sexta-feira, 31 de julho de 2015

RODA DE CHORO - RUY GODINHO

.


O destaque do 1º bloco vai para o compositor e oficleidista dos primórdios do choro, João Valeriano, nascido em 1870.
 
No 2º bloco uma homenagem ao trombone, na pessoa de um ícone no instrumento, o carioca Raul de Barros, nascido no Rio de Janeiro, em 1915 e o som do LP Brasil Trombone, de 1974.
 
No 3º bloco teremos o talento e a criatividade do bandolinista e compositor Pedro Amorim e o som do CD Pedro Amorim - Violão tenor, lançado em 2001.
 
Teremos ainda a presença marcante de Cláudia Savaget e o som do CD Caminhando, no bloco do choro cantado.
 
E para encerrar o virtuose bandolinista paulistano Fábio Peron e o som do CD Em Boa Companhia, lançado em novembro de 2012.
 
Roda de Choro, sábado, meio dia pela rádio Câmara FM, 96,9 MHz, de Brasília, retransmitido em mais 205 emissoras pelo Brasil, Japão e Angola.

Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Vaqueiro velho do Desaguadouro - MQ


.

Nos campos virentes
Lá no Desaguadouro
Lugar de aruanãs e acarás
De salga e aningueiras
Aracus e curimatás

Onde só caboclo sabe
Qual caminho de chegá
Ensina pra todo mundo
E ninguém sabe encontrá
Teve gente que por perdido
Se aportou em Muaná

Lá vive um ser cambado
Que se esforça pra andá
Parece com mucura
Imita tamanduá
Um ser que não tem tamanho
Mas tem jeito de atacá

Com semblante encanecido
Duas sementes no olhá
Sabe cantá dolente
Encanta quem apreciá

Dizem que foi vaqueiro
Nos tempos lá do passado
E sofreu a desventura
De amor atraiçoado

Por isso quando caboclo
Vai por lá trabalhá
Põe algodão nos ouvidos
Evitando se encantá




“Montaria derrubou
Vaqueiro ficou cambado
O amor desgovernou
Andou pro outro lado”


.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

terça-feira, 28 de julho de 2015

CANOA D'ÁGUA - MQ


.
 
.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

TERRA DO CHÃO - MQ

.


.

domingo, 26 de julho de 2015

Pedro Viriano e João Mutaba - MQ




Acordou muito cedo, precisando das primeiras horas do dia, a memória espalhava calor de luta no corpo, sentia-se alquebrado pela idade e solidão, mas não se deixava quedar.  Da janela, olhava a curva do rio, os paus-d’arco floridos no meio da mata e se punha no passado, esperava João Mutaba como fazia todos os dias. Parte do que contava estava na lembrança dele também. Queria manuscrever tudo e iam se recordando pouco por pouco.
 
Quem escreverá nossa história senão os poderosos que sabem ler e escrever. Como saberão o quanto queriam a Amazônia européia e que só o sangue derramado evitou que ela não fosse brasileira.
 
Supria o pensamento, enquanto Mutaba preparava o papel e o tinteiro.
 
Remanesciam dos que não quiseram anistia, preferindo a vida nos ermos do Abaribó, lugar quase despovoado, escondido na mata fechada e na fama da valentia secular dos cafuzos que um dia dominaram aquelas terras.
Não se conheciam até o dia que se encontraram fugindo, cada um com sua família. Pedro Viriano, oficial calafate quebrado na virilha esquerda e com o rosto marcado de pólvora, remava subindo o Guamá com mulher e filha. Mutaba, negro, descendente de escravos vindos de Goiás com seus donos, nos primórdios de Cametá,  nascido forro sem saber por quê; nadava tentando atravessar o rio com o filho nas costas. Dali nunca mais se separaram, subiram todas as águas procurando o Abaribó por mais de ano.
 
No sertão Abaribó quase deserto e desolado, a maioria dos que chegavam, vinham com esperança de encontrar, no mistério daquelas águas que o cortavam, ora afluentes, ora confluentes, ora defluentes, confundindo qualquer perseguição, o refúgio que a bravura pedia e se impunha sobre a anistia pedida, com honradez, por patriotas e concedida, como espórtula, com descaso por improficientes.
 
Pedro lia para Mutaba. De olhos úmidos, brilhando no reflexo do sol da manhã. Narrador e personagem ao mesmo tempo, empunhando com as mãos trêmulas a arma da palavra escrita, aprendida com a mãe e afiada pelos livros que o Cônego lhe recomendava ler. Sabia a última batalha travar, contava com os lampejos de Mutaba, com a tinta que ele extraía; devoção na tarefa de manter o tinteiro sempre cheio. Demorava olhando o chão de terra batida, macambúzio. Lembrava a mulher e a filha mortas pelo escorbuto em meio à falta de recursos.
O corpo ia cedendo aos anos e à pobreza do lugar. As palavras iam ficando no escasso papel, nas letras meio borrados em tecidos de algodão e nos ouvidos de Mutaba que pedia quase todo dia a Pedro Viriano ler o poema da liberdade, se sentia importante ouvindo tantas palavras bonitas que ele não conhecia e nem entendia, mas sabia ter ajudado escrever; seu orgulho, lutar aquela luta, preparar a tinta desde a extração do anil-trepador até o preparo com gotas de óleo de andiroba, carvão e ervas sicativas, receita que a intuição cabocla, logrou. Daquela aguada escura saía também beleza na entonação da voz.  
Pedro lia :
 
tudo por fazer
na terra nova
encontrada aqui
 
tudo por entender
do braço índio
nascido aqui
 
vida viva
de vencidos e vencedores
vivendo livre
sobejando aqui
 
encontro das culpas seculares
aprendidas de joelhos
e mãos postas em armas
com a vida viva nascida aqui
 
contrição e a rubra mordaça
desnudada nas batinas
entalhes lúbricos
resultados sem lavor
 
traço negro trazido à força
para empenho e labor
 
vida viva
mutilada da altivez
restada nos porões
pútridos do estanco
 
manumissão de libertos
juntos
calados e misturados
às conquistas que o deszelo
cobriu com hipocrisia
sobrepondo lenitivo à vida
 
do braço índio cativado aqui
do braço negro exilado  aqui
do braço branco renascendo aqui
 
verdade mestiça de dores
esparramadas em subserviência
findando no descaso com a terra
que se fingiu descobrir
 
o gentio se misturando
mesmo curvado
 
quimeras prenunciando salvação
imitando de mão em mão
um deus
um rei
 
mas sonhos podem ter
as mãos quando ganham
os espertos com seus grilhões
 
mas sonhos podem ter
as mãos quando tocam
a verdade nos sonhos
de outras mãos e somam
a escolha da liberdade
de mão em mão
 
 
óbolos de fel que põem
solenemente acima
falsos e vazios
circunspectos sujigando
 
em leis que moem
e subtraem apenas

 

estugando o ódio

nas entranhas

da morte em cal

sangue e fezes

 
embriagados na loucura
dos boticários
punindo em vão
segregando o respeito
 
dor
adornada de dor
adonando todos
 
desencadeando vala comum
e rasa do Penacova
 
valimento dos restos
de menos valia
 
 
rompâncias e sujeição
assomados nas ruas
 
iniquidade torturando
calma e silêncios
no ecôo da concertina
no sibilo das balas
 
polução
na calma da noite
na soberba das alforrias
 
cordura com os atos
exéquias pequenas e tristes
nos arrabaldes do sonho
mourejados
só com a vida
 
cabedal que se doa
com zelo, sem datação
 
ressôo de bombardino
sibilo das ordens
entrando pelas gelosias
das janelas abandonadas
pelos senhores intolerantes
 
sobrecarga da ira
no gentio apartado
vagando erradio
pelos mocambos
deixando rastos
imperceptíveis
nos bivaques e caminhos
 
no negro amolegado
pela chibata
homiziado nas quilombolas
 
no branco tocado
pela liberdade sem laços
rompendo desígnio
 
detração pelos adros
e palácios como vômito
no linóleo impregnado
 
o esgar dos brasões
enrijecendo a verdade
pelas ruas e caminhos
espalhando a vontade
 
o gesto
lesto
esmiuçando os arredores
até o suburgo na beira do rio
 
onde folga homens
embaixo dum pau copado
 
deslindando seu relato
parte por parte
para entender melhor
o dédalo das leis promulgadas
 
postergando e emudecendo

o ventre tenro

onde a liberdade

queria nascer

 
João Mutaba não movia um músculo do corpo, ficava tempo olhando o longe. Pedro Viriano, cada dia que passava, terminava a leitura com a respiração mais cansada. Ensimesmado como o ouvinte, se perdia das palavras, ficavam horas trocando seus silêncios.
Enganava o tremor das mãos com a tarefa que se impunha, pedia a Mutaba tinta e a lembrança da chegada do mestiço Visgo Rei e sua gente, anistiados e depois fugidos do Corpo de Trabalhadores.
 
 Nossa verdadeira derrota foi na calada das leis que perdoam e aprisionam a um só tempo: os braços e os sonhos, desespero dos precitos, trabalho livre em grilhões, dispostos. Servidão paga com moedas esvaecendo direitos, cortando fio por fio a teia que a liberdade ousava tecer.
 
Pedro Viriano foi encontrado por Mutaba sentado no banco, na mesa, em frente à janela onde costumava ficar olhando as águas, a cabeça tombada sobre o ombro direito como se as visse. Nas mãos, segurava o maço com seus escritos, os braços esticados pareciam querer entregá-los a alguém.
João Mutaba sentou no chão batido da soleira, olhou os caminhos do Abaribó entrando pela mata, findando nos barrancos, ligando as cabanas; um abandono, somente velhos esquecidos e esquecendo, pensava em silêncio, ouvindo a voz do morto recitando:

 

... postergando e emudecendo

o ventre tenro

onde a liberdade

queria nascer

 

.