sexta-feira, 27 de março de 2009

MACHADO DE ASSIS

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Gazeta de Notícias - 22/07/1894

OS DIREITOS da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome nem a doutrina. Já este mistério é poesia. Contam-se muitas anedotas, diz-se que o chefe manda matar gente, e ainda agora fez assassinar famílias numerosas porque o não queriam acompanhar. É uma repetição do crê ou morre; mas a vocação de Maomé era conhecida. De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem consigo milhares de fanáticos. Também eu o disse aqui, há dois ou três anos, quando eles não passavam de mil e tantos. Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se despega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até à morte. Que vínculo é esse?


No tempo em que falei aqui destes fanáticos, existia no mesmo sertão da Bahia o bando dos clavinoteiros. O nome de clavinoteiros dá antes idéia de salteadores que de religiosos; mas se no Koran está escrito que ‘o alfanje é a chave do céu e do inferno’, bem pode ser que o clavinote seja a gazua, e para entrar no céu tanto importará uma como outra; a questão é entrar. Não obstante, tenho para mim que esse bando desapareceu de todo; parte estará dando origem a desfalques em cofres públicos ou particulares, parte à volta das urnas eleitorais. O certo é que ninguém mais falou dele. De Antônio Conselheiro e seus fanáticos nunca se fez silêncio absoluto. Poucos acreditavam, muitos riam, quase todos passavam adiante, porque os jornais são numerosos e a viagem dos bondes é curta; casos há, como os de Santa Teresa, em que é curtíssima. Mas, em suma, falava-se deles. Eram matéria de crônicas sem motivo.

Entre as anedotas que se contam de Antônio Conselheiro, figura a de se dar ele por uma encarnação de Cristo, acudir ao nome do Bom Jesus e haver eleito doze confidentes principais, número igual ao dos apóstolos. O correspondente da Gazeta de Notícias mandou ontem notícias telegráficas, cheias de interesse, que toda gente leu, e por isso não as ponho aqui; mas, em primeiro lugar, escreve da capital da Bahia, e, depois, não se funda em testemunhas de vista, mas de outiva; deu-se honesta pressa em mandar as novas para cá, tão minuciosas e graves, que chamaram naturalmente a atenção pública. Outras folhas também as deram; mas serão todas verdadeiras? Eis a questão. O número dos sequazes do Conselheiro sobe já a dez mil, não contando os lavradores e comerciantes que o ajudam com gêneros e dinheiros.

Dado que tudo seja exato, não basta para conhecer uma doutrina. Diz-se que é um místico, mas é tão fácil supô-lo que não adianta nada dizê-lo. Nenhum jornal mandou ninguém aos Canudos. Um repórter paciente e sagaz, meio fotógrafo ou desenhista, para trazer as feições do Conselheiro e dos principais subchefes, podia ir ao centro da seita nova e colher a verdade inteira sobre ela. Seria uma proeza americana. Seria uma empresa quase igual à remoção do Bendegó, que devemos ao esforço e direção de um patrício tenaz. Uma comissão não poderia ir; as comissões geralmente divergem logo na data da primeira conferência, e é duvidoso que esta desembarcasse na Bahia sem três opiniões (pelo menos) acerca do Juazeiro.

Não se sabendo a verdadeira doutrina da seita, resta-nos a imaginação para descobri-la e a poesia para floreá-la. Estas têm direitos anteriores a toda organização civil e política. A imaginação de Eva fê-la escutar sem nojo um animal tão imundo como a cobra, e a poesia de Adão é que o levou a amar aquela tonta que lhe fez perder o paraíso terrestre.

Que vínculo é esse, repito, que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro? Imaginação, cavalo de asas, sacode as crinas e dispara por aí fora; o espaço é infinito. Tu, poesia, trepa-lhe aos flancos, que o espaço, além de infinito, é azul. Ide, voai, em busca da estrela de ouro que se esconde além, e mostrai-nos em que é que consiste a doutrina deste homem. Não vos fieis no telegrama da Gazeta, que diz estarem com ele quatro classes de fanáticos, e só uma delas sincera. Primeiro que tudo, quase não há grupo a que se não agregue certo número de homens interessados e empulhadores; e, se vos contentais com uma velha chapa, a perfeição não é deste mundo. Depois, se há crentes verdadeiros, é que acreditam em alguma cousa. Essa cousa é que é o mistério. Tão atrativa é ela que um homem, não suspeito de conselheirista, foi com a senhora visitar o apóstolo, deixando-lhe de esmola quinhentos mil-réis, e ela quatrocentos mil. Esta notícia é sintomática. Se um pai de família, capitalista ou fazendeiro, pega em si e na esposa e vai dar pelas próprias mãos algum auxílio pecuniário ao Conselheiro, que já possui uns cem contos de réis, é que a palavra deste passa além das fileiras de combate.

Não trato, porém, de conselheiristas ou não-conselheiristas; trato do conselheirismo, e por causa dele é que protesto e torno a protestar contra a perseguição que se está fazendo à seita. Vamos perder um assunto vago, remoto, fecundo e pavoroso. Aquele homem que reforça as trincheiras envenenando os rios, é um Maomé forrado de um Borgia. Vede que acaba de despir o burel e o bastão pelas armas; a imagem do bastão e do burel dá-lhe um caráter hierático. Enfim, deve exercer uma fascinação grande para incutir a sua doutrina em uns e a esperança de riqueza em outros. Chego a imaginar que o elegem para a câmara dos deputados, e que ele aí chega, como aquele francês muçulmano, que ora figura na câmara de Paris, com turbante e burnu. Estou a ver entrar o Conselheiro, deixando o bastão onde outros deixam o guarda-chuva e sentando o burel onde outros pousam as calças. Estou a vê-lo erguer-se e propor indenização para os seus dez mil homens dos Canudos...

A perseguição faz-nos perder isto; acabará por derribar o apóstolo, destruir a seita e matar os fanáticos. A paz tornará ao sertão, e com ela a monotonia. A monotonia virá também à nossa alma. Que nos ficará depois da vitória da lei? A nossa memória, flor de quarenta e oito horas, não terá para regalo a água fresca da poesia e da imaginação, pois seria profaná-las com desastres elétricos de Santa Teresa, roubos, contrabandos e outras anedotas sucedidas nas quintas-feiras para se esquecerem nos sábados.

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