domingo, 31 de agosto de 2014

Nhanubuí - MQ

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No Reduto de São José, despojado de tudo na vida e dela se preciso fosse, Nhanubuí, padecendo da agonia de tirar desforço do oficial das armas, fingia dormir enquanto esperava a hora. A noite punha manto, um negrume retinto na friagem da brisa e nas marolas quebrando silêncios.

Ardentias da aguardente mitigava a espera; o fel todo dentro de dois bornais com pólvora juntada grão a grão durante meses. Tinha demorado a reconhecer o tal Antônio Gomes, agora oficial de farda; não fosse pela cicatriz nas costas até o alto das coxas, que viu quando levou a água do banho, nunca lembraria.

O Itapicuru fazia a água toda, remansado. O casco boleava sem pressa, iam descendo farinha, mel e trançados para a feira no Largo de Nazaré, quando avistaram na margem, o primeiro corpo. Antes de encostar avistaram os outros, mortos e retalhados. O choro da criança foi o único sinal de vida... nascia desnatural, do corte mortal na barriga da mãe agonizando.

Criada pelos pacajás, sem peito de mãe, desde pequena ouviu a história do massacre de sua gente, o pai tapuio, pescador de ofício; a mãe índia pacajá com seus quatro irmãos; o avô velho e dois tios com suas mulheres e filhos. Ao todo quinze parentes. Contavam que a mãe, antes de morrer, falou da luta, do ferido que ela mesma lanhou com o terçado, repartindo a carne das costas até as coxas.

Nhanubuí cresceu nos remos e na feitura de farinha, ouvindo sobre sua gente e o jeito como nasceu. Alistado muito novo, andou em muitas Vilas, por muitos anos na Fortaleza da Barra e, por fim, no Reduto de São José; cartucheiro de carga rápida e bom manejo, se preciso fosse. Já estava ali fazia tempo, nem se lembrava mais de sua história, sentia uma pouca lembrança da aldeia onde fora criado, mas vivia sabendo que guardava uma raiva que não sabia de quê; ficava agastado sem motivo; mas gostava de fazer tudo que lhe mandavam. Muito calado, raramente ficava ouvindo as histórias dos outros soldados em volta do fogo.

No Reduto de São José, nenhum comandante durava; cada disputa política na província, saía um e entrava outro. Com eles, novos praças, novas ordens, restando uns poucos, entre eles sempre Nhanubuí que não tomava partido de ninguém, era por si, cuidava as ordens; bebia aguardente escondido antes de dormir, somente quando vinha a zanga.

O novo oficial das armas de nome Antônio Gomes era famoso comboieiro e chefe de captura; velho de riso destravado no olhar ruim; de todos, o melhor comando, camaradeiro e de pouco rigor com as normas. Para Nhanubuí, mais um que tudo queria e pedia só a ele, acostumado a servir prontamente.

Quando entrou com a água quente o viu de costas, nu, com o sujo manchando o corpo e a cicatriz, um risco reto das costelas até a nádega direita quase formando outra.

A lembrança do que ouviu quando pequeno chegou junto com a danação; estava na frente do homem que matou sua mãe e seus parentes. O sangue esquentou, calando dentro de si a vontade de acabar com ele no mesmo momento que lembrou.

Desse dia, prestou mais atenção no que o oficial contava em suas bravatas; histórias das cambocas seviciadas com os homens da aldeia, peados assistindo a tudo; dos negros homiziados trazidos sem colhões e orelhas. Cada uma delas ouvidas pelos praças, entre risos e a bazófia que tinham pra contar, a minoria, mestiços como Nhanubuí que, silencioso, agora descobria suas pendências... pensava crueldades; lembrava da aldeia onde foi criado... de falarem da beleza da mãe; dele, menino olhando o fogo queimar.

Daquele dia em diante, começou a trabalhar a acangatara, plumagem por plumagem, pena por pena, trançado por trançado, assomado em saber, depois de tantos anos, quem esperava estar morto ser Antônio Gomes. Juntava a pólvora, a aguardente e os chumaços de algodão, escondendo no quarto de banho, esperava o dia.

Nesse, ao ouvir o grito pedindo a água quente, se despiu do fardamento; apenas de acangatara, um archote acesso na mão e o terçado na outra, entrou e fechou a porta com a tranca sem que o oficial nem percebesse. O primeiro golpe acertou a cabeça e a consciência; o segundo abriu a barriga de fora a fora onde Nhanubuí enfiou os dois bornais de pólvora, estancou a sangria com algodão e esperou que ele se mexesse para acender os chumaços embebidos de aguardente enfiados pelos orifícios naturais.

O velho chefe de captura, com a boca cheia de algodão, acabou nem tentando gritar, consciente, olhava o mestiço pacajá vestido para uma grande cerimônia como uma alucinação; sentiu a dor das carnes expostas, o cheiro de sangue e o calor do algodão queimar nos ouvidos.

Tentava soltar o trançado que lhe amarrava as mãos, quando a fumaça encheu o ar e o ventre queimou de uma só vez. Uma dor lancinante o empurrou para nascer dentro da morte.

Nhanubuí ninguém nunca mais viu.




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sábado, 30 de agosto de 2014

ENTÃO, FOI ASSIM?

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O programa Então, Foi Assim? deste sábado, será o segundo de uma série de dois, inteiramente dedicados ao talento e à criatividade do  cantor e compositor carioca Ivan  Lins.  
 
Na ocasião, ela nos contará as histórias de:
 
- Me deixa em paz (c/Ronaldo Monteiro de Souza);
 
- Bilhete (c/Vitor Martins);
 
- Cartomante (c/Vitor Martins) e
 
- Emoldurada (c/Celso Viáfora).
 
 
Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira, sábado, às seis da tarde na Nacional FM com retransmissão para mais de 240 emissoras em todo Brasil.
 
Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

RODA DE CHORO - RUY GODINHO

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O Roda de Choro deste sábado traz no 1º bloco Irineu Batina, compositor dos primórdios;
No 2º e 3º blocos teremos o violonista baiano Nicanor Teixeira e o som do CD Nicanor Teixeira por 28 grandes intérpretes;
No bloco do Choro Cantado, a simplicidade e beleza da parceria de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, no som do CD Mundo de Dentro, lançado em 2010.
E para finalizar, o som do CD Negro coração, do Alegre Corrêa Sextett, lançado em 1995.
 
 
Roda de Choro, sábado, excepcionalmente a uma da tarde pela rádio Câmara FM, 96,9 MHz, de Brasília, retransmitido em mais 205 emissoras pelo Brasil, Japão e Angola.

 
Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Cego Bocovó - MQ

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Preadores avençados com Antônio Tejuco desciam o Acaraxiteua em duas canoas, bordejando o mato fechado nas margens, fortemente armados e atentos; traziam oito peças que não sabiam identificar a tribo a que pertenciam. João Bocovó fizera o assento e comandava a descida, observando cada detalhe da margem, muito receio revelava e, mais que ele, os remeiros assustando com qualquer barulho de bicho.

Nos muitos anos não tinha visto nada parecido, nunca foi tão fácil dominá-los, nunca peou nenhum com tanta facilidade e estranhou não ter mulher junto, fogo acesso e mais ainda, serem só adultos. Quanto mais pensava, mais desconfiava de alguma coisa errada. O silêncio foi tomando conta, ficando quase que só o barulho dos remos ferindo a água. O Acaraxiteua abria remansos em cada curva e a mata parecia o cobrir do sol. Um denso no ar envolvia o lugar. João Bocovó olhava vez em quando o semblante dos índios peados, confirmava sujeição, olhava as margens, confirmava silêncios. Sinalizou com a mão ao proeiro, dando rumo de meio do rio e, aos outros, alerta de luta.

- Nõm... nõm... nõm...

Os gritos ressoaram e o tapanhuno se pôs nas vistas, mal se equilibrando no casco com duas varas cravadas no fundo dum remanso, lhe sustentando equilíbrio. Parecia saído do fundo das águas; a pintura de urucu sobre a pele negra lhe dava aparência sobrenatural, assustando a tropa de resgate. Os índios peados, no primeiro grito, manearam a canoa desequilibrando a mira, enquanto das margens, o ataque veio por entre o folhame em riscos de morte. Vivos somente os remeiros e o chefe dos preadores, flechado de raspão no rosto.

No Abaribó, abundância e muita festa, resulta-do da armadilha. Os remeiros se misturaram ao cotidiano dos aldeados, alguns encontrando até parentes ali.

João Bocovó, reconhecido e temido por muitos, foi trancado e vigiado dia e noite, o ferimento no rosto formou uma pústula que contaminou o olho direito; as dores insuportáveis, a febre alta o faziam gritar de dor e delirar. Aos gritos dava ordens, lembrava escaramuças e devassidão, as índias usadas, seus filhos, comida peada que se carregava sozinha; contava seus teres e haveres como se desse conta a alguém; chamava os padres nome a nome, enumerando pecados, falava com lascívia das índias e se punha nu, copulando-as na lembrança. Enlouquecia. Com isso, retardava o dia de ser comido e diminuía a vigilância.

A fuga se deu num começo de madrugada. Cego de um olho, enxergou a oportunidade e se embrenhou no escuro da noite, debaixo de chuva grossa e o farfalho da mata nos ouvidos. Vagou pelos igapós do sertão abaribó com o mormaço lhe queimando abafado durante o dia e o frio que a chuva punha nas noites lhe gelando os ossos. Encontrou o Acaraxiteua sem muita dificuldade, mas na margem oposta a que tinham seguido quando aprisionado; o olho purgava em mal cheiro, o corpo lanhado e enfraquecido obedeceu até puxar a galhada da arvore pra dentro do rio.

Acordou com um barulho compassado de madeira batendo em madeira, estava cego e preso nos galhos que a maré vazante movimentava de encontro com o casco do navio fundeado no porto da Cidade do Pará.
Nele os jesuítas embarcavam expulsos da província.




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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Iên e Zu Munducu - MQ


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Quando viu, veloz e em saltos no meio fechado do mato, pensou: guariba. Não era. Pensou pintura sem preceito, desar. Não era. Caça fora de hora no espaçado do dia, parecia.

Acompanhou pisando silêncios até o destro gesto. No outro, metade susto, metade medo. Caça nada, parecia resto de fogo sem fumego, avaliou quanta carne, armou a borduna de tucum, recém tirada.

Queria o assado vivo, pensou; esse prostrou manso facilitando o golpe ou adivinhando intenção de ser levado. Olhou no detalhe cuidando distância; viu os molambos que o outro vestia; a pele porejando, escura e brilhante. Não resistiu, baixou o braço e o tocou com a ponta da arma falando.

- Iên... iên... iên...

De joelhos, sem entender aquela língua mais estranha ainda do que a que vinha ouvindo desde o navio, levantou a cabeça e gesticulando desandou a contar sua história para espanto e risos do pajé. Ria de sua fala mais enrolada que a dos outros e de seu jeito de animal já ferido. Sem entender as risadas, o negro voltou cabisbaixo para sua submissão. Calaram-se. O escravo esperava o golpe, o pajé queria ouvir mais, apontava a arma:

- Iên... iên... iên... pedia ouvir.

Ficaram tempo... um gesticulava e falava muito; o outro ria sem abandonar o domínio da presa. Quando o índio ria, o negro parava e abaixava a cabeça. Parecia uma brincadeira, o índio lembrava o movimento da dança do tamanduá, boleando a arma. O negro medrava como precito, bongando dor como no castigo do bambaquerê.

Entraram juntos para espanto da aldeia, o pajé o exibindo como um animal de estimação. Esperou juntar todos em volta e cutucou falando:

- Iên... iên... iên... repetindo a brincadeira que fez muitas risadas.

Desse dia em diante, o negro virou a sombra do índio, sempre um passo atrás, acompanhando onde quer que fosse, era servidão e a curiosidade em aprender puçangas e feitiços, não ocultando modos que sabia, conhecimentos de raízes, folhas e musgos. Quando os dois se embrenhavam no mato, ficavam por dias e dias colhendo toda sorte de ervas e, de retorno, faziam experimentos, beberagens e inalações como se fossem dois boticários em pesquisa de cura.

Virou um igual - de nome ficou Iên - a sombra do pajé a quem chamava Zu Munducu. Inseparáveis. Calada a língua, falando por olhares, sinais e meios, se entendiam mais ainda no colher ervas, em lidar com as encantarias e na evocação de espíritos, sabedoria de um e de outro se misturando e misturando as línguas.

Iên vivia na maloca sem participar de nenhuma festa, deles, recebia nestas ocasiões, o naco de comida das mãos de Zu Munducu; mas pelas frestas do palhiço acompanhava as cerimônias de preparo da carne, fosse caça ou carne humana; as danças e rituais de alegria e cura.

Afastado dos demais, ficou até o dia que trouxeram um dos presos, peado no cercado. A pancada na testa derrubou o corpo no chão. Iên olhou Zu Munducu, viu consentimento. Correu, tomou a dianteira pra descarnar, cabendo, valente, nas vistas de muitos e no espanto do pajé. Cortou como eles, limpou, corou como nunca viram, esfregava as costas da mão esquerda na cavidade do ventre e entoava palavras parecidas com as já ouvidas. Soaram melancólicas, calando qualquer riso. Foi olhado de um modo diferente quando pelou pernas, braços, separou a cabeça e entregou ao pajé, murmurando profundo como no ritual. Serviu as partes dando gritos e rindo alto, tinha aprendido tudo.

No passar do tempo a aldeia foi se acostumando com a presença do negro, todos o tratando como igual, aceitando outros escravos fugidos, como ele, aparecendo sozinhos, em pequenos grupos e, às vezes, misturados com índios de outras aldeias, chegados por vontade, sem lutas.
O lugar ia cafuzando, crescendo seus domínios, misturando as raças e os costumes, protegido pela valentia e mistério. O jeito dos negros em tratar os fugidos contaminava. Passaram a fazer o mesmo com os capturados transformando o Abaribó numa mistura de muitas tribos com quilombolas. Lugar de liberdade, calaçaria, igualdade, magia, dançarás e alegria.

Tapuiúnas e tapuitingas impregnados naquelas matas surpreendiam comboieiros e grandes descimentos, aumentando a população raciada de índios, negros e mestiços aldeados na extensão de muitas léguas.

Acumulavam a comida viva, aprisionada, para grandes festejos. Comum, Zu Munducu, separar dos brancos os que tinham algum traço de sua raça ou da de Iên. Esses viviam em liberdade, a menos que não se submetessem, eram tratados como iguais, alimentados e não trancados em cercados vigiados, como os outros.
Eram mais de sessenta peados, um jesuíta e oito brancos fortemente armados. Foram dominados na escaramuça, maior grupo preso pelos abaribós, dos oito brancos, três feridos, dois mortos e comidos no local do encontro. Primeira vez que capturavam um padre, causou rebuliço. Muitos ali conheciam os jesuítas das missões, esse foi mantido separado dos demais, era um fascínio para as mulheres que dele cuidavam, comia muito e nunca foi comido, morreu velho, ensinando coisas, trancado mas espalhando descendentes. Do tempo, desse dia, ficaram poucos rituais. Os capturados serviram de escravos até se acostumarem ao jeito de viver no Abaribó, virando gente de lá, se misturando nos quereres de todos, plantando mandioca, fazendo farinha, aprendendo junto alegrias e todas as danças.

Os infensos acabavam por deixar envelhecer cativos no mais bruto dos fazeres, vigiados sem castigo até a morte. Serviam de brincadeira para as mulheres e crianças. Uns tentavam fugir, sem caminhos, errando o rumo das águas, se perdendo dos limites e se embrenhando na sesmaria dadivosa, corpos nunca achados, virando húmus ou comida de animais.

A sabedoria de Iên e Zu Munducu perdurava pela lembrança de todos; anos de harmonia com o natural e as encantarias, inçando quem chegasse fugindo do que quer que fosse.

Quanto mais crescia o lugar, mais ousados ficavam, indo longe buscar pelas trilhas, capturar viajantes de quem esbulhavam tudo. Como os dois ancestrais cuidavam harmonia. Nessas incursões fizeram o primeiro contato com um regatão, na tensão de armas que só não resultou em luta porque a cor da pele identificou iguais de um lado e de outro.

Dali ficou, para os abaribós, o comércio das drogas do sertão, as trocas e a fama do lugar que correu pelas águas, levada pelo comércio ambulante dos poderosos, ligando-os aos oprimidos e desvalidos, atraindo fugidos que achavam o rumo das suas terras, lugar onde tudo se podia.
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terça-feira, 26 de agosto de 2014

colho cura

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colho cura
na seiva
das bruscas histórias
que conto aqui

reboleira de sementes

luta brasileira travada
no sertão do reino
das pessoas comuns

tenro ventre
onde teima
a liberdade
sempre querer nascer


MQ


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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

oração de floresta e rio - mq


 
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oração de floresta e rio



 

canto de abertura (canto da terra)

 
a floresta range

num rio dentro de nós

o rio  ruge

na floresta aqui em nós

orai por eles

orai por nós

 

sons de lendas

visagens que ardem

rogai por nós

 

mãos postas em desafio

vento  indo

rodopiando as direções

da hora norte

rogai por ele

zelai por nós

 

corpos em eito de águas

impregnados

escorrendo

anchos

esquecidos

orai por eles

rogai por nós

 

alma de floresta

esfarrapada pungindo

orai por ela

rogai por nós

 

alma de rio

se amiudando

sumindo

orai por ele

rogai por ele

zelai por nós

 

afluentes homens rios

calados passando e

vendo passar

 

leito lodo ruindo

homem vindo

da aridez de mãos tardias

e intenções vazias

bisbilhotando

escolhendo

vindo

vindo

 

a floresta range

num rio

o rio ruge

na floresta

urge

urge

 

juntai os homens rios

das margens e matos

com seus calos

e terçados

 

juntai seus afluentes

em estridência de águas

suas chuvas

em emoção de pranto

 

juntai sementes em

húmus férteis

maternais

 

juntai seus habitantes

mais primitivos

sabedores dos seus

mistérios

seres rudes

mas racionais

predadores de mãos

limpas e férteis

 

juntai floresta e rio

suas entidades

suas lendas em  labaredas

o espírito dos seus

mortos

que vivos

estão impregnados

nas suas águas solidárias

no seu verde calado

 

e quando todos juntos

estiverem na oração maior

que é reunir

somente um grito será dado

escolhendo com as entranhas

 

o que se quer daqui



 

canto da alma da floresta
 

resulto em harmonia

no corpo esparramado

esfarrapando

tocado pelo sol

possibilitando  ainda

nascentes

vidas

 

resulto da esperança

de habitantes

em convivência

de chagas lacerantes

que cubro toda noite

com uma colcha de estrelas


 
 

canto da alma do rio

 
do ventre

que venho

o ventre que tenho

traz saudade

da nascente

mas em abraços

recebo contente

todas as águas

que correm em mim

e toda a ferida

que purga por dentro

quando rebento

na angústia de desaguar

se cura no sal

que me é sina

de sempre encontrar


 
 

canto dos afluentes

 
seiva silenciosa

matando arredores

deixado nascer

o verde e o maduro

conduzindo o homem rio

servindo-lhe mesa farta

ensinando aonde ir

 

seiva silenciosa

canto dolente

afluentes

que depois viram braços

entrando

alimentados

e alimentando

fertilidade

 

vão indo

convivendo

semeando

seiva e silêncios

com seus gritos


 
 

canto do vento
 

tece os espaços

leva no ar

o bico dos pássaros

canta

mensageiro de

sementes

em vôo livre

escolhendo

e se soltando

em liberdade

de pé de vento

e rodopio

misturado em desalinho

nas copas

nos caminhos

desfazendo pontaria

espalhando gestos

e intenções de assobio

rindo


 
 

canto das margens
 

sou lugar de chegar

e partir

 

sou paralela

ponto por ponto

 
às vezes,  me aproximo

e quase beijo

receosa,  me afasto

mas desejo

 

sou assim

indecisa por inteiro

nunca me afasto tanto

da outra margem

de mim

 

todos me querem

desde o olho d´água

pensando que me divide

até o outro lado

que tanto insiste

 

mas sempre faço convite

quando espraio

em sedução

 

sou também estrada, limitação

corro em águas

com a alma dentro do chão



 

canto da chuva
 

sou inesperada

e gosto assim

caio ou me espalho

onde quero

 

às vezes, sou mansa

e acaricio

 

noutras, me desalinho

inundo

 

vivo no ar

mas no fundo

gosto mesmo

de dar de beber

de embriagar

encher os rios

escorrer

fertilizar


 
 

canto da semente

 
broto pelos cantos

corro em bicos e corpos

voando

 

sei nadar

sonho em frutos

e viro galhos

entrelaço

crio espaços

quero o sol

 

sou o pólen no labor

em mistura

de flor

 

semeada

dou-me inteira

sustento tua boca

abrigo-te sedutora

 

quando me busco

sozinha na terra

luto bravamente

pra ser de verdade

semente





canto dos animais

 
no rasto

no risco d´água

na intenção de céu

em invisível caminhar

também semeamos

nossos universos

somos muitos

entre floresta e rio

em palmos

e gotas

no equilíbrio

de nós mesmos


 


canto dos corpos

 
sou bainha que recebe

a lâmina fria do terçado

de terça a terça

de todas as semanas da lida

vivo

espetado na exuberância

que a simplicidade não imita

sei andar

navego

e tenho liberdade dos gestos

de conhecer até a próxima curva

 

sou negado em generosidade

de peixes e frutos

no desmazelo de quem me aparta

 

sou também a conformação

inconformada em mim mesma

imito a floresta e o rio

crio histórias pra esquecer

lembrando

quem posso ser, sendo



 

canto das lendas
 

caminho

das histórias

de boca a ouvido

passando

de ido a indo

pra  memória

de quem virá

 

verdadeiro

relato que é

possível contar

na palavra que

engole os rios

e faz a floresta

sonhar



 

canto dos mortos

 
zelai por nós

em nossa hora futura

 

vós que sois o húmus

que esterca floresta e rio

com a vida morta

de vossos corpos

em brio e semente

 

vós que com o espírito

em prantos

quer por essa terra

tão pouco e tanto

 

vós, com vossa voz

ancestral

nos ensina a cantar

nossos vivos

 

vós que fostes

resplendor

possibilite essa referência

ensina-nos a rezar

por todos nós



 

canto das mãos
 

santas que no remar

gestos de oração

rogam por nós

 

mãos que pedem

padecidas

que manuseiam

e se doam

que abraçam em colheita

mãos que ferem

fenecendo

e que benzem

cortam

e são cortadas

que protegem

e que agridem

 

mãos postas

em carinho

ou em calos

na noite do teu corpo


 
 

grito dos reunidos

 
gritamos a hora norte

 

da harmonia

possibilitar

 

da convivência

acrescentar

 

das feridas

cicatrizar

 

das cicatrizes

só lembrar

 

gritamos na hora norte

escolher

limitação

 

conduzir

fertilidade

 

sustentar

nossa busca

 

e buscar

nosso destino

 

gritamos em hora norte

que venham

somar e multiplicar

a nossa generosidade

 

gritamos a hora norte

na história

do nosso canto

 

o sonho

também de nossos mortos

que trazemos

por entre as mãos




 

canto final (canto da terra)

 
nossos corpos

puros na impureza

de reinar

em floresta e rio

 

nossas mãos

vento e chuva

em floresta e rio

 

sementes

de afluentes

nas margens

reunidos

 

com quem vive

e vem viver

com quem morto

vem morrer

 

com quem cantamos

e canta nesse  grito

 

o que se quer daqui
 
 
 
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