terça-feira, 30 de junho de 2015

Lunaiá e João Tungo - MQ


 

 

Eram quase trinta, entre alugados e forros, amontoados na porta. Serviço, o de sempre; coveiro, carregador de excrementos, de estivas e do mercado, vez em quando carrasco ou surrador.   

O oficial apontador escolhia entre eles quem melhor o  favorecesse. Destacava o trabalho com o mesmo critério. Reclamar a quem? Ficar perseguido? Tudo era aceito.

Lunaiá,  João Tungo e os filhos, negros de ganho da viúva do oficial Antônio Dalgosto, agradavam ao apontador para limpar os excrementos e carcaças de animais, modo andar pelas ruas e lugares, encontrar os iguais sem despertar atenção dos soldados. Podiam parar em qualquer ajuntamento e tentar convencê-los a largar seus donos, sabiam todos os movimentos no interior, ensinavam caminhos mas, o mais importante era transportar no bangüê as armas e munições roubadas, de um lugar pra outro, principalmente a pólvora que era ensacada em pequenos bornais e facilmente escondida em meio aos excrementos . Recebido o sinal de que tinham alguma coisa pra levar, baixavam a padiola pra descanso em lugar conveniente. Para entregar, puxavam o canto de trabalho perto do destinatário:         

 

paresque i’ele

pissuía curuba

iu’oto caxingava

tucavum caracaxá

tambur punga

i ganzá...

 

c’us ói  de jetatura

nhanga vi’u buzugo

lundu d’ele suzinho

gingando inroda

na patra dutro mundo

 

Serviam de ouvidores das conversas de soldados e mestiços se gabando de crimes e delitos - iam lá saber o que  eram farrambandas ou não? Relatavam tudo que ouviam, os nomes dos contrários, os comentários dos políticos, o que mais pudesse ajudar os cabanos nas matas de Nazaré. 

O casal passava despercebido pelas ruas, cumprindo serviço público e lutando pela liberdade. Eram a maior ligação entre os que simpatizavam com a causa, mas queriam ficar no anonimato, e os grupos que se organizavam. A pólvora mudava de mão em quantidades cada dia maiores. Mas o dia chegou, foram surpreendidos pelo oficial inglês que queria saber que canto era aquele.

 

paresque i’ele

pissuía curuba

iu’oto caxingava

tucavum caracaxá

tambur punga

i ganzá...

 

c’us ói  de jetatura

nhanga vi’u buzugo

lundu d’ele suzinho

gingando inroda

na patra dutro mundo

 

Em conhecer o significado, descobriu os pequenos sacos de pólvora no bangüê, entre o mal cheiro e as fezes dos animais.

Os escravos, na frente da dona, explicavam ter encontrado aquilo na rua e que, como fedia, fizeram seu serviço. A viúva ameaçava o oficial, acreditando nos negros; ele querendo fazer cumprir castigo,  levou-os presos.

O castigo foi dado exemplarmente em público. O casal foi açoitado pelo algoz encapuzado, em meio das risadas de quem assistia.

Quem observasse pelo furo do capuz, os olhos do algoz, veria as lágrimas correndo. Lunaiá e João Tungo estavam sendo chicoteados pelo próprio filho que ganhava como surrador naquele dia.

 

 
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segunda-feira, 29 de junho de 2015

Antoíno Boi - MQ



Ordenhou a vaca, escolhida no zelo da confiança, tirou tipuca separada na cuia ornada que Dedé Peixada trouxe da Vila de Monte Alegre, esperou o terço canto de galo e caminhou pra cozinha, certo do cheiro, café acabado de coar. Acocorou no batente da porta, depois de deixar a cuia em cima da mesa grande, enredando capim-açu, formato laço como de cabelo que deixava todo dia secando na ponta do varal das lingüiças - pra acendê fogo, dizia a Deralda.

Era assim, não parava quieto, lidava com o gado de curral ainda escuro. Quando recendia o cheiro do tição, apagado na véspera, sendo acesso junto com lenha nova, as vacas paridas já iam longe das vistas. A bezerrada berrava miúda no cercado. O tempo de esperar Sinhá comer biju e notar a cuia cheia, de ele tomar a bênção; era o de trançar um laço.

Conhecido no nome de Antoíno Boi, dado por dizer ser boi quando, no meio deles, conhecer o que pensavam os muitos. Seu modo de lida, apreciado pelo dono, o distinguia dos outros escravos, quase todos filhos dos dois casais comprados de um arruinado, vindo da Guiana.

 Benquisto desde menino, cresceu levando o gado para pastar capim-da-praia e ajudando no curral. Rapaz, ajudava nos aceiros, alotava e acunhava o gado no embarque nas gambarras. Agora cuidava de tudo, até do leite gordo da Sinhá.

Ouviu falar por Dedé Peixada numa salga de pirarucu. Era coisa séria, logo iam tomar a província, alforriar todos, expulsar os estrangeiros, todos iam lutar; contou que a Vila estava cheia de soldados, oficiais estrangeiros, viu descarregar pólvora, armas e até uma canhoneira, fundeada.

Antoíno pensava na vida que tinha, a fartura; nunca faltava nada pra eles, podiam plantar o que quisessem, até fumo, todos muito sadios, cuidados em qualquer doença, a bondade do Sinhô e a Sinhá rezando junto, rezou quando o pai morreu, rezou e também chorou quando a mãe morreu. Cuidou a febre de Deralda quando cobra ofendeu. Ali nunca viu usar o ferrete, a não ser no gado. Aceitavam a alegria deles, vinham ver dançar lundu e batuque.

Conversava com os outros, cada um pensava dum jeito. O irmão mais velho ia embora, junto com outros dois parentes, pro Acará; diziam juntar pra fugir mais de trinta. Sonhavam ser brasileiros livres.

Nunca lembrava do pai achar a vida ali ruim, ou falar de onde veio; lembrava sim, de vê-lo com a mãe, ajoelhados, rezando junto com Sinhá. De falar dos franceses da Guiana, nunca da África onde nasceu. Da liberdade, dizia que era pra cada um, uma coisa diferente, era o que convinha. Se sentia livre sendo escravo de quem era, provido de tudo, nunca fora humilhado como sabia muitos, para esses sim, a liberdade era outra coisa.

Desde menino, Antoíno via os principais, reunidos na mesa grande do salão, falando dos reinóis explorando tudo na província, o preço da carne e o transporte, seus armazéns sobrepondo preço para os foreiros e mestiços sem trabalho de renda.

Naqueles dias, muita gente apareceu em conversas demoradas, Sinhô passava tempo com o cenho franzido. Todos falavam do movimento dos navios, vistos de longe entrando pelo Rio Pará.

Dedé Peixada encostou trazendo recado; era chegada a hora; quando fizesse noite iam desarmar a Vila, tirar as armas e remar pro Acará. Num meio de dia, começou a chegar gente de todo lugar, muitos armados, outros com machados, facões e outras ferramentas. Antoíno nunca tinha visto tanta gente reunida, nem no pátio nem na cozinha onde preparavam a munição de boca. Até Sinhá ajudava Deralda dar as ordens.

Na varanda, Sinhô esperava por ele. Ia ficar só com Sinhá, as mulheres e crianças,  disse-lhe. Elas ajudam lidar com o gado. Recomendava o manejo, a caça aos morcegos e o cuidado nos embarques. Enquanto ouvia, pôde ver o irmão mais velho distribuindo os poucos cartuchames, não precisou fugir, ia lutar junto com Sinhô. A liberdade para os dois era parecida.

Nos dias, Sinhá pedia conta de todo o serviço, ouvia atenta, perguntava. Punha ordens. Contava na cozinha histórias da mocidade, perguntava casos. Antoíno e a meninada ficavam sentados no chão, ouvindo também, era o que mais gostava, depois de agradar a Sinhá com tipuca.

Empaiolava o milho, as poucas braças colhidas por Severa e os filhos, quando a notícia chegou. Na cozinha, o vozerio abafou os mugidos dos bezerros, passando de hora de serem desapartados. Deralda gritou da porta chamando. Tinham tomado o governo, estavam todos vivos.

Antoíno tocou os bezerros na aberta, margeando o canavial, até a eira velha, sentou na areia, enquanto a bezerrada lambia sal, olhou a larga do Marajó, respirou fundo e lembrou o pai, liberto como ele.    

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domingo, 28 de junho de 2015

CAMINHO DA PEDRA


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sábado, 27 de junho de 2015

ENTÃO, FOI ASSIM? - RUY GODINHO

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O programa Então, Foi Assim? deste sábado, será inteiramente dedicado ao talento e criatividade do cantor, compositor e dançarino paraense Leandro Medina, gravado por diversos intérpretes.
 
Na ocasião ele revelará as histórias de:
 
- Borzeguita;
 
- Pretinha;
 
- Mina Banto
 
- Xangô te xinga e
 
- Mãe Canô (c/Renato Epstein).


Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira, sábado, às seis da tarde na Nacional FM com retransmissão para mais de 240 emissoras em todo Brasil.
 
Produção e apresentação: Ruy Godinho

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sexta-feira, 26 de junho de 2015

RODA DE CHORO - RUY GODINHO

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O destaque do 1º bloco é um dos grandes flautistas dos primórdios do Choro, o fluminense Patápio Silva, interpretado pelo excepcional duo paulista Bico de Pena.
 
O 2º bloco traz o Grupo Flor de Abacate criado 1989, em Belo Horizonte/MG.
 
No 3º bloco teremos a musicalidade do violonista e compositor carioca Maurício Carrilho e o som do CD Choro Ímpar.
 
No 4º bloco estará presente o CD Timoneiro - Hermínio Bello de Carvalho, mais um disco homenagem que cumpre seu papel de celebrar uma personalidade.
 
No 5º bloco o bandolinista Rodrigo Lessa faz uma visita ao programa para reapresentar seu primeiro CD como solista de bandolim, No Bangalô da Bandola, lançado em 2004.
 
Roda de Choro, sábado, meio dia pela rádio Câmara FM, 96,9 MHz, de Brasília, retransmitido em mais 205 emissoras pelo Brasil, Japão e Angola.

Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
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quinta-feira, 25 de junho de 2015

Zé Bugio -MQ


 

 

O grupo se reuniu naquela noite. Combinaram resistir à sobranceria da coroa. Dali saíram emissários para todo lugar na urgência dos fatos.

De couto, no camboqueiro, às margens do Bujaru, Zé Bugio, sungando as calças toda hora, esperava notícias com os homens reunidos. O lugar, vigiado em todas horas, fervilhava de fugidos, tapuios, cafuzos e os curibocas enviados do Acará. Estavam prontos, era a força formada em poucas armas tomadas em escaramuças, nos caminhos e na revolta fermentada pela exploração portuguesa. 

O mensageiro foi chamado de madrugada para levar a mensagem, passou mal e finou no caminho. Pediu ao remeiro entregar a carta mas não deu tempo de contar do conteúdo. Começou a falar de um grande ataque para assumir a província, mas não conseguiu completar, ficou sem falar do dia, e dos procedimentos.

Zé Bugio, ao receber a mensagem, pediu ao portador que a lesse, mas o rapazote não sabia. Ninguém ali sabia ler para desespero do destemido Zé Bugio.

Juntou um grupo de seguidores, que municiou com as melhores armas para buscar no engenho, léguas acima, quem soubesse, qualquer pessoa, fosse escravo ou não, por vontade ou à força se preciso.

Ele mesmo ficou andando de um lado para outro, o dia inteiro e, à noite, passou horas em volta da fogueira olhando as letras daquela caligrafia bem traçada; vez em quando esbravejava por ninguém saber ler. Dali não arredou até amanhecer.

Gastou a madrugada chamando, ora um, ora outro, como se inventariasse as condições de cada e suas armas. Uma inutilidade aquilo, pensava nos homens, consumia-se naquela providência sem saber o que fazer do tempo, na impaciência de esperar.

O dia clareava, já nascendo mormacento, quando ouviu, enfim, o barulho dos homens, chegando com o feitor do engenho, amarrado pelas duas mãos num pau atravessado no pescoço, como se canga fosse. Vinha coxeando, com um riso esquecido no canto da boca, de cabeça erguida, numa altivez que dava raiva; limpava no ombro, toda hora, o filete de sangue que escorria no canto da boca.

Trocaram ásperas palavras no meio da roda formada, Zé Bugio estendeu o papel que o feitor leu quase à força, tal qual estava escrito; a convocação era para que tomassem pelo Acará, o rumo de Murutucu em grupos poucos homens, levando toda arma e toda pólvora que conseguissem, terçados, cacetes e o que mais tivessem, deveriam chegar em dois dias, iam tomar a cidade de surpresa.

Ali mesmo, depois de ler a mensagem, o feitor foi morto a pancadas. Um sofrimento que lhe impingiram num ritmado igual se tivesse no tronco, vingando castigos e maus tratos.

Traçaram o rumo, espaçando a saída de cada grupo, na recomendação de margear os caminhos e evitar serem vistos ou qualquer confronto. O prazo de se juntarem de novo era o ponto da Biqueira onde as canoas esperavam para atravessarem o Acará.

Zé Bugio seguia com o negro Fitada e João Camboa quando este exclamou:

 

        Leu errado! O desgraçado leu errado, sabia que ia morrer.

 

Disse como se tivesse certeza e contagiou os companheiros. Zé Bugio esbravejou em demônios, travou a marcha, enquanto pensava e tomava a decisão de seguir, mesmo que o rumo fosse o contrário. Pensou alto que a cidade não ia sair do lugar, por qualquer lado que chegassem ia ser igual,  estavam prontos para qualquer luta.

Mal pensamento restou, e se os remeiros estivessem esperando na baía e o combate que lhes destinaram fosse na armada? Avaliava nervoso, caminhando, mesmo na indecisão, quando ouviu o barulho de resfolego de animal e a voz, parecendo de mulher.

Aviou João Camboa, ladeando pela esquerda; qual foi a surpresa; era a viúva Teodora e a mucama no caminho com mais dois negros velhos, pessoa tida como corajosa, dona daquelas terras por herança de finado marido, era respeitada por todos e temida por muitos.

Assustadas, mas sem esboçar o menor sinal de impor galope nos animais, ficaram caladas até Zé Bugio estender o papel e pedir que a sinhá lesse. Ela o fez se empalidecendo muito, confirmando na sua leitura as suspeitas de que o feitor tinha mentido, deviam era margear pelo outro lado, até avistar as canoas.

Um sinal de cabeça e um tapa nas ancas do cavalo foi o agradecimento. A raiva dominou a hora no esbravejar do cabano, os três se puseram de novo no mato, não sabiam o que fazer para juntar os grupos espalhados e ficaram mais afobados ainda com o comentário de Fitada.

 

        Cunheço ela! Tá mintindo... mais quê tá...

 

Zé Bugio pediu marcha, a cidade estava lá, atacava por onde fosse. 

 

 

 

 

 
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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Pantaco e Buiú - MQ


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Vinha no rebojo do braço de rio que crescia e minguava solavancando as águas, remoinhando como numa bateia, fúria de vento encanando rodopio, hora tardia de margear, pensou antes de avistar o mandiocal.

A riqueza estava ao seu alcance, podia tocá-la; com a moeda entre os dedos, pensativo, passou o polegar no serrilhado como se conferisse o valor, pôs-se na direção até enxergar a casa.

O silêncio conferiu, todos dormindo; no claro da noite escolheu onde esperar a melhor hora. Na aurora ouviu os primeiros movimentos, se aproximou vendo Vicente Martins Lopes sentado na rede calçando as botas, subiu dois degraus da varanda e disparou. O estampido ressoou pela casa na primeira hora da manhã, quem correndo chegou perto ainda viu o último sangue esguichando, estava morto. 

Pantaco, sem que ninguém o visse, entrou pelos matos, mesmo caminho que veio, atravessou a calma das águas naquela hora, ia buscar sua riqueza com os irmãos do morto.

Vicente Martins Lopes era o primogênito, filho de reinóis, nascido na Cidade do Pará, beneficiado com o morgado do pai, herdade, escravos, casa comercial e outras rendas.

A irmã, Constância, viúva sem filhos, vivia com ele no casarão da Rua dos Mártires; seu irmão, Jorge sempre em viagens pela Europa, custeadas por Vicente que nunca se casara, passava muito tempo na fazenda desde que se unira aos foreiros para se opor aos sucessivos governos portugueses e seus simpatizantes que menoscabavam o valor dos brasileiros.     

Pantaco, de mãe africana e pai mameluco, moreno claro, forte, bem vestido e calçado por exigência de sinhá, parecia um alforriado bem sucedido quando andava pelas ruas. Mas vivia junto com os outros quatro escravos no casarão, era o preferido da senhora e a servia como se fosse uma mucama.

Jorge, sempre que voltava de suas viagens, manifestava à irmã o descabido; não dividirem os cabedais deixados pelo pai. Precisavam fazer alguma coisa, não podiam ficar à mercê do irmão que vivia metido com foreiros, pregando idéias de infames. Queria vê-lo morto, já que não aceitava falar em dividir os bens.

Observava a dedicação do escravo à irmã com malícia no olhar mas também com a naturalidade de homem muito viajado, freqüentador da corte, acostumado com o predomínio da vontade dos mais poderosos. Via em Pantaco, escondida, a mesma ambição que sentia. Aliciá-lo, para seu propósito, foi mais fácil que convencer Constância.

Pôs em sua mão a primeira moeda portuguesa das muitas que receberia; instruiu, junto com a irmã, a alforria. Combinaram esperar seu embarque para Portugal, a animosidade aumentar na política da província e os outros da casa acostumarem com Pantaco dormindo, de vez em quando fora, em serviço de aluguel na marinhagem. Constância concordava em acompanhar pelo pasquim pregado na porta da Lopes & Filhos, a situação política e dar o dia certo da consumação.

A notícia chegou do Acará junto com o corpo, um casal de escravos e o velho tapuio Buiú. Espalhou-se entre os políticos rapidamente levando muitos deles, consternados, a se reunir, partidários e oponentes culpando uns aos outros.   

Pantaco providenciou, na igreja, o sepultamento, a mortalha, a música fúnebre e o pagamento das mortuárias. As exéquias, no mesmo dia, foram assistidas na igreja, cheia de partidários do morto, muitos comerciantes e algumas autoridades, num ambiente tenso de olhares acusadores e de muita tristeza da irmã.

Na cerimônia, o comandante das armas fez a promessa de todos os esforços para encontrar o assassino que já estava sendo procurado pela milícia desde aquela manhã. Tropas tinham sido enviadas à Vila do Acará para investigar junto com as autoridades de lá.

Sem testamento, o espólio foi arrolado, enquanto Jorge voltava de viagem, os negócios tocados por Constância, com ajuda de Pantaco, na cidade, e do tapuia Buiú, na fazenda, pois mais entendia das ocupações já que vivia lá desde menino, sempre o braço direito do patrão.

No mesmo dia em que o navio aportou trazendo Jorge, Buiú chegava do Acará. Vinha trazer a farinha e buscar o de prover. Encontraram-se na Rua do Norte e seguiram juntos até o casarão onde o tapuia sempre dormia junto com os escravos.

O encontro de Jorge com a irmã e Pantaco foi mais de silêncios do que de cumplicidade; alguma coisa estava diferente, o escravo aumentara a intimidade com a irmã que parecia se submeter ao olhar dele. O acerto se deu poucos dias depois, venderiam e dividiriam tudo. Jorge queria viajar pelo mundo, Pantaco receberia sua pequena fortuna em moedas portuguesas como combinado e teria oficializada sua alforria. Constância sonhava morar na França.          

Começou desconfiar no dia do enterro, passada a cerimonia. Pantaco pareceu inquieto demais; nos dias em que ficou no casarão Buiú notou as pequenas coisas que aconteciam, incomuns antes da morte do patrão: o escravo dando ordens com voz autoritária, vestindo roupas que só poderiam ser do morto e recebendo incumbências da senhora sempre de portas fechadas. Quando acompanhou Jorge pela rua, no dia de sua chegada, viu a pouca bagagem que trazia, estranhou. Conhecia seus hábitos elegantes desde pequeno, ao contrário do irmão, um rústico, vivia folgazão, desfrutando do nome da família pelas altas rodas, sustentado como estudante, sem nunca ter pisado na escola em Coimbra.

Na casa, mal se via Constância, sempre pelos quartos trancada numa tristeza maior que o luto quando o pai morreu.

Buiú andou pelas ruas, nas bodegas e terreiros. Entre remeiros, aguadeiros, soldados, procurando saber o que comentavam. Nos ajuntamentos de escravos, apesar de proibidos, ouviu muito sobre política e deserções, nada do crime.

Procurou os conhecidos alugadores que viviam se gabando das mortes executadas, ninguém sabia de nada e, entre eles aquele caso era tido como coisa de família, muito escondida. Falavam que se fosse política saberiam, quem contrata vingança quer que todos saibam, modo produzir o temor. Fosse política, mais temor ainda.

O tapuio passou dias vigiando Pantaco até ficar, sozinho, frente a frente, sustentou apenas o olhar no susto dele, não disse uma palavra sequer. O negro, com o deixar cair dos ombros e o semblante, confessou. Foi a reação esperada, Buiú estendeu a mão esquerda espalmada e com a outra em perpendicular a palma estendida, fez pequenos movimentos batendo a direita rapidamente, próximo dos dedos, próximo do punho até ouvir no silêncio de Pantaco, concordância.

Dividiram a pequena fortuna e nunca mais foram vistos.                   

 

 

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terça-feira, 23 de junho de 2015

Pedro Potaço - MQ


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Não deu tempo de pensar: Potaço atirou na direção do inimigo. O cano da arma velha fendeu-se com a explosão, o fogo cegou o olho da mira e chamuscou todo o rosto. Nem assim perdeu a agilidade. Esbravejando pulou por cima das touceiras de onde os soldados disparavam, lacerando os cujos com o terçado sem lhes dar tempo de carregar as armas, impondo-lhes sua valentia com a derrota. Eram poucos e ficaram ali para sempre, uns demoraram tolerando a dor e a morte chegar, suplicando por um golpe final de boa morte.       

Seus rompentes de valentia eram falados, dizia-se protegido e que sempre escapava porque a morte não o queria em seus desígnios. Parecia ser verdade pelas vezes que enfrentou tocaias e ardis que o inimigo impunha, como se soubesse de seus próximos passos. Essa fama o fazia, onde passasse, incorporar mais seguidores, já formavam um grupo de mais de quarenta entre tapuios, escravos fugidos e mamelucos como ele.

 Quando um sinal de caminho havia, a sina se impunha nas errâncias, sem tergiversar para o passado. Pedro Potaço lembrava o relho comendo a carne, a cada chicotada o algoz dava uma risada mais alta, sentia o sangue verter escorrendo até o cós da calça. Foi a primeira e a última vez que foi açoitado, cumprindo punição por comer da saca de farinha. Castigo imposto como escravo ele fosse, amarrado na argola da porta pelas mãos e sentindo o peso das do patrão misturar com a risada e os impropérios. A mulher pedindo clemência e o português batendo o preço da mão de farinha. 

No silêncio, a marcha descompunha em leque, até o barranco, modo evitar a tropa vinda em alcance. Divididos em grupos de três em três, sobrando na retaguarda Potaço e o mulato Mutu, ferido no peito.  


Acantonados na mata, sentiam o mormaço da tarde produzindo um torpor que contagiava a todos. Na espera do sinal, um momento de descanso no meio da fatigante marcha de tantos dias.


Tremeluziu na escuridão da noite nascendo; o sinal do candeeiro na margem, era o aviso. Estertorando ao seu lado, com o peito aberto por ferimento, o mulato perdia todo o sangue; os espasmos de dor pareciam afastar a morte; precisava ser carregado mas o tempo urgia, era uma distância que ele não dava conta de carregar só; a decisão foi tomada sem hesitação: fez que o iria carregar com uma mão e com a outra cortou a jugular na misericórdia de não abandoná-lo sofrendo.


 No lanchão, em meio ao gado, se esconderam, agachados para a travessia, o alvoroço dos animais foi se aquietando quando a embarcação pôs-se em movimento, margeando, rio abaixo, à espera do outro sinal. Quando ele, veio em três piscadas de lume da outra margem, a embarcação atravessou.

A roupa de algodão esmolambada que cada um vestia fazia muito perdera a cor; a sujeira predominava. As armas velhas, a falta de cartuchame, de pólvora, a maioria dos homens armados de terçados, bordunas e franzinas lazarinas mal davam conta da caça. O alimento era escasso, raro uma caça, dividida sem fartura, em nacos que não matavam a fome. Mas a valentia os alimentavam e sabiam ser sorrateiros.  

Ensombrecia a tarde quando o governador de armas começou a falar para uns poucos reunidos em volta atendendo o toque de rebate. O descaso com seu pronunciamento o deixou colérico. Gritava proceder do reino, de avoengos ilustres, gabava representar o império. Que iria acabar com os desmandos havidos até ali, enumerava a captura de revoltados, a prisão de uma dezena de culpados. E deram-se horas, até quando os estampidos da primeira carga surpreenderam a milícia formada no Largo.

O português foi encontrado morto entre as sacas, com a boca cheia de farinha empapada de sangue e a urina escorrendo, ainda quente, pelo chão.

 

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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Dozinha e Inácia - MQ



- I’êle sortava vento inquanto fornicava i’eu, fornico froxo, por mode conta da nhandiroba qu’eu passava. Achava qu’era gosto meu. Quando envinha era os modo, fazê num duê, um avantajo daquele quereno... quereno... cruzi crêdo, Suzuca reclamava, Armina tamém. Insinei marrá tripa de porco cum olhim d’nhandiroba, na hora era só moiá um dedo, inludia. Suzuca cuntô pra Nhanjina, i’ela feiz tamém.

 

- Ficô tudo pra i’êle, gostano dele. Nois vigiava os rumo d’ele vim mó num querê o manipanço. Num matá boi, i’ele pegava nóis, uma. Medo de ficá sem coiê o sangue pro sarapatel, inda na bondade dele, procela dum oiá mais teso qu’eu davo.

 

- Ué mia parenta siô ôiava cedo pr’uma, paresque gustá du craro, cum’antão o vaquero Ventura du iscuro... i’êle sim. Caricia tripinha, caricia fingi detono, ‘struvenga firmava us gozo, quan’ele dava diamba, uns mais.

Remavam descendo o rio, com a canoa carregada de cachos, costume que faziam gosto, hora de se tardar, longe dos afazeres, longe da perseguição dos homens de mando. Hora mais feliz das duas.

No repuxo da curva, ouviram a explosão e viram o primeiro sinal de fumaça. Quando deu vista, o velame da embarcação inçado de vento fazia distância.

Temeram! Eram tantos homens que chegaram nos últimos dias, tantas armas e conversas... a cozinha ficava o dia todo com a mesa posta, davam comida a todos que vinham. Sabiam coisa importante acontecendo; o padre junto, muita gente bem vestida, livros e papéis esparramados, ordens pra todo lado; agora aquele silêncio e o sinal de fogo.

Uma luta teria durado mais e a guerra ouvida de longe. Remaram mais depressa e foram distinguindo a destruição, a casa grande, a senzala, o paiol, as moendas, tudo queimando, restado somente a capela com a parede lateral quase destruída

Encostaram na boca do igarapé com medo e desembarcaram cautelosas, se aproximando devagar, procurando avistar alguém que não havia ali. Nenhum corpo. Andaram nos arredores, nenhum cabaneiro, nenhuma criação, nada vivo. Como se tivessem sido engolidos pela explosão que ouviram.

Desnorteadas, as duas escravas dormiram aquela noite no que restou da casa e, na manhã, sem encontrar ninguém, somente aquele silêncio no ar, remaram subindo o rio, margeando entraram no primeiro igarapé, evitando quem fosse.

Enveredaram por muitos caminhos d’água, abandonando a canoa, pensando conhecer a nesga de barranco, e caminharam por horas para descobrir que não sabiam por onde andavam. Com a noite, o medo dos barulhos da mata, Inácia, ferida num resvaladouro e o cansaço, sem saber voltar nem para onde, tinham amarrado a canoa, prostraram embaixo dum enorme angelim.

Ali foram encontradas muitos dias depois Donzinha, fraca, variando e  comendo terra; Inácia com a ferida gangrenada na perna dando os últimos respiros.         

 

 

 
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domingo, 21 de junho de 2015

Isabel - MQ


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Isabel, seu nome. Descendia dos açorianos da Rua São Vicente, na Campina; daí a beleza vinha, retida na maneira elegante de se vestir; esparramava por onde passasse uma sensualidade impossível de não perceber. Viúva na flor da idade,  provocava a atenção dos homens e uma enorme inveja nas mulheres. Eles não perdiam a oportunidade de cumprimentá-la com cortesia e aquele ar malicioso de oferecimento que ela respondia com a indiferença de um leve movimento e um disfarçado sorriso no rosto.

Vivia na Rua de Santana, no casarão construído pelo finado engenheiro e botânico alemão Hans Wannier, seguidor das idéias do conterrâneo Grunfelts de transformar a cidade numa nova Veneza. Vivia só, pois filhos nunca tiveram. Do marido herdou a casa, alguma renda, o pomar farto, uma coleção de livros, pinturas e máscaras e os dois escravos: Luluce, a mucama e o negro de ganho Rafael.

Saía de casa todos os dias somente para a missa, olhar de viúva, discreto mas penetrante, sempre acompanhada pela mucama, sua sombra até na janela onde costumava ficar toda tarde, nos primeiros sinais de noite chegar. Com o tempo muitos desses hábitos foram mudando

O negro de ganho Rafael sempre chegava da olaria quando as duas estavam na janela e mal entrava recebia as ordens domésticas ou a incumbência, sempre de Luluce, levar carta para algum cavalheiro já conhecido, ou sair com ela para apontar o destinatário pelas ruas. Entregue o convite voltava pra casa e se recolhia nos fundos de onde era proibido sair.

Luluce preparava o banho com cheiros e óleos e assistia à sinhá se preparar com languidez. Ajudava a colocar a máscara de couro colada ao rosto, prender o cadeado, vestir sobre o corpo totalmente nu a capa preta e o capuz. Era como uma sombra no meio da noite, saindo pelos fundos para o ermo; ia sempre só se entregar ao cavalheiro escolhido naquele dia entre os que passavam em frente à janela do casarão ou aos que encontrava no caminho, quando ia à missa e mostrava alguém de seu interesse à escrava.

Foi assim desde o terceiro mês de viuvez, quando começou a experimentar as máscaras que o falecido deixou e encontrou aquela de couro que lhe cobriu o rosto como uma segunda pele despertando sensualidade e a volúpia que escondia no corpo e na alma.

Com a máscara no rosto e a noite entrando pelas janelas, desceu os degraus da cozinha, ouvindo os gemidos abafados, era Luluce e Rafael enleados em carícias e suores. Isabel apagou a vela, aproximou-se da fresta, e dali ficou olhando extasiada, parecia um sonho, cada movimento deles  fazia seu corpo vibrar, sentia rubor no rosto por debaixo da máscara, as pernas tremiam de desejo. No despudor se possuíam, nunca pudera imaginar possível ferocidade, ao mesmo que aquela suavidade os levando a uma espécie de delírio.

Voltou na escuridão para seus aposentos onde passou a noite quase toda acordada lembrando do marido, do quanto era doloroso não tê-lo em seu corpo. Nunca o vira nu, ele a ela também não; nos dois anos de casamento a usara calado, sempre às mesmas horas da noite, sem palavras, do mesmo jeito. Ela contida gostava, queria mais; ele não, era sempre assim, igual, mas gostava.

No outro dia, ficou na janela, esperando a noite chegar inteira, para espiar o casal.  Encontrou-os no escuro, dormindo. Voltou ao seu quarto, ansiosa, e começou a mexer nos livros do marido. Botânica, engenharia... folheando um por um sem qualquer curiosidade, apenas passando as páginas, ajudando a consumir o tempo.

Absorta, quase não percebeu aquele de capa vermelha, lisa, sem nenhuma identificação. Abriu ao acaso e começou a ler as histórias da corte veneziana que lhe chamaram a atenção pela descrição de formosura das cortesãs, a liberdade que tinham. Pôs-se a ler sem parar, só se dando conta do dia já estar claro com as batidas de Luluce na porta.

Passou o dia revirando os livros, ansiava encontrar outros, queria ler mais, saber mais, o assunto a interessava muito. Não foi à missa, esperou com ansiedade a noite para espiar os escravos, mal se continha para não fazer perguntas a Luluce.

Como na primeira noite que os viu, vestiu a máscara se olhando no espelho, sentindo-se a própria cortesã mascarada dos contos lidos, tirou toda a roupa e, nua como no livro, vestiu a capa preta com capuz. Esperou pelo silêncio das horas, apagou a vela na cozinha e desceu os degraus até os fundos.

Os dois se tocavam embevecidos com seus corpos, emitiam sons indefinidos, se cheiravam, se lambiam como animais. Seus corpos, molhados de suor, luziam nas sombras mortiças da vela. Isabel, na posição que estava, via Rafael por trás, o dorso, as nádegas sustentadas pelas coxas musculosas, passeando pelo corpo de Luluce que delirava de prazer. Naquela noite, viu o negro de frente, enorme, túrgido, com um vigor assustador, tomar a negra de todas as maneiras. O suor molhou Isabel, o corpo ardeu em desejo, relembrado em todos os instantes do dia seguinte.

Acostumou-se àquele ritual, de se preparar para vê-los todas as noites; numas apenas os encontrava dormindo vestidos, noutras os via nus se confundindo com a escuridão. Mas, quando a vela no quarto estava acessa, os momentos eram de êxtase. Isabel bebia com o olhar o corpo de Rafael e cada instante de lascívia dos dois.

Nunca poderia imaginar o que lia nos livros encontrados e o que via nas noites de Rafael e Luluce. Seus pensamentos agora obedeciam às sensações que sentia, olhava discreta, imaginando os homens nus, mesmo na igreja onde passou a ir menos. Olhava o padre celebrando a missa e se imaginava em Veneza onde os mais abastados, fossem do clero ou não, tinham seus encontros com as cortesãs.

De Luluce queria saber mais sobre os negros, ensaiava perguntar por que não apagavam a vela, qual a sensação de algumas carícias que presenciava. O animalesco do que via ao mesmo tempo que a assustava, a atraía. Queria viver aquilo sem se sentir em pecado. Pensava na luxúria dos venezianos, lia no livro cenas da cortesã com seu confessor e se sentia roubada de uma parte da vida, talvez a que quisesse mais ter vivido.       

Escolheu o primeiro, moço ainda, um vigor que nunca experimentara. Escreveu a carta com o convite recomendando ao escravo que nunca revelasse o missivista. Naquela noite, sem que o casal de escravos soubesse, o encontrou na grande samaumeira das matas de Nazaré. O jovem, ao vê-la abrir a capa, sua nudez perfumada de um desejo profundo, a perfeição do corpo e o rosto coberto com a máscara, assustou-se e correu como um louco. Ela voltou para o casarão certa de que nas cartas deveria mencionar que usaria uma máscara, para não assustá-los que assim o fazia para não ser reconhecida por ser casada e recatada.    

O rapaz no outro dia perguntou ao negro Rafael quem lhe enviara a carta. Este respondeu, como recomendado, não conhecer a dama, apenas entregava recados para quem se dispusesse a pagar alguns tostões.

 Daí, sem que nunca se dissesse nada, Luluce e Rafael foram conhecendo o segredo de Isabel, lutuosa na igreja, na janela do casarão e aos olhos de quem a visse mas, em algumas noites, era a dama nua, mascarada que se encontrava nos braços de quem escolhia para se ter.

Os escravos, sem nenhuma demonstração de conhecer seu segredo, foram ajudando a enumerar lugares ermos onde Isabel pudesse marcar os encontros, falavam no correr do dia de um lugar assim para que ela ouvisse. Comentavam a chegada dos navios, os negociantes, militares e cavalheiros que desembarcavam como se ela não estivesse prestando atenção. Com o tempo, Rafael a seguia de longe como o guardião do querer da ama.

Perto do Sumidouro, no fim das ruas do Rosário, da Alfama, da rua dos Cavaleiros, na casa abandonada na rua Formosa e, nos casos mais especiais, na samaumeira das matas de Nazaré; alternava os encontros para lugares diferentes, era sua segurança, depois do francês que passou muitas noites tentando surpreendê-la nas imediações do Sumidouro.

O tempo passava e Isabel com a cumplicidade do casal de escravos ia ousando cada dia mais na escolha dos destinatários de suas missivas, ao mesmo tempo que se acautelava no conteúdo delas; ora escrevia em francês, ora se dizia uma dama passando temporada na cidade, que era filha de reinóis. Ora pedia a Gabriel que desse a mensagem para outro escravo entregar.

A segunda carta que mandou, escolheu outro rapaz bem jovem, filho de ingleses, de olhos claros e penetrantes. Ao se aproximar, o viu caminhando de um lado a outro, sem percebê-la. Sentiu a sensualidade tomar posse, abriu a capa forrada de cetim vermelho deixando-a presa somente no pescoço. A curiosidade dos olhos do rapaz nem pôde se deter na máscara, o corpo de Isabel, contrastando com o vermelho do forro da capa e a generosidade do luar, o enfeitiçou. Em minutos, com o refinamento das cortesãs ela o deixou nu, com a intensidade e despudor que vira nos seus escravos o possuiu entre gemidos e soluços, beijando e cheirando seu corpo todo, cobrindo a carne rija e jovem com a sua volúpia e mistério.

Isabel vivia para aquelas noites, andava com desenvoltura pelas sombras das ruas, evitando as ratazanas, o escravo lhe seguia os passos mas nunca se aproximava muito do local dos encontros, ficava a meia distância, pronto para protegê-la.

A cumplicidade aumentava a cada dia que passava, os escravos percebiam quando a senhora não gostava do encontro, era quando ela mais os espiava, às vezes noites seguidas e, quando mais se mostravam, mais a luxúria impregnava nela e neles. Cada  carícia, cada olhar, o desejo ardia por horas, num prazer constante.

Luluce quem primeiro viu o ajudante do comissário das demarcações hospedado da fazenda Val-de-Cans, discretamente o apontou. Isabel lhe escreveu em perfeito espanhol. Os dois se tiveram madrugada adentro, o único com quem ela esteve mais de uma vez para estranheza dos serviçais, acostumados aos inúmeros destinatários das cartas. Intrigados, uma noite, Luluce resolveu ir junto a Rafael, de longe, acompanhando a ama.

No casarão abandonado da rua Formosa, a escrava quis chegar mais perto e espiar. O que viram os deixaram extasiados. Isabel sem a máscara e a capa, o cavalheiro nu a amava com energia e ao mesmo tempo com tanta suavidade que seus corpos pareciam exalar uma luz entrecortando o luar vazando do telhado arruinado. Parecia uma pintura, na verdade era um nascimento.

Poucos dias se passaram até ser encontrado o corpo nu, sem um vestígio de quem fosse. No embarque dos espanhóis  para o Equador, deram falta do oficial, desenterraram o desconhecido, era ele, comprovaram.

O negro Rafael que voltava todo dia com a carta a ele destinada, trouxe a notícia. Isabel, em prantos, ficou trancada por muitos dias, lembrando cada instante com o amante espanhol. Desgostando de olhar os escravos pela janela, desinteressada de escrever outras cartas, entristecia um pouco todo dia.

O casal de escravos procurava agradá-la nas menores coisas, mas entristecia com ela. Para eles, a alegria veio com a gravidez de Luluce e contagiou Isabel. Um vestígio da cumplicidade voltava a rondar, uma carta foi escrita mas o encontro não se deu. O cavalheiro não apareceu. Outras houve, mas nenhum dos destinatários foram encontrá-la.

Isabel nem importava, voltou a espiá-los. Os dois não eram os mesmos, ou seus olhos não viam igual antes, pensava. A tristeza voltava. Olhava Rafael com desejo de vê-lo com Luluce no despudor que a incendiava de desejo. Não via. Acostumou a não escrever mais, não usar a máscara e raramente ir vê-los.

Já era muito tarde da noite, quando ouviu chamar. O archote na cozinha aceso fazia as sombras da parteira, bruxuleando, parecer mau agouro. E era. A criança tentava nascer do corpo morto da mãe. Luluce parecia dormir serenamente. Rafael encurvado num canto chorava sem lágrimas. A criança viveu um instante apenas.

Foram tempos de muitos silêncios, nem a estabanada tapuia trabalhando na cozinha com a escrava alugada conseguia um ralho da senhora. Rafael chegava e dava contas a Isabel cabisbaixo, sem palavras. Um dia, surpreendeu o escravo a olhando de maneira diferente, enxergou desejo. Sentiu desejo.

Sozinhos, uma noite, pediu vinho do porto e lhe ofereceu uma taça; pediu que sentasse e começou a ler a história da cortesã mascarada visitando o príncipe mouro. Nem chegou a metade, olhou para o escravo tentando ver sua reação. Ele estava dormindo sentado com a taça quase vazia na mão; parecia que o cansaço e uma tristeza estranha o possuíam.

Isabel fechou o livro, olhou por instantes Rafael adormecido e, sem acordá-lo, foi se recolher com uma ponta de malícia sorrindo nos lábios, depois de buscar a máscara e a capa de cetim e deixá-las do lado dele.

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sábado, 20 de junho de 2015

ENTÃO, FOI ASSIM? - RUY GODINHO

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O programa Então, Foi Assim? deste sábado, é o segundo de uma série de dois, inteiramente dedicados ao talento e à criatividade do cantor e compositor piauiense Clodo Ferreira, que revelará as histórias de composições de seu mais recente CD:

- Quem fala de mim;

- Diamantes (c/Carlinhos Sete Cordas);

- Guardião (c/Sérgio Magalhães);

- Agora é fácil (c/Evaldo Gouveia) e

- Laço

Então, foi assim? Os bastidores da criação musical brasileira, sábado, às seis da tarde na Nacional FM com retransmissão para mais de 240 emissoras em todo Brasil.

 

 

Produção e apresentação: Ruy Godinho