo o instigava:
- Tu, meu mano, é o maió fazedô de lenha, radica no lugá certo, põe fretêra... vai... vai... vai... tu negoceia lá tumém. Tu é sabido, Sabá.
Mas o que levou Sabá a decidir mesmo, foi uma briga por à toa com seu Catuxo, pai de Mariinha que vivia embeiçada por ele, apesar do seu desinteresse. Um dia, ela falou pro pai que gostava dele, dando entender correspondida. O velho aviador e político fez gosto e foi tomar satisfação de casamento. Apesar de se conhecerem muito através dos negócios que tinham juntos, a conversa desandou, quase acabou em briga, até o vigário entrou no meio. Sabá, já vendo fracasso no comércio de beira que fazia apenas com a montaria, resolveu ir embora.
Lembrou-se da conversa com Manel e desceu costeando até decidir se radicar no braço do Pau d’Arco, uma nesga de barranco entre o Anambé e o furo do Pitinga, irisado na imensidão daquelas águas. Quando entrou a primeira vez com a montaria no igarapé, ouviu um canto de pássaro soando no denso da mata, somente aquele trinado percuciente. Tudo ali parecia ter parado para ouvi-lo, um silêncio breve, cortado pelo canto mavioso e depois tudo voltou ao igual.
O ponto da primeira compra de lenha era ali e ali foi que construiu a casa, o trapiche, plantou o roçado de mandioca, sozinho como escolheu ser, sabia de si um pedaço, um outro, recôndito sabido, incompleto pela boca dos outros. Uns quinze anos não encontrou ninguém que ao menos lhe contasse. Em nenhum arruado que andou, deixou de perguntar pelo nome do pai e da mãe.
Afanoso, comprou serra, todo tipo de ferramenta, e foi dando trabalho para os vizinhos, formando turma e freguesia. Fazia as rumas de lenha no barranco, a modo que qualquer vapor que passasse via de longe. Com pouco tempo ficou conhecido por cumprir combinados. Se a encomenda fosse tratada, era encostar na beira e carregar. Não havendo combinação, mesmo com sobrepreço, só o que estivesse sobrando negociava.
Sabá, quando tomou a beira no Pau d’Arco e começou a trabalhar ali, passava mais tempo andando em volta, procurando nos vizinhos quem quisesse trabalhar tirando lenha. Num pouco tempo ficou conhecido de todos, admiravam seu querer e o modo inquieto de ele ir fazendo as coisas. Onde ia, o que pudesse render trocava, vendia ou comprava. A canoa era sempre cheia de ramas, bilhas de mel, cupuaçu, cacho de açaí, taperebá ou o que encontrasse.
Onde chegasse alguma coisa, trazia agradando aos vizinhos. O povo do Anambé, inopinado, às vezes aparecia no Pau d’Arco. Uns armavam o muitá e ficavam na caça ao redor. Outros eram preguiçosos, engrolavam a tarefa só um meio de dia, lenhando. Os companheiros, desde a primeira hora, sempre foram Didoro, caboclo sagica, neto de cabano e pai de mais de uma dúzia de filhos, conhecedor de tudo o que era pau bom de fogo, e Cimeu, valente homem que trazia os filhos pra ajudar na talhadia, agüentando o trabalho.
Manel da Coroa foi a valia maior, desde que o conhecera na pensão no Reduto. Sozinho no mundo como Sabá, era ele que levava direto pra Didico no Ver-o-Peso tudo que se tirava dali. Mais de quatro bilhas de mel costumava levar por viagem, castanha, cacau, óleo de andiroba e alguma pele mesmo sem preço. Sabá dizia – é pouca de muita, meu mano, levava frutas tiradas no mato e a farinha que fazia com a ajuda de Dondoca do Cimeu.
O amigo trazia de Belém o que Sabá pedia: o sal, a camisa de morim feita por Zinhá lá na pensão do Reduto, a serra nova, menos a morena bonita que sempre encomendava. Manel todo ano chamava pro Círio, mas Sabá não gostava dessas coisas de reza, igreja, procissão. Dizia que pecado era correr do que viesse na vida.
- Tu encosta numa murena é lá, meu mano, pur obrigo de lei, tuma um banho de “pega mulher” da barraca da tia Merença, de véspera acha; e na procissão já tá cum ela. Mania do mano pensá que o Círio é só pra rezá, se tu num gosta, lambuza só no prufano, dizia Manel.
Sabá, raras vezes, lembrava-se do hospital, das orações que ouviu, das visitas que recebia, tinha saudades era da pensão, de Zinhá, da Dotéia, do Purus. Daquela moça de Óbidos que só ficava de longe olhando e quando ele chegava perto, ela corria. Foram quase dez anos aquele regateio dela. Na última viagem que deu, quando o Purus desatracou, ela acenou como se adivinhasse ele não voltar. Lembrava com saudades Maria Pipira com quem se deitava em Santarém. Do furo do Pacoval onde Didira se arrumava nas folhas de tucum, chamando vem... vem... vem... faltava o paxicá que Curiboque preparava quando ouvia o apito do Purus... e a conversa boa do cearense Severo.
Sabá escolheu o lugar da demanda primeira de lenha de quem navegasse rio acima e da demanda última de quem viesse rio abaixo. Valia-lhe os muitos anos como foguista do Purus, lhe valia o amigo Manel da Coroa ajudando.
O começo, um pequeno tapiri feito na beira-rio, a acendalha seca num canto e no tendal o peixe que o matapi sustentava. O tempo passava, o lugar ia tomando forma. Nos lugares ínvios Sabá abria passagens até onde identificava fazer lenha, marcava açacus, tucumãs, pracaúbas. Fazia o roçado pro manival atrás da casa começada, ao mesmo tempo que cuidava do trapiche, de ir aumentando os cômodos, arroteava o quintal, um serviço de nunca acabar. Cada vez que Manel da Coroa encostava, trazendo as encomendas de Sabá, um dia de ajuda gastava com o amigo se gabando saber trançar palha como ninguém.
Sabá era um solitário, ia construindo devagar, punha etapa em qualquer serviço, desobrigava da pressa e ia fazendo tudo com capricho. Nos seus planos de tirar lenha estava aproveitar tudo que pudesse em volta de cada pau marcado, a caça da necessidade sempre encontrada, frutas, cocos, favas, mel. Tirava palha e fibra pra tecer, resina, raiz, casca e óleos pra remédio.
O que não gostava muito era de pescar, achava um serviço desenxabido, no muito armava o matapi ou se provia de peixe encomendando a Manel uma manta de pirarucu salgado ou quando ia à Vila do Beja trazia o pescado de lá.
Conheceu Merina numa festa de São Miguel Arcanjo na Vila. Andava pelo arraial frente à igreja, quando sentiu o cheiro dela, espargindo, passando rente até sumir no meio do povo. Ficou a noite toda procurando por ela até desistir na primeira fisgada de sono. Foi só no outro dia que voltou a encontrá-la, no trapiche, quando já ia embora. Ela desviou o olhar, assustada com sua cicatriz, mas Sabá fingiu que não viu. Desamarrou a montaria e remou devagar levando o cheiro e a figura dela na lembrança.
Toda noite pensava na moça. Começou a ir à Vila, semana sim, semana não, mas nunca a procurou afora com o olhar. Remava as horas no aproveito da maré e ficava até vazar. Negociava nas baiúcas da feira, aninga, cumaru, mel e farinha. Não que precisasse, Manel da Coroa levava tudo o que produzisse, mas precisava era da desculpa pra ir à Vila.
Bastou um dia perguntar a dona Saluciana, para que todo povoado soubesse de seu interesse pela moça. Ela veio no dia da festa com o irmão que vive com uma tapuia aqui perto, mora em Belém, nunca mais apareceu, disse-lhe Saluciana, rindo porque a moça também perguntou dele e ela contou tudo, do Pau d’Arco, do foguista famoso que foi no Purus até a história de militar reformado por ferimento em combate de guerra. Os detalhes, não escasseou, contou até que ele não se lembrava de nada da família, só sabia o que ouviu dizer, do quase um ano que passou lutando contra a morte.
Única vontade que teve de não ser sozinho foi quando viu Merina. Por isso fazia muitos meses que se acostumara ir à Vila de Beja. Quando dona Saluciana lhe contou do interesse dela também, Sabá pôde até sentir o cheiro de cravo e canela recendendo por dentro como na noite em que a viu.
- Tu vai tumá ela de casamento, seu Sabá? Vai...? vai...? vai...? insistia dona Saluciana.
Ele respondeu apenas com o riso, mas por dentro achava que sim. Imaginava como encontrá-la em Belém, através de Zinhá ou do tenente Dalberto. Haveria de encontrar um dia nem que tivesse que bater de casa em casa.
O encontro dos dois se deu numa das poucas idas de Sabá a Belém. Foi visitar a dona da pensão a quem devia tanta gratidão, mas o que queria de verdade era que ela o ajudasse a encontrar a moça, cuja única coisa que sabia era ter um irmão que trabalhava no serviço telegráfico do governo no Anambé. Qual foi a sua surpresa que ao chegar à pensão, a primeira pessoa que viu foi Merina, garrida, sentada no cepo na porta da casa. Ao vê-lo correu, deitou na rede cantarolando baixinho. Era sobrinha de Zinhá e sentiu o mesmo que Sabá quando o viu de novo. Ficaram se olhando sem nada dizer, cada um mais sem graça que o outro e ao mesmo tempo cada um mais querendo que o outro. Durou até a tia aparecer na porta da cozinha em choro de alegria com os braços abertos.
- Sabá, meu filho, quanto tempo num tê vejo, estás bonito, parrudo. Conta pra tua Zinhá, o Pau d’Arco já virou um arruado?
Fez festa, abraçou e acarinhou sua barba, parecia um parente de verdade. Conversaram por muitas horas, ele sem tirar os olhos de Merina, roendo o taperebá verdoengo: ela sustentando o olhar e a tia rindo com gosto.
Na semana toda que Sabá ficou na pensão os dois só se separavam quando a madrasta de Merina mandava chamá-la e, assim mesmo, Sabá ia acompanhando e lá ficava até tarde da noite.
Foi a primeira das muitas vezes que Sabá saiu do Pau D’Arco em compromisso com Merina. O agarramento dos dois cada dia era maior para a alegria de Zinhá e conformação da madrasta, sempre reparando desconfiada os agrados que Sabá lhe trazia, por mais que gostasse do tucupi feito no Pau D’Arco, nunca dava o valor.
Seis meses passados estavam casados.
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continua...
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segunda-feira, 24 de agosto de 2009
GESTOS DE CADA LUGAR
Marcos Quinan
°°°
Para:
Marina Quinan,
Juliana Balsalobre,
Firula,
Rodrigo Luz ,
Frederico Galante
e
Cora-inha dos Boraris
°°°
Fotografias: Rodrigo Luz
Texto Andanças: Frederico Galante
Músicas, parcerias com: Marco Antonio Quinan e Juliana Balsalobre
°°°
Acompanhei passo a passo, desde os primeiros, a formação das duas. Acompanhei passo a passo os primeiros passos do Grupo Quintal e seus trabalhos individuais nos palcos, como arte-educadoras e contadoras de histórias, a carreira médica e todos os sonhos.
Cúmplice fui, da criação da dupla Las Cabaças (Bifi - Juliana Balsalobre e Quinan - Marina Quinan) e dos projetos Brasil na Cabaça e Brasil Adentro. Viagens cuja força da determinação delas comandou cada gesto que acompanhei de longe ajudando com o material e com o que mais podia.
A primeira, pelo Nordeste e parte da Amazônia, foi no ano de 2006. Teve a participação da cadela Firula.
A segunda, no ano de 2008 e parte de 2009, fazendo o caminho inverso, andaram por toda a Amazônia e uma parte do Nordeste. Dela participaram, com o apoio do Doutores da Alegria, também o fotógrafo e cinegrafista Rodrigo Luz e o médico, escritor, músico e cinegrafista Frederico Galante e, no seu final, os besteirologistas Dr. Dedérson, Dra. Lola Brígida, Dr. Da Dúvida e Dr. Montanha
Do conhecimento bruto das suas narrativas e observações nasceu Gestos de Cada Lugar, um feixe de poemas escritos e publicados no blog Las Cabaças com o pseudônimo de Anônimo aqui enriquecidos com as fotografias de Rodrigo Luz, o texto Andanças de Frederico Galante e as músicas Mandacaru e Telelém em parceria com Marco Antonio Quinan e Caixeiras do Maranhão com Juliana Balsalobre.
Para melhor conhecerem os projetos Brasil na Cabaça e Brasil Adentro e os trabalhos de seus participantes acessem os endereços:
http://www.lascabacas.com.br/
http://www.doutoresdaalegria.org.br/
www.fotolog.net/rodrigofluz
http://fredericogalante.blogspot.com/
°°°
MANDACARU
Marco Antonio Quinan / Marcos Quinan
Arranjos: Eudes Fraga e Sávio Deib
Sávio Deib: samples: piano elétrico – teclado – zabumba – pandeiro – triângulo - violoncelos – violinos – violas – pífanos - baixo acústico – pratos
Emocionalmente talvez Mandacaru de Marco Antonio Quinan, de quem sou parceiro, tenha nascido ao ver as imagens da primeira parada das duas no sertão baiano, palco da Guerra de Canudos.
VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
Gota d’água
Caviana busco o rumo
Mexiana onde é o mar
Quando será o desafio
Que o vaqueiro quer olhar
É renda a borda branca
Que vejo bem acolá
Ou então é o bravio
Preparando para lutá
Seja qual for o caminho
Onde esteja meu valor
Sou água bem pequenina
Nascida de uma flor
“Soberana água do mar
Que a terra vem beijar
Onde brabeza de rio
Todo dia vai morar”
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MQ
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domingo, 23 de agosto de 2009
JOÃO CABRAL DE MELO NETO - OBRA PRIMA DA CULTURA BRASILEIRA
MORTE E VIDA SEVERINA
(Auto de Natal Pernambucano)
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
°
— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
— Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.
°
— Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas;
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma a outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas;
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria;
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?
°
— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...
— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...
— Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.
— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...
— Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.
— Uma excelência dizendo que a hora é hora.
— Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.
— Duas excelências dizendo é a hora da plantação.
— Ajunta os carregadores que a terra vai colher a mão.
°
— Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas porque
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida;
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.
— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
— Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?
— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
— Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá;
diga-me ainda, compadre;
que mais fazia por lá?
— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.
— Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Em qualquer das cinco tachas
de um banguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
— Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
— Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
— Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
°
— Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um banguê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.
°
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
°
— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).
— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.
— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.
— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.
— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.
°
— Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre, com
a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo
porque em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.
°
— O dia de hoje está difícil;
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço;
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
— Pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.
— É que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.
— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não pára o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos banguezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros);
bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.
— Só pedi que me mandassem
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.
— Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas;
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se liberaram jamais.
— Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa;
onde se exige quépi
e farda engomada e limpa.
— Mas não foi pelas gorjetas,
não, que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro;
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
— E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?
— Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.
— E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?
— No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.
— E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?
— Passo para o dos industriários,
que é também o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.
— Passas para o dos operários,
deixas o dos pobres vários;
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.
— É, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.
— É a gente sem instituto,
gente de braços devolutos;
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.
— É a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
— É a gente retirante
que vem do Sertão de longe.
— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não têm mais o que esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
— Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
— E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitérios esperando.
— Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.
°
— Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).
°
— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega ao abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
— Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
— Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
— Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra inteira.
— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
— Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
— Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
— Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
°
— Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.
°
— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
— Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
— E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
— E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
— Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
— E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
— E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.
— Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
— Minha pobreza tal é
que coisa não posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar;
aqui são todos irmãos,
de leite, de lama, de ar.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago papel de jornal
para lhe servir de cobertor;
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa do Carro,
trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.
— Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta corrido e de estalo.
— Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d'água
que só em Paudalho se fabrica.
— Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.
— Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá.
— Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
— Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
— Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
— Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
— Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
— Siris apanhados no lamaçal
que há no avesso da rua Imperial.
— Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
— Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.
°
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.
— Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.
°
— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.
°
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
FIM
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