terça-feira, 22 de outubro de 2024

CUBA... Val-de-Cães, uma e vinte. O único aeroporto brasileiro que conheço onde ainda havia um local para fumantes, misto de café e tabacaria. Hora do embarque. Encontro Camilo saindo da livraria, se é que podemos chamar de livraria um lugar em que nossos autores raramente estão presentes, a maioria dos livros à venda não tem nada a ver com nossa cultura. Ele me abraça com uma ponta de inveja, acho que a mesma que senti quando ele voltou de Cartagena das Índias embriagado da beleza que viu lá. Um ministro, numa das crises, esbravejou que iria resolver os problemas da nossa aviação. Que a distância entre as poltronas dos aviões seria satisfatória. Queria vê-lo hoje sentado num voo de carreira. Tenho um metro e setenta e quatro centímetros, peso oitenta e dois quilos e não consigo viajar sem estar em profundo desconforto. Brasília, madrugada de um aeroporto vazio. Apenas uma pequena lanchonete está aberta e quase limitada ao pão de queijo sem personalidade, mas toma-se um café expresso com qualidade, incompatível com o preço é verdade, mas pelo menos ajuda a vencer as horas solitárias de espera. Voo cheio, como sardinha em lata. Porto Alegre, enfim. Tomo o táxi e descubro no motorista um contemporâneo do Colégio Júlio de Castilhos onde estudei na juventude. No trajeto vamos relembrando os professores da época. Hélio Riograndense, Fedocegeva, o diretor Magadan, a velha professora Diva com suas maluquices e nenhum ensinamento de matemática. Muitas risadas e uma despedida calorosa no final. Dois dias amorosos com os netos. Tudo pronto, moeda trocada, aeroporto, tentativa desnecessária de registrar, chegando lá, o equipamento na Receita Federal. Embarque e, Montevidéu. Um aeroporto novo e maravilhoso, mas sem o balcão da companhia aérea em que íamos viajar e ainda sem guarda-volumes. Frustração. Ficamos o fim da tarde, a noite e a madrugada sem poder sair dali por causa da bagagem. A primeira aula foi nessa espera, meu filho e mestre esmerou. Aula teórica e prática. Desvendada a máquina e aprendidos os conceitos mais modernos sobre fotografia. Depois as aulas práticas fotografando o Aeroporto de Carrasco, fotometria em meio de muita conversa e cochilos. Voo lotado, um pouco mais de conforto entre as poltronas, mas o cheiro da comida servida incomodou um pouco. Não sei o que era aquilo, não consegui nem experimentar. Panamá, um aeroporto que mais parecia um centro de compras popular como os nossos. Muita gente, muita quinquilharia que nem pude olhar direito. Nosso embarque e, duas horas depois, a Ilha. Na bagagem levava um pouco da juventude, um misto de admiração e perplexidade com o que conhecia daquela história. Educação, cultura, saúde, segurança e igualdade sem resultar em liberdade. A maior revolução contemporânea, o maior inimigo que se poderia ter e, na sua consolidação, uma ditadura como qualquer outra sombreando seus mais autênticos líderes. Certa vez recebi em minha casa o filho de um dos grandes compositores cubanos, entre vinhos, cigarros e muita música, conversando sobre seu país, a revolução e a história toda. Em dado momento ele me perguntou: – Quantas vezes você esteve em Cuba? Respondi nenhuma. Ele ficou perplexo. - Como? Como sabe tanto da nossa história? Do nosso modo de vida? Respondi a ele que lia, lia muito, lia tudo que se publicava no Brasil sobre seu país e que tinha muita admiração por tudo que conseguiram fazer e, ao mesmo tempo, uma tristeza por se perderem no percurso. Agora estava desembarcando ali, com uma sensação de desconfiança, um desassossego que ficou quando li na casa de um dos meus filhos o livro sobre Guevara, mais de 800 páginas ― O Verdadeiro Che Guevara de Humberto Fontova. Também havia uma sensação de degradação colhida no genial livro de Pedro Juan Gutiérrez – Trilogia Suja de Havana, as duas últimas leituras sobre Cuba e os personagens da Revolução. Mochilas nas costas, máquina fotográfica na mão e a fila para apresentar nossos documentos. O funcionário nos olhou, conferiu tudo e nos filmou por instantes. Encaminhados para outra fila das autoridades sanitárias que pediam para responder a um questionário enorme sobre nossa saúde. Quando nos identificamos, deixaram passar sem a formalidade. Fiquei em dúvida se por causa do seguro-saúde que fizemos para obter o visto de entrada, tarefa não muito fácil, ou se por algum convênio firmado entre nossos países. Agora esperar as bagagens, uma demora não superior aos nossos aeroportos. Um equipamento bem envelhecido, o saguão quase sombrio com pouca luz e outra fila para exame de bagagem. Não consegui entender nem pude perguntar, ao ver nossos passaportes, nos mandaram seguir sem vistoriar nossas malas. Trocamos moeda apenas para chegar ao hotel, o CUC valia 80% do dólar. Tomamos um táxi. O motorista não nos deu muita oportunidade pra conversa. Durante todo o percurso, pudemos perceber que as ruas, as casas americanizadas não são muito diferentes das cidades brasileiras, exceto pela poluição visual, que ali não havia. Tampouco era infestado de propaganda política, para minha surpresa. Havia, sim, uma aqui outra ali, exaltando o governo, os princípios e valores da revolução; nada como no Brasil, onde os governos gastam fortunas se enaltecendo e tentando transformar em verdade o que lhes convém. Ali era diferente, tudo estava baseado numa história verdadeira, vivida e honrada por todos que a quiseram. Chegamos ao Habana Libre, um hotel construído a mais de cinquenta anos pelos americanos e inaugurado pouco tempo antes da vitória da revolução. Surpreso, íamos ficar os primeiros dias ali – símbolo da tomada de Havana, a primeira sede provisória do governo revolucionário. Envelhecido, mas muito confortável e com um serviço impecável. Um banho rápido e descemos apenas para jantar e fazer pequenas descobertas ali mesmo no saguão do hotel. Mapas, interurbano, internet, café, câmbio, tentativa de alugar um carro, essas coisas práticas. Em pouco tempo o cansaço tomou conta principalmente do Marcelo. Dormi depois de longa reflexão sobre tudo o que conhecia da história cubana e a emoção de estar exatamente ali, naquele hotel. Fazia um frio moderado quando acordei no meio da madrugada e fui pra sacada fumar e observar a cidade. Perdera completamente o sono. A rua da esquerda, iluminada como estava, foi o convite para a primeira fotografia e depois para descer, tomar um cafezinho na lanchonete aberta vinte e quatro horas. Dali iria procurar a esquina que via da sacada imaginando a fotografia de outro ângulo. Um café, depois outro enquanto conversava com o garçom, respondendo muito mais que perguntando; surpreso em ver marcas de cigarros e bolachas brasileiros, bebidas americanas e muitos produtos do mundo capitalista. Foi quando descobri que não era muito comum brasileiros em Havana e a adoração deles pelas novelas brasileiras e pelo nosso presidente. Já com o dia quase amanhecendo, resolvi ir procurar a esquina da fotografia e, à medida em que andava, fui percebendo, as ruas não estavam desertas. Primeiro fui abordado por um casal de carro, a moça me pediu fogo. Quando perguntaram e respondi que era brasileiro, me convidaram para ir ao Malecón. Agradeci e, antes de andar um quarteirão, três garotas me pararam e pediram fogo de novo, mais um convite para beber rum. Não completei a volta nos quarteirões em volta do hotel e fui abordado mais duas vezes, por um casal e na outra por três rapazes, pelo mesmo motivo e com o mesmo convite. Medo, nenhum. Sabia estar seguro nas ruas de Havana. Uma segurança intuitiva, mas baseada no que conhecia da história do povo cubano e em alguma informação de amigos que ali estiveram. Sem encontrar a rua que queria fotografar, resolvi retornar ao hotel e aos cafezinhos. Lá encontrei as três moças que vieram falar comigo e me convidaram para sentar, o que educadamente agradeci reclamando de sono. Um misto de boemia e prostituição não tão diferente das madrugadas de nossas cidades. Amanhecia quando voltei a dormir para acordar umas duas horas depois, Marcelo nem se mexia, resolvi deixá-lo descansar e novamente fui pra sacada fotografar a manhã de Havana, daí para mais cafezinhos e outra volta pelos arredores do hotel e muita conversa com os porteiros, agentes de turismo, garçons, taxistas – era inevitável a novela “A Favorita”, Lula e nosso futebol nas conversas. Tomamos um café da manhã como poucos que já vi servirem. Uma pianista tocava primorosamente obras de compositores do mundo todo, não faltou Aquarela do Brasil e Garota de Ipanema, músicas americanas, francesas, argentinas, mas cubana que era o que mais queria ouvir, nenhuma. No saguão tentamos alugar um carro para viajar pela Ilha. No fim do ano as locadoras não dão conta da demanda. Ficamos na fila. Saímos do hotel, máquinas fotográficas na mão, sem destino. Descemos a principal avenida que ladeava o quarteirão e chegamos ao Malecón. Por ele caminhamos até resolvermos nos enveredar por uma rua que imaginamos ser de Havana Velha e, confesso, nos assustamos um pouco com o espanto das pessoas nos olhando, alguns nos oferecendo charutos, outros querendo saber de onde éramos, alguns nos pedindo fogo e até mesmo apenas para conversar. Caminhamos e caminhamos por ali, fotografando o casario, cenas de rua e, vez ou outra, as pessoas. A mulher estava debruçada na sacada do quarto andar. Combinando com o varal de roupas, seus trajes misturados com a luz e a sombra formavam a fotografia. Da calçada me preparei e fiz um gesto pedindo permissão. Ela retribuiu espalhafatosamente com o gestual dizendo não. Alguns quarteirões adiante, ainda meio frustrado, deparei com um senhor muito magro sentado numa poltrona rente à janela do segundo andar, nas mãos uma bengala de apoio e no olhar um vazio. Parecia quadro pintado e esquecido na parede. Tomei coragem e gesticulei pedindo permissão para a fotografia. Ele quase só com o olhar permitiu e continuou impassível olhando o nada. Por aquele emaranhado de ruas, nos pequenos prédios envelhecidos, nas pessoas nos olhando com estranhamento, tivemos o primeiro contato com Havana e seus habitantes fora do circuito turístico. Nossa caminhada nos levou a uma praça onde nos sentamos e ficamos por muito tempo observando os passantes e conversando, tentando desvendar o que vimos na caminhada. Tudo muito parecido com nossas cidades, tênis de todas as marcas e tipos, camisetas com desenhos ou marcas estampadas. Pirataria trazidas ou enviadas por algum parente vivendo fora da Ilha, mas isso não tinha nenhuma importância para nosso olhar. O que causou certa surpresa foi perceber que eles queriam coisas muito comuns no mundo capitalista. Tudo bastante velho, mas limpo, muito limpo. Parecido com minha infância no interior, pobreza digna, muito digna. Sentados ali observamos os carros antigos passarem. Um espetáculo. Como um museu automobilístico a céu aberto. Vez ou outra passava uma carroça, um carro novo, um transeunte pedindo fogo. Resolvemos andar mais e chegamos a uma grande praça com inúmeros prédios históricos, museus, teatro, hotéis, construções espetaculares. Umas muito antigas, outras nem tanto. Ali estava o Capitólio, um Teatro e o que me pareceu o centro principal frequentado pelos turistas. No gramado foi o único lugar onde vi alguns garotos jogando futebol. Voltamos ao hotel fazendo um caminho paralelo pelo mesmo bairro, mas cortando por dentro sem passar pelo Malecón. Bastante cansados pela caminhada, nem nos animamos a sair à noite, o jantar foi no hotel mesmo e depois conhecer as exposições fotográficas em seus corredores, saber como nos comunicar com o Brasil por telefone e internet, esta cara e sem muita qualidade. Ver mapas, como nos movimentar se não conseguíssemos alugar o carro e traçar nosso roteiro pelas províncias, trocar moeda, enfim, todas as coisas que precisávamos saber. Com o mapa na mão, descobrimos que o bairro por onde passamos em nosso primeiro dia não era Havana Velha, e sim Havana Centro, mais popular e não muito acostumada com turistas, por isso o espanto das pessoas em nos ver por ali. Manhã ensolarada, clima muito agradável e lá fomos nós, café da manhã, a mesma pianista do dia anterior, tentativa da alugar o carro com outro agente de turismo e depois a Universidade de Havana a poucos quarteirões do hotel. Marcelo, quando saímos, recomendou dando continuidade ao que me ensinava – fotografe, fotografe tudo, aprender é ir fazendo. Minhas dificuldades com a fotometria foram diminuindo e o olhar aguçando. Quase um transe as mais de setecentas fotografias tiradas no dia, resultando em umas cem, depois da triagem. Os prédios muito parecidos com os das universidades americanas que vemos no cinema. Ambiente universitário igual ao que temos no Brasil, muitas árvores e estudantes por todo lado, num clima de liberdade. Alguns com seus computadores pessoais, outros namorando e as pequenas rodas de conversa. Perambulamos por ali uma boa parte da manhã. Entramos numa sala de aula de física, conversamos com alguns alunos rapidamente e, estranhando os poucos alunos na sala, soubemos que em Cuba a média de alunos por professor é de 38, que o índice de analfabetismo é zero. Isso mesmo, zero. No quarto do hotel em que estávamos, a camareira deixou um pequeno bilhete nos desejando feliz estada e se colocando à nossa disposição talvez com o objetivo de conseguir uma gorjeta, mas o que chamou nossa atenção foi sua letra e a redação do bilhete. Nos últimos dias em Havana, antes da volta, noutro hotel, pudemos comprovar com o bilhete de outra camareira o nível da educação. Assim foi em todas as Províncias que conhecemos. Não há como não os admirar por isso. Andando pelo campus comprovamos como funciona o ingresso na Universidade; há uma seleção parecida com a nossa, mas que leva em conta outros fatores, como a região e as carências por profissionais no país. O estudante do interior da província recebe uma ajuda para moradia e sustento, tem sua própria caderneta para compras, específica para estudantes ― incluindo o cigarro e o rum. Obrigatoriamente participam de programas comunitários. Dois deles se prontificaram em nos mostrar outros aspectos do campus quando já íamos saindo, assim subimos de volta pelas escadarias laterais. A abordagem foi muito criativa. Marcelo fotografava os degraus da enorme entrada principal da Universidade quando um deles se aproximou e disse quantos degraus tínhamos pra subir e, depois dando a entender que pelas laterais era menos cansativo. Com eles percorremos uma parte de corredores, sem que nada nos fosse mostrado de novidade. Falaram de um professor brasileiro que não chegamos a encontrar. Perambulamos por ali sem ver nada que já não tivéssemos visto, mas a conversa era agradável e acabou nos levando a um bar frequentado por estudantes, uma espécie de clube onde nos sentamos e falamos de literatura, cinema, música, poesia e da vida cubana e brasileira. Ouvimos a poesia de um deles, presenteei os dois com obras minhas que levava na mochila. Conversa normal, rum, mojitos, nossos dois novos amigos cultos o suficiente para esse tipo de conversa até que, ao falar de Martí, perguntando onde encontraria seus livros, um deles se prontificou a me conseguir a obra completa numa livraria da Universidade que ficava ali perto. Saiu e voltou com duas medalhas cunhadas com a estampa de Che Guevara, nos presenteando, mas frustrado por não ter encontrado nada de José Martí, explicando que a carência de papel impossibilitava a reedição da sua obra. Neste ponto a conversa virou uma sucessiva reclamação de falta de livros escolares, de material como CDs virgens para copiar livros e publicações etc. Aí veio o pedido de dinheiro para ajudá-los na aquisição desse material. Marcelo mais atento que eu, neste momento trocou um olhar de “vamos embora”, pagamos a conta que incluía as duas moedas presenteadas, ajudamos os dois com alguns pesos e saímos. Sabíamos ser possível encontrar este tipo de abordagem em Havana, como existe no Brasil, mas não imaginávamos no ambiente universitário. Dali seguimos, contornando o campus, para a praça da Revolução. Uma torre enorme, um descampado rodeado de prédios onde ficam os Ministérios, dois deles de doze andares, com a reprodução do rosto de Guevara e Camilo Cienfuegos ocupando uma parede lateral inteira. Lugar para a multidão assistir aos discursos enormes de seus governantes. Por uma grande avenida que cruza a praça, caminhamos até o Cemitério Cristóbal Colón, um verdadeiro museu. Visitação paga e ali estava o maior cemitério da América Latina. Quatro Capelas numa praça central, de cada uma delas sai uma avenida larga para os milhares de túmulos, muitos são suntuosos e ornados com obras anônimas de muita beleza. A volta fizemos caminhando por outra avenida, parando para descansar numa praça muito arborizada. Mal acendi o cigarro, um passante parou e pediu fogo entabulando conversa. Ali ficamos por mais de uma hora com ele. Era aposentado da Marinha Cubana. Conhecia o Brasil, precisamente Fortaleza, e conhecia o mundo quase todo. Falou sobre suas experiências e sobre a vida em Cuba e me respondeu o motivo de tantos pedirem fogo – eles não têm fósforos suficientes, então cada família pode comprar apenas uma caixa por mês no preço subsidiado pelo governo. Contou também que sair do país era uma questão econômica e não política, ele mesmo já havia passado férias na França a convite de um amigo francês. Podem, se formalmente convidados, visitar outros países. A autorização demora um pouco, mas não tem nenhum entrave desde que as despesas sejam custeadas por quem convida. Falei dos boxeadores que, no Brasil, fugiram da delegação esportiva e foram depois deportados, ele explicou que neste caso eles estavam representando o Estado, por isso as punições são previstas. Isso valia para qualquer profissional representando o Estado Cubano. Com ele ficamos sabendo detalhes de muitas Províncias, o que nos ajudou muito na definição de onde ir primeiro ou mesmo não ir. Era um entusiasta do rum de Santiago de Cuba, Província que não nos recomendou, nem Guantánamo, onde pretendíamos ir, e ainda nos falou da canção Guantanamera, que significa o feminino de quem nasce em Guantánamo, e muitos, pensam ser o nome de uma cidade. Fumando mais um cigarro, agradecemos o papo certos de que ele nos pediria alguma coisa como os dois estudantes universitários, mas não o fez. Nos acompanhou até umas duas quadras e se despediu alegremente para ir buscar uma garrafa de rum que haviam lhe trazido de Santiago. Chamei a atenção do Marcelo para a moça bonita parada na esquina do cruzamento fazendo sinais com a mão para os carros. Prostituição? Naquele horário? Não fazia sentido. Depois de encontrar muitas cenas como aquela é que vimos que se tratava de um pedido de carona. As mulheres bonitas conseguiam carona facilmente. Hotel, cafezinhos – um dos melhores que já tomei. Era só aparecer na lanchonete que o balconista de longe já fazia o gesto e dizia ― “curtito”. Muitas vezes sentado no balcão com um “curtito” deixava o pensamento me levar para o passado naquela história que conhecia tão bem e ao mesmo tempo imaginar aquele presente encurralado por embargos, falência do maior parceiro, aposta errada na vocação agrícola e ninguém fora de suas fronteiras enxergando que a prioridade era o homem, a solidariedade transcendeu qualquer regime político. O socialismo cubano não tem similar no mundo. Dava pra sentir outra têmpera naquelas pessoas, tão parecidas conosco em alguns aspectos e tão diferentes quando ousaram fazer suas escolhas. Naquelas primeiras 48 horas, uma sensação de liberdade parada no tempo, de simplicidade na altivez de terem se construído de alguma forma foi o que mais percebi. Acordamos tarde, e agora com o mapa da cidade na mão, saímos para conhecer Havana Velha. O táxi nos deixou perto do começo do Malecón. Ainda sem almoçar naquele meio da tarde, resolvemos entrar num restaurante. Da varanda avistávamos a Baía de La Habana, que mais parece um canal, o Forte San Salvador do outro lado e o Malecón. Vinho, um farto almoço, que durou até quase anoitecer e a troca de impressões. Às vezes voltávamos em conversas tidas no passado, em casa na madrugada quando apontava o que conhecia da vida cubana e era contestado pelo companheiro saindo da adolescência e pela Roseli. Agora tanta coisa se confirmando, ao mesmo tempo que tantas perguntas ficavam sem respostas. Estávamos cansados e resolvemos voltar ao hotel. Lá conseguimos falar com o Brasil por telefone e, apesar do preço alto, pela internet. Nossas caminhadas pediam cama, pediam um banho na banheira sem tampa e na madrugada, Marcelo ainda se recuperando da agitação do seu cotidiano em Porto Alegre, dormia muito. Eu varava a noite entre cochilos, “curtitos”, cigarros e muito papo com os funcionários do hotel e da lanchonete. O Habana Libre, imponente e até bem cuidado, era referência importante, primeira sede do governo revolucionário, lugar quase obrigatório e preferido para os primeiros dias de quem visita o país. Os turistas chegam e saem a toda hora. Ficam dois, três dias e depois se esparramam como fizemos, procurando acomodações mais baratas ou indo conhecer as Províncias. Em nosso terceiro dia é que de fato conhecemos Habana Vieja. Foi deslumbrante, a arquitetura, os museus, a limpeza e as praças. Na que paramos para almoçar, um conjunto tocando música cubana. Os músicos no intervalo sentavam-se à mesa ao nosso lado. Inevitável puxar conversa com a flautista depois de comprar o CD. Ao saber que éramos brasileiros, o interesse aumentou. Conversamos muito e a ela perguntei o que conhecia da nossa música e a resposta foi de emocionar, conhecia Chiquinha Gonzaga, como? Perguntei e ela respondeu que estudava no Conservatório a obra da nossa Chiquinha, pouco lembrada em nosso país. Encontramos numa praça um sebo a céu aberto e lá achei a obra poética de Jose Martí que procurava. Fotografamos muito. Marcelo parecia um caçador, ficava tempo esperando a fotografia. No fundo da praça, o museu e o guarda com quem interagi, e em todas as muitas vezes que lá estivemos, sempre parando para um dedo de prosa. Neste primeiro dia que o conheci, estavam descarregando um caminhão, primeiro cadeiras, depois instrumentos musicais, e logo uma orquestra tocava ali. Os músicos assinavam ponto antes de se prepararem pra tocar. Velhos e moços misturados num repertório com músicas do mundo todo, muito bem escolhido e executado com um apuro que impressionou. Dois maestros se revezando com uma maestrina muito nova, impecável. Era uma sexta-feira, pouco mais que meio da tarde. Uma sensação de estar em qualquer parte da Europa parecia impregnada nas ruas de Habana Vieja. Por ali ficamos o dia todo e uma parte da noite. Depois o Habana Libre e a madrugada entre o sono de poucas horas intercalando a seleção das fotografias tiradas no dia, alguns cafés na lanchonete e muitos dedos de prosa com meus novos conhecidos enquanto Marcelo se recompunha dormindo. Saímos, manhã bem cedo, de táxi para Habana Vieja e de lá num ônibus de turismo, aqueles que têm a parte de cima aberta, como em outras cidades do mundo, para percorrer um circuito turístico completo. Ideia do Marcelo, fazer isso e escolher aonde iríamos naqueles poucos dias antes da Germana chegar do Brasil e seguirmos para conhecer as Províncias. Percorremos todos os pontos turísticos e pudemos descartar o que não nos interessava voltar ― como a Marina Hemingway, num bairro que nos pareceu o mais novo de Havana. A duração do passeio nos permitiu escolher primeiro conhecer la Cabaña, complexo militar construído por espanhóis, todo restaurado e muito bem cuidado. Na sua entrada um quarteto tocava música cubana, ali me espantei com a qualidade da melodia, do ritmo, da harmonia tirada de instrumentos quase rudimentares. Os monitores se encantaram com o fato de sermos brasileiros, e isso me possibilitou entrar em uma sala onde antigamente armazenavam óleo para o farol. O lugar parecia intocado, em declive os recipientes de barro eram enormes e davam para um embarcadouro. Ali fiquei por algum tempo fotografando na incumbência de trancar a porta. Marcelo enquanto isso fazia a mesma coisa num salão que estava sendo restaurado, aproveitando o mesmo encantamento. Coleção de armas, mapas e instrumentais de época, um avião destroçado no meio do pátio que inicialmente pensei ser o do acidente que matou Camilo Cienfuegos, as áreas e a construção imponente posicionada de tal forma que tinha visão panorâmica de qualquer ponto que estivéssemos. Voltamos no fim da tarde após bisbilhotar por um portão o pátio de fora do complexo onde vimos alguns tanques de guerra e outras armas pesadas apodrecendo no relento. Aliás, os únicos lugares que vimos armamento foram ali, numa igreja em Trinidad, na verdade um museu dentro de uma igreja, e em outro museu em Habana Vieja. Hotel, nossa última noite no Habana Libre. Íamos procurar outro hotel para os poucos dias daquela etapa da viagem. O Riviera ficava no final do Malecón e era confortável. Também ali um bar/café funcionava vinte e quatro horas. Deixamos as malas e saímos direto para as ruas de Habana Vieja, onde perambulamos até a Igreja de São Francisco de Assis e o bar de frente onde entabulamos, entre uma cerveja e outra, uma dose de rum e outra, uma reflexão sobre o que já tínhamos visto e percebido. Sempre a mesma conclusão, mais perguntas do que respostas. Foi aí que o nosso vizinho de mesa, que tomava um café sozinho, entrou na conversa. Era brasileiro e conhecia bem Havana. Estava de passagem para a Europa, um jornalista que vivia no Acre e depois de trabalhar na campanha política estava indo passar o Ano Novo na França com um escritor e amigo brasileiro muito importante. Ficamos conversando por horas, ele estava no mesmo hotel e nos deu referências de restaurantes, casas onde tinha boa música e outras coisas mais. Combinamos de sair juntos para um clube de jazz que ficava próximo ao hotel. Lá, boa música sem dúvida. Tocava naquele dia, como convidado, um percussionista japonês. O estranhamento foi que todos tocavam lendo a partitura integralmente, nenhum improviso. Tudo escrito. Voltamos já bem tarde e combinamos jantar juntos, era Natal e seguimos nosso novo amigo para um restaurante que era ao mesmo tempo uma escola de culinária. Bom vinho e comida, mas o melhor foi nossa conversa pela madrugada que trouxe uma frente fria vinda sabe lá de onde. Naquela noite fizemos também o bota-fora do Nelson, que seguiria no outro dia pra Europa, passaria o Ano Novo na casa de seu amigo brasileiro. Feliz Navidad! Sou ateu, por isso o Natal para mim não passa de uma festa social. Em Cuba ele não é comemorado da forma que conhecemos, com o apelo comercial e religioso. Parece que nem é a data. Além do jantar com o Nelson, o que mais fizemos foi preparar uma brincadeira para a família através de um pequeno vídeo gravado com lente especial desejando “feliz navidad” que enviamos pela internet. No Riviera, os quartos menores, mas nem por isso desconfortáveis. A vista, em dois janelões, dava para o mar do Caribe. Banheira sem tampa, o que já era esperado ── tenho o que costumo chamar de síndrome do Vinícius, gosto muito de ler dentro de uma banheira como fazia nosso poetinha, por isso minha demanda pela tampa. O café da manhã era bem simples, mas serviam um arroz com feijão saborosíssimo. A lanchonete, aberta dia e noite, ficava ao lado do saguão e tinha o mesmo movimento da do Habana Libre. Todos os dias quando chegávamos, tomava ali meu “curtito” e observava a beleza da mulher sentada no balcão, cada dia uma diferente e nunca mais de uma. Num começo de noite ao chegarmos, sentei-me no balcão e pedi um café. A moça que estava ao lado tomava uma bebida, era muito bonita e sensual, se vestia muito bem e me abordou pedindo para pagar uma dose. Respondi que não poderia. Ela perguntou por que, se não a achava atraente. Respondi que a achava muito atraente, mas era casado e que no Brasil um homem casado não pode pagar bebida para uma mulher, principalmente bonita como ela. Tomei meu café e subi para o apartamento. Umas duas horas depois, quando descemos para sair, fui tomar outro café e lá estava ela, sentada no mesmo lugar e parecia com a mesma dose de bebida no balcão. Abordou de novo pedindo para pagar uma dose sem lembrar de que já havia feito isso. Respondi do mesmo jeito e fiquei imaginando alguma droga provocando o esquecimento na mulher linda, sensual e bem-vestida. No outro dia conversando com o garçom, ele me explicou que era permitida uma daquelas mulheres acompanhantes no balcão por dia, que elas eram pessoas de situação financeiras muito privilegiadas e escolhidas a dedo para fazer ponto no hotel. De manhã saímos para Habana Vieja onde passamos o dia todo andando pelas ruas, voltando a lugares que já tínhamos ido e conhecendo novos. Muita música nas ruas e praças, muitos museus e o cuidado enorme com a arte. A valorização do ser humano, pura e simples, desmistificada em meio à carência material latente. Na volta resolvemos caminhar pelo Malecón – quatorze quilômetros até o hotel e um pôr do sol deslumbrante, muitas paradas para fotografias e para observar o casario castigado pelo tempo, pela falta de recursos, mas sendo recuperado em alguns pontos. Nesse dia havíamos feito contato com um pessoal que preparava as maquetes para obras de restauração. Que trabalho sensacional presenciamos. Perguntamos de onde vinha o recurso para um trabalho daquela monta, e a resposta cheia de orgulho, de um fundo internacional para recuperação do bairro de Habana Vieja, patrimônio cultural da humanidade. Por indicação de um dos desenhistas, caminhamos por umas duas quadras e entramos numa das obras em andamento, um prédio de dois andares com o trabalho de restauração já em fase final de acabamento. Os operários, com a consciência do que faziam, nos deixaram perplexos, que esmero com o ofício de recompor cada detalhe e que dedicação ao que faziam. Identifiquei na hora o mesmo zelo do meu sobrinho Manoel Filho com sua bem-sucedida Biapó no Brasil e me veio o mesmo pensamento de um dia visitando uma obra que eles estavam restaurando ― restaurar é sem dúvida quase uma liturgia. A partir desse dia começamos a observar o que já havia sido restaurado e o que estava em andamento. São inúmeras obras prontas e muitas sendo realizadas em Havana Vieja e no Malecón. Era nosso último dia no Riviera, voltaríamos ao Habana Libre para esperar a Germana, que chegaria do Brasil e lá ficaríamos por dois dias antes de ir conhecer as províncias. Saímos por toda a manhã, antes de fazer a mudança de hotel. Ficamos caminhando pelas imediações da Igreja e Convento de São Francisco deixando a Casa de Las Américas para outro dia. Fotografando. Eu, quase obsessivamente, e Marcelo com aquela calma de esperar a fotografia ficar pronta no espaço, como querendo me dizer, sutilmente, agora vai com mais calma. Nos altos do Convento seguíamos com a câmera o grupo de palhaços que todos os dias faziam uma caminhada pelas ruas de Habana Vieja alegrando os passantes. Uma senhora vestida de preto debruçou no parapeito para olhar o grupo. Dei dois passos pra trás e ali estava a fotografia; pegando a senhora, o parapeito e as pessoas na praça rodeando o grupo de palhaços. Fotografei e voltei pra dentro do convento. Marcelo depois de quase uma hora me encontrou no saguão. Rindo, me mostrou a fotografia em preto e branco da mesma senhora de costas quando soltava a fumaça do cigarro. Ali estava o Mestre de quem escondi a que fizera. Chegamos ao Habana Libre no meio da tarde, almoçamos lá mesmo. Germana chegaria por volta das cinco da tarde, então não saímos mais, exceto para alguns “curtitos” na lanchonete, no mais era preparar nosso possível roteiro em Havana com ela. Mal chegou, já saímos pra Habana Vieja, agora com um diferencial, ela fala fluentemente espanhol. Enquanto estávamos sós, eu e Marcelo andamos muito pelas ruas, identificamos lugares em que não entravamos para esperar sua chegada e conhecermos juntos. Museus, teatros e um tanto de espaços culturais. Naquele mesmo fim de tarde, saímos para uma pequena volta e logo retornamos ao hotel, onde jantamos e não saímos mais. Durante o jantar, descobrimos que estávamos agora em apartamentos no mesmo andar em que, durante o início da revolução, o governo se instalara. O apartamento onde fiquei fazia parte do gabinete do comando, talvez sua sala de recepção. Foi inevitável imaginar o que teria se passado ali, tropas ocupando todos os andares do hotel, muitas demandas por uma organização inicial, uma alegria misturada com a desordem da hora, como quando a Província do Grão-Pará aderiu à Independência do Brasil e, no nosso caso, ocasionou o vandalismo excessivo provocando a repressão que foi a origem do famoso episódio do Brigue Palhaço (navio de nome São José Diligente), um dos fatos que gerou a Cabanagem. Minha imaginação intuía que a euforia foi predominante, mas as lideranças tinham de fato controle e consciência do que faziam. Não havia como não sentir uma emoção diferente ali. A revolução e seus líderes, o maior inimigo dos tempos modernos, tudo isso estava impregnado naquelas paredes e até na falta da tampa da banheira. Foi uma noite de muitas reflexões e poucos cochilos fazendo a curadoria das fotografias dos últimos dias. Cada imagem na tela do computador me remetia a uma comparação – IDH é o 51º, o nosso 84º, nossa média de anos de escolaridade é de 7,2, enquanto em Cuba é de 9,9, e a mortalidade infantil, 5,6 por mil. Como desprezar isso? Ditadura? Atraso econômico e político? Ou prioridade em cuidar do homem. O progresso social como dever, como fato, e não como meras palavras. Pobres, a renda do povo cubano não é difícil de entender, o Estado é o grande empregador, remunera de inúmeras formas, e os benefícios fazem parte desta renda. Fiquei imaginando como seria se não tivesse havido o bloqueio internacional ou se eles não tivessem continuado apenas na agricultura da cana-de-açúcar para trocá-la com um único parceiro comercial, mudando apenas, dos americanos que os espoliavam detendo o comércio da exportação, pelos russos consumidores, em uma permuta sempre desfavorável. Será que esse modelo de priorizar o ser humano em todas as possibilidades de desenvolvimento não teria sido um exemplo? A leitura que faço é que o bloqueio os jogou no colo dos russos, que trocavam o açúcar que produziam obsessivamente por petróleo e quinquilharias na maioria das vezes. Percebi vestígios disso em muitas coisas que vi. Com o fracasso econômico da União Soviética, nem petróleo nem quinquilharias havia mais pra trocar e demoraram muito para sair da única opção econômica que escolheram. Hoje se percebe o esforço em muitas frentes, uma, talvez a principal, seja o turismo. Com ele a preocupação internacional com o patrimônio arquitetônico, principalmente de Habana Vieja. Mas identifiquei também a quebra não oficial do bloqueio feita por muitos países, principalmente os mais independentes da influência americana, tardio sim. Nem por isso menos importante. A madrugada parecia conspirar com minhas reflexões me dando o tempo passando devagar até o nascer do sol sobre Havana. Da sacada, emocionado, contemplei aquela cidade linda e maltratada e sua gente corajosa e cordial, certamente ainda dormindo, e a fotografei compulsivamente. Saímos pela manhã depois de decidir o itinerário pelas Províncias e tentar novamente, sem sucesso, alugar um carro. Impressiona o número e a simplicidade dos museus de Havana, mais ainda o cuidado de cada pequeno pedaço da memória e história deles. As obras do Museu Nacional de Belas Artes e as do Museu de Havana não me impressionaram muito, mas a organização sim. Parecia que em algum momento, durante a revolução, sumiram com os acervos. A beleza da arquitetura do casario e o fato de encontrar nas igrejas obras de maior valor artístico me levaram a supor isso. O Museu da Revolução está instalado em um prédio belíssimo. Nele passamos mais da metade do dia percorrendo cada sala. Ali estava a história que tanto emocionou a juventude da minha geração. Durante a visita relembrava ao Marcelo pontos de nossas conversas em sua adolescência. Numa das últimas salas, em tamanho natural, Guevara e Camilo Cienfuegos, feitos com resina e trajando suas próprias roupas e adereços. Foi uma das coisas mais bonitas e emocionantes que vi em Havana. Pareciam vivos, estavam vivos de alguma forma. Não consegui descobrir qual resina era aquela e nem o autor, somente um grande artista poderia conseguir aquelas expressões. Tentei a fotografia, mas não era permitido. Ficou a lembrança na fotometria da emoção. Visitamos o Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográfica, primeiro organismo cultural criado após a Revolução cubana, e a lojinha onde são vendidos cartazes de filmes usando a serigrafia como técnica de impressão. Uma arte simples e de espantosa criatividade, são famosos por isso. Enquanto Marcelo e Germana escolhiam alguns cartazes para levar, fui dar uma volta pelas imediações e acabei entrando num banco de sangue onde conversei demoradamente com a única funcionária que me contou da prioridade da medicina preventiva praticada no país. Depois um café e a espera na frente do clube de cinema observando a variedade das marcas dos carros antigos, esperando ver uma Rural, um DKV ou um Gordini, que acabei não vendo. Muitas unhas postiças decoradas nas mulheres, e as pessoas totalmente de branco cumprindo o preceito religioso dos iorubás ou santeria de andar assim durante um ano, bem diferente dos costumes religiosos de nossa descendência africana. Dali tomamos um táxi lotação – um Chevrolet 58 onde nos acomodamos junto com quatro outros passageiros. Os dois dias seguintes foram percorrendo museus, revisitando praças e interagindo mais com Habana Vieja, uma sensação de fazer parte daquelas ruas. O horário estabelecido para a saída do ônibus foi cumprido com precisão de minutos, Viñales na província de Pinar del Río nosso destino. Na saída o taxista nos indicou uma família que poderia nos hospedar, e foi lá que ficamos. Na região fica a Cordilheira de Guaniguanico, a Sierra del Rosário e a cidade de Viñales, na Serra de los Órganos, um lugar de impressionante beleza. Rios subterrâneos, caminhos naturais cavados na rocha, paredões enormes, mas o que me chamou a atenção primeiro foi a casa de frente de onde estávamos. Pintado em sua fachada “Abuelos” onde pessoas de idade passavam o dia juntos e à noitinha voltavam para suas famílias. Depois foi o filho da nossa anfitriã, rapaz de uns trinta anos, com quem conversei muito naqueles dias. Ele, um especialista em consertar carros ou adaptar peças de uns em outros. Fazem isso usando até peças de tratores. O conhecimento para essas adaptações foi adquirido na prática e na soma de experiências. A hospedagem em casas de família hoje é permitida, e isso os ajuda na renda familiar. Família de origem rural, o pai plantador de fumo só conheci no último dia e, com a ajuda do filho mais desembaraçado em entender meu português espanholado, pude saber um pouco da sua lida. O fumo que produzia era de qualidade excepcional, o preferido de Guevara, me presenteou com um amarado de doze em folha de bananeira e pude comprovar sua excelência. Desde o bisavô, a família plantava tabaco e, pelo clima da região e o esmero da prática familiar, dali saíam charutos cobiçadíssimos. Todo o processo não era muito diferente do nosso fumo de rolo, que já conhecia bem, exceto pelos grandes galpões que usam na secagem, limpa e vira das folhas e, é claro, na qualidade da semente que dá folhas maiores. Nos dias que passamos ali, andamos por todo o complexo de cavernas e morros e provamos pratos da culinária local, muito saborosos e que lembram muito a nossa. O arroz com galinha e birra, que é um tempero parecido com o nosso açafrão, pode ser confundido com nossa galinhada goiana. Uma noite saímos para uma festa, uma noite muito fria, e o que considerei uma caricatura da música cubana nos desanimou e fez com que saíssemos sem demorar. Na manhã seguinte voltamos para Havana, onde resolvemos passar dois dias antes de seguirmos para Cienfuegos. O hotel que ficamos era simples e confortável, ficava de frente para o Molecón. Também tinha um bar/café funcionando dia e noite e nele meus “curtitos”. Quando acendi o cigarro vi o jato d’água na enorme vidraça que dava para a rua. Tirei imediatamente a máquina da bolsa e fotografei o ensaboar e secar do vidro deixando transparecer o Molecón e o mar. Quando terminei e pedi outro café, o rapaz que me atendia me perguntou da máquina fotográfica, pediu pra ver, era fotógrafo, dali entabulamos uma demorada conversa sobre fotografia, e ele combinou de levar no outro dia seu trabalho e o equipamento que tinha para me mostrar. E foi o que fez. Quando nos mostrou uma Rolleiflex digital e suas fotografias, ficamos boquiabertos com a máquina, com a qualidade das fotografias e com o olhar dele. Um apaixonado com uma sensibilidade rara, atestou Marcelo. Durante o dia andávamos por Habana Vieja, prédios restaurados e os pequenos museus e, na primeira noite, assistimos ao Quebra Nozes no Gran Teatro de Havana. Quando chegamos não havia mais ingressos, mas encontramos uma pessoa que nos ofereceu cortesias por um valor muito menor que a bilheteria. A cortesia como chamavam eram ingressos para cubanos, assim entramos. O teatro, tanto em sua beleza quando na acústica perfeita, é uma obra de arte. Ao lado da sala de espetáculos, mas dentro do prédio, um café ao ar livre que atende os intervalos. A apresentação foi de arrepiar, orquestra, dançarinos, figurino e a primeira bailarina, cujo nome até hoje me penitencio de não ter gravado, fizeram uma noite inesquecível. Na manhã do dia seguinte, assistimos à mesma orquestra tocando em frente ao teatro por duas horas. Composta de músicos de todas as idades. Dava para perceber o olhar dos mais jovens apurando a técnica com os mais experientes. Visitamos um centro de cultura afro, mistura de museu e espaço de santeria, onde identificamos várias doutrinas reunidas. Um hotel restaurado e muito imponente e andamos muito no entorno com uma parada na praça de frente à Rua Brasil, onde finalizamos o dia depois de passar na sede da Assembleia Nacional na qual não pudemos entrar devido à hora. No outro dia, no fim da manhã, saímos para Cienfuegos, parte da viagem pela principal estrada cubana, onde pudemos observar o desenvolvimento de outras culturas fora a da cana e a beleza do rebanho de gado ainda muito pequeno, mas indiscutivelmente de qualidade. Chegamos a Cienfuegos no finzinho da tarde, tomamos um táxi, um Ford dos anos 40, e saímos procurando um hotel. Depois de muito andar encontramos um único quarto. O taxista ficou esperando e quando voltamos da recepção veio ao nosso encontro e pediu que retirássemos as malas pela viela no fundo do hotel, pois ele tinha a licença vencida e os guardas estavam parados no outro lado da rua. O prédio, um casarão recém-restaurado, estilo francês, era muito bonito. Tudo novo e fiel nos mínimos detalhes. Um colchão a mais e dormimos os três como se estivéssemos na França. Cienfuegos foi fundada por franceses vindos de New Orleans e é a cidade portuária mais importante de Cuba e uma das Províncias que mais se destacou na produção da cana-de-açúcar. Acordei as 5 horas e por intuição subi no terraço para fotografar o sol nascer e sentir o frio moderado que fazia, com a certeza de que seria arrebatador. E foi. De repente, Marcelo e Germana aparecem como se também tivessem sido atraídos pela manhã, dançaram como dois bailarinos franceses iluminados pelos primeiros raios de sol. No nosso roteiro, o previsto era ficar apenas um dia e duas noites em Cienfuegos, mas ficamos algumas horas a mais, uma vez que ainda não tínhamos as passagens para Trinidad compradas. Deu tempo de conhecer o Parque José Martí e a Catedral de Cienfuegos. Das Províncias por onde andamos, Cienfuegos foi onde mais vimos restaurações históricas concluídas. Trinidad, em conjunto com o Vale de Los Ingenios, é Patrimônio da Humanidade desde 1988, lembra muito a Cidade de Goiás, principalmente por seus telhados vistos do alto da igreja, hoje transformada em museu, com muitas peças bélicas. Foi o principal porto de entrada para o tráfico de escravos. Era dia 31 de dezembro e resolvemos ficar num hotel à beira-mar, um pouco distante do centro. Deixamos nossas malas e fomos conhecer suas ruas de pedra, como as de Goiás Velho, com seus becos e as intactas casas espalhadas por ladeiras e ruas tortuosas. A cidade parece encravada na Sierra Escambray, que empresta toda sua beleza para compor com aqueles telhados uma paisagem única. Visitamos alguns museus e, à noitinha, a Casa de la Trova, uma espécie de clube frequentado por músicos de vanguarda. Ouvimos um conjunto tocar música instrumental de muita qualidade. Ao se aproximar da meia-noite, Marcelo e Germana saíram para conseguir um táxi que nos levasse ao hotel. A apresentação terminada, o lugar quase vazio, apenas um casal numa mesa, que logo se levantou. Terminava meu rum quando dois músicos do grupo que acabara de tocar sentaram-se à mesa de frente, um com um tambor parecido com atabaque, o outro com o violão, e começaram a cantar e tocar bem baixinho Yesterday, nada mais belo do que aquilo naquela hora. Parecia um sonho a interpretação dos dois. Chegamos ao hotel cansados do tanto que andamos e não conseguimos esperar a meia-noite. Cumprimentamo-nos, e cama. Só que não consegui dormir, meu pensamento ia insistentemente para minha infância, lembrava cada detalhe dela e fazia a comparação com o que via naqueles dias. Parecia que o tempo tinha parado para eles, tudo era como no tempo do meu passado. O senhor descendo a rua com a carne sustentada pelo cordão enganchado no dedo era igual ao meu pai fazendo o mesmo nas ruas da minha infância em Ipameri. As duas mulheres na varanda bordando, com os dois aros sustentando o pano a ser bordado, era a imagem das minhas tias, na verdade primas, que chamávamos de tias, na casa antiga que elas moravam. Na mesa, como muitas vezes na infância, arroz, feijão e uma enorme variedade de misturas que era como chamávamos qualquer verdura, legume ou proteína. Telhados iguais, carência igual, uma pobreza sem miséria juntando passado e presente. Ali, frente ao mar, sozinho, assistindo ao longe os funcionários do hotel assar um leitão na fogueira, lembrei-me da fisionomia calma do meu pai que, num dia como aquele, nos deixou. O Brasil é um país grande, muito rico, mas com muitas distâncias, sociais, culturais, e é injusto. Conviver por aqueles dias com a vida de um país pequeno, pobre, mas sem distâncias sociais e culturais foi de verdade uma confirmação de que muitas coisas sonhadas são possíveis. Que a parte ruim pode estar num regime como o deles, assim como em um como o nosso. Pessoas se perdem em suas histórias, os mais próximos do poder talvez sejam os que mais são afetados por isso. Em minhas conversas com o Marcelo, dois eixos se impunham: A comparação de Cuba com o Estado do Maranhão ― Um, uma ditadura política consentida e o outro uma ditadura econômica consentida mais pela apatia, ambos viviam nos anos assim. A comparação do meu passado no interior com o presente que estávamos vivenciando, apenas o tempo, 50 anos. Dali seguimos para Santa Clara, importante palco na tomada decisiva do poder pelos revolucionários e uma das Províncias mais produtivas da Ilha. Chegando lá, na saída da rodoviária, um senhor alto, muito simpático e falante, nos ofereceu acomodações na sua casa. Analisamos a proposta, vimos a localização e, muito pela simpatia, aceitamos. Ele era engenheiro agrônomo, sua mulher pintora. Viviam num apartamento confortável nas ruas centrais de Santa Clara. A senhora, muito simpática, era uma mãezona fosse quando servia o café da manhã ou quando nos mostrava seu trabalho, as fotografias de suas exposições ou as matérias em jornais. Uma pintura meio primária, mas que me agradou. Nosso anfitrião, quando chegamos e nos acomodamos, nos serviu um cálice de rum, foi o melhor que tomamos na viagem toda. Durante o tempo que ficamos lá, ao chegarmos à noite, sempre no criado mudo um cálice de rum. Em nossas conversas fiz uma observação da qualidade do gado que via nos nossos deslocamentos pelas províncias. Ele me contou que o rebanho estava sendo monitorado para crescer, produzir mais leite e acabar o pouco consumo de carne bovina na Ilha, e que a base deste crescimento e controle estava sendo conseguida com a inseminação e o sêmen que vinha do Brasil. Com ele pude confirmar minha suposição de que o planejamento econômico deveria ter sido feito em outros setores agrícolas, e não baseado só na cultura da cana-de-açúcar e no fumo. Perguntei sobre a possibilidade de esta decisão ter se baseada na bacia hidrográfica da ilha, o que ele descartou me mostrando um levantamento hidrográfico com muitos rios de pequeno curso. Hoje existe investimento muito grande na produção, já consolidado desde a queda do bloco soviético, em hortas urbanas e no plantio familiar, produzindo grãos, cítricos, verduras, hortaliças etc. que diminui os custos de transporte, defensivos e a necessidade de muita tecnologia. Pelo mesmo motivo se busca com isso também não ter uma grande dependência do petróleo com antigamente. Em curso a maior conversão de agricultura com dependência de produtos químicos para a orgânica e o incentivo à produção familiar. Naquele mesmo entardecer, saímos para a praça principal de Santa Clara. No coreto uma orquestra tocava parecendo dia de festa, como se fosse uma data importante, mas não, aquilo era corriqueiro para eles e dava pra perceber nas pessoas o convívio que não via fazia tempos. Crianças, jovens, adultos e pessoas de mais idade conversando e convivendo com boa música e o anoitecer. De manhã, fumava na pequena varanda observando a rua quando vi o cavalo que puxava uma carroça. O animal, com a devida fralda, urinava, e o carroceiro do lado esperando com um balde de água nas mãos. Nosso anfitrião ao meu lado percebendo minha curiosidade contou ser obrigatório o uso da fralda, era uma questão ligada à saúde pública, assim como toda limpeza urbana. Perguntei por que o balde de água, ele me respondeu que, quando o animal urina, o carroceiro lava o local. Tomamos café da manhã e não resisti, pedi um cálice do rum e perguntei da sua procedência. Rum da província – me respondeu. Que bebida! Ainda hoje quando me lembro do sabor não tenho nenhuma dúvida de nunca ter tomado um rum como aquele. Ao caminhar pela cidade, fui constatando o rigor com a limpeza urbana e me deparei com entulho nas margens de um córrego, fiquei surpreso, mas no outro dia passamos novamente pela ponte e o entulho não estava mais lá. Santa Clara tem a segunda maior universidade de Cuba e foi, pela sua importância em ter definido a vitória da revolução, tendo à frente de sua tomada Guevara e Cienfuegos, foi o lugar escolhido para o Museu e Mausoléu de Ernesto Che Guevara. Sua estátua pode ser vista a distância. Contracenando, um mural em relevo com cenas da época da guerrilha circulado pelo pequeno jardim. A simplicidade do conjunto chama a atenção. Em sua construção, o povo de Santa Clara contribuiu significativamente com trabalho voluntário. Ali passamos algumas horas entre documentos, cartas, fotografias e objetos. Eu, desvendando alguns detalhes, Marcelo e Germana descobrindo Guevara. Na saída do museu o Mausoléu, encravado no chão estão sepultados os companheiros que com ele morreram na Bolívia, na parede a fotografia de cada um deles. Na de Guevara, apenas uma projeção desenha, em luz, a estrela solitária. Dali saímos emocionados e ficamos sentados na escadaria em silêncio e algumas lágrimas por um longo tempo. Independente de opinião política, é difícil não admirar a história e a paixão estampada na vida de dois homens que se entregaram, totalmente ao que acreditavam. Ainda mais quando suas convicções estiveram acima de circunstâncias. Difícil não admirar Camilo Cienfuegos, morto prematuramente num acidente misterioso, e Guevara, retratado pela crônica fotográfica por onde andou como símbolo do movimento revolucionário, verdadeiro em suas crenças. Naquele fim de tarde, encontramos um pequeno bar numa das esquinas da praça principal, nele um conjunto de cinco músicos tocava música cubana. Entramos e ficamos em pé no balcão. Bar cheio, pessoas muito hospitaleiras e músicos maravilhosos. Não teve como não comparar a qualidade do que ouvíamos com o “Buena Vista”, que fez tanto sucesso reunindo compositores, músicos e cantores cubanos. Os músicos liderados por um senhor de idade que veio falar comigo, talvez por perceber minha atenção de total interesse pela música que tocavam. Conversamos bastante nos intervalos em que outro cantor o substituía. Todas as músicas que ouvimos eram composições deles, de outros autores de Santa Clara e de outras províncias. No final ele me disse onde se apresentariam novamente e foi assim que os seguimos em todos os dias que ficamos na cidade. De Santa Clara pegamos um táxi para Cayo Santa Maria com uma parada rápida em Remédios, pequena cidade onde apenas conhecemos a igreja com seus treze altares de ouro e num deles a inusitada imagem de Nossa Senhora, a virgem imaculada grávida. Vimos também os restos das alegorias da festa popular Parrandas de Remédios, tradição originada desde o século 18 na cidade e que se espalhou por outras localidades. Realizada na noite de 24 de dezembro, dois bairros disputaram uma barulhenta batalha de fogos de artificio numa rivalidade parecida com a do Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, realizado na quadra junina, onde se rivalizam o Boi Garantido e o Boi Caprichoso. Ali o mais barulhento vence. Antes de seguir viagem, fui procurar um “curtito”, acabei me conformando com um café de coador mesmo. Em poucos minutos de estrada, vimos a monumental e premiada obra rodoviária Pedraplén Caibarién-Cayo Santa María, estrada construída sobre o mar do Caribe que liga a ilha de Cuba à pequena ilha onde fica o hotel. Um resot da rede Meliá, que não esperava encontrar. Só depois fiquei sabendo de um tipo de sociedade do governo com a rede espanhola que se prolifera aproveitando o potencial turístico que a beleza natural potencializa. 0Nos dias que lá passamos, muita praia, sinuca, uma banheira espetacular, os “curtitos” e muito papo com os funcionários da lanchonete. As madrugadas silenciosas na praia olhando o céu cravejado de estrelas e o mar do caribe, calmo naquelas noites, e a experiência de passar uma noite inteira com o Marcelo na praia, esperando a fotografia especial do céu recamado de estrelas que ele tanto queria tirar e acabou não dando muito certo, foram momentos inesquecíveis e de muito frio. Impressionado fiquei com as praias de Cayo Santa Maria, por ser ilha vulcânica, o mar é profundo bem perto da praia, com poucos passos a água já tem dois metros de fundura. É tão límpida que num passeio que fiz, navegando a uns 200 metros da praia, conseguíamos ver o fundo. O condutor da vela que nos levou leu a fundura no marcador, oito metros. Meus “curtitos” na lanchonete, principalmente nas madrugadas, possibilitaram contatos e conversas mais longas com seus funcionários. O que me fez entender melhor o funcionamento do complexo turístico que construíram ali. Muitos hotéis com o padrão mínimo daquele. Os funcionários, todos cubanos, são treinados para o atendimento turístico e moram numa mesma comunidade. A impressão que me ficou foi de que demoraram muito para adotar o turismo como um dos pilares da economia, talvez escaldados pelo passado. Antes da revolução, principalmente Havana, era um antro de jogo, prostituição, drogas e corrupção. O filme Havana, do diretor Sydney Pollack, é um retrato fiel do que foi Cuba, apesar de ambientado nos dias da vitória dos revolucionários. Num entardecer, procurando o melhor lugar para fotografar o pôr do sol, me deparei com um canadense dando ou vendendo algumas peças de roupa para um funcionário do hotel. Mais tarde encontrei Marcelo e Germana na lanchonete e uma das funcionárias com quem sempre conversava num animado papo. Como Germana fala espanhol, ficava tudo mais fácil. Contei à garçonete o que vira na praia e perguntei se ela sabia o que era aquela transação. Ela respondeu ser comum ganhar ou comprar objetos dos turistas, não para uso, mas sim para vender. Naquela noite refleti se não deveria esquecer propositalmente minha mala quando saísse do hotel. Não o fiz, soava como uma esmola e lembrei Luiz Gonzaga e Zé Dantas em Vozes da Seca: “uma esmola para um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.” Naquela conversa com a garçonete, pudemos deduzir algumas coisas sobre o maior avanço na medicina que conseguiram. O sistema todo é inteiramente voltado para a prevenção, e isso explicava a indignação da moça ao nos contar um caso de família em que a complexidade do tratamento ficava à mercê de uma fila de atendimento, furada frequentemente. Um caso triste que nos deixou com lágrimas nos olhos junto com as da moça. A volta para Havana fizemos num voo saindo do aeroporto doméstico Las Brujas, bem perto do hotel, em um avião para 30 pessoas. A vista dá uma dimensão da beleza do conjunto turístico. Antes do embarque, Marcelo me presenteou com a cópia da Constituição de Cuba, um gesto simbólico que trespassou todas as nossas conversas, desde sua adolescência até aquela viagem. Em Havana, voltamos ao hotel em que encontramos o nosso amigo fotógrafo para passar o último dia e a última noite. Mal deixamos as malas, saímos para conhecer a Casa de Las Américas, fundada logo depois da revolução e voltada para a cultura da América Latina e que promove anualmente um dos maiores prêmios literários, nos quais já havia concorrido por quatro vezes, além de manter uma correspondência esporádica. Esta visita foi adiada muitas vezes por diversos motivos, talvez o maior fosse de querer conhecer mais, conviver mais antes de visitar principalmente sua biblioteca e as pessoas com quem correspondia. Para minha frustação, estava fechada, não abria nas segundas. Frustrados, resolvemos ir para o começo do Malecón e arredores. Terminal portuário, museus que ainda não tínhamos entrado, a igreja ortodoxa recém-reformada, duas galerias de arte e, por fim, o retorno andando por Habana Vieja. De repente, passando por uma ruazinha, três garotos de mais ou menos uns dez anos improvisavam um jogo de baseball, ao nos ver, o que parecia e era o mais esperto deles veio correndo e se abraçou comigo pela cintura, de uma forma intensa, e fez o mesmo com o Marcelo e voltou a me abraçar e, revezando os abraços, fez isso muitas vezes, seus avós que observavam tudo quiseram se desculpar sorrindo e pedindo para ele parar, mas quando perceberam a nossa reciprocidade deixaram a alegria contagiar. Assistimos à brincadeira deles por muito tempo entre fotografias e abraços. A despedida foi com lágrimas nos olhos de todos. Uma comunicação intensa, coisa de alma, sabe lá! Tenho sempre na lembrança esse momento muito especial. Naquela noite não consegui dormir, fiz uma triagem nas últimas fotografias tiradas, tomei umas doses de rum e uns tantos “curtitos” no bar do hotel, arrumei a mala e passei horas olhando pela janela o bairro vizinho, o que primeiro conhecemos em Havana, com seus varais improvisados, suas fachadas esmaecidas pelo tempo, e aí bateu uma saudade da minha vida de cinquenta anos atrás. 2010/11 MQ

sábado, 19 de outubro de 2024

Teatro... Quando tento descobrir quando começou minha ligação profunda com a brasilidade o que vem de imediato na memória é o velho rádio. Enorme, com aquele círculo parecendo um olho que, quando ligado, se iluminava em verde com um ponto preto no centro. Sim, foi pela música os primeiros solavancos de encantamento. Efetivamente não foi pelas preferências dos meus familiares ou pelos meus amigos contemporâneos. Embora eles tenham tido grande importância em outros aspectos da minha vida. Morando em Goiânia, bancário com um salário razoável, sem muito o que fazer fora do trabalho a não ser ler muito e estar cada vez mais bem-informado sobre a nossa cultura de um modo geral e, vez ou outra uma esticada pela boemia. Um dia encontrei o Getúlio, meu amigo de infância que me convidou para entrar num grupo de teatro que estava montando uma peça brasileira da qual eu conhecia o texto e sua repercussão. Meio acanhado, cheguei na casa do diretor, Otávio Zaldivar Arantes o grande idealista cuja vida foi dedicada ao teatro, sua determinação nos legou o Teatro Inacabado, naquele tempo, único no País de um grupo amador. Meio desconfortável li a fala de um personagem, depois a de outro e assim fui aceito e depois de testado em muitos papéis. A presença do irmão mais velho do Getúlio, Alisio Alkmim, ator e iluminador contracenando no meu teste foi espetacular. A partir de então, quase que por necessidade, passei a estar naquele ambiente absorvendo tudo que podia. A peça “O Auto da Compadecida”, montada pela segunda vez, foi um dos grandes sucessos da AGT. O cenário idealizado como um circo. O elenco reunido foi espetacular; Valéria Zanini, Luiza Maura, Lucia Vasconcelos, Alísio Alkmim, Dalmo Teixeira, Rubens Chaer. Getúlio Alkmim, Rogério Silva, Castilho e Paulo Roberto Vasconcelos... Nela representei o Coronel Antônio Noronha de Brito Moraes e um dos diabos na cena final do julgamento. Meu envolvimento foi se tornando maior, não só com o ato de representar, mas também com o fascínio que era tudo aquilo, o Alísio me ensinando tudo que sabia sobre iluminação e todas as nuances do ofício. Quando se afastou, anos depois, assumi seu lugar. Otavinho percebendo meu interesse não só em representar, mas completamente integrado as tarefas do cotidiano, sempre disponível, me fez seu braço direito. Muitas vezes saia do banco em que trabalhava direto para o teatro, principalmente quando havia apresentações. Naquela época talvez fosse o único teatro da cidade com todos os rudimentos técnicos, exceto o ar-condicionado que, na época nem era tão reclamado. O nome Inacabado remetia ao fato de que, antes da inauguração, na soldagem da estrutura do teto, uma fagulha havia provocado um incêndio. Mas lá estavam os companheiros Walter Guerra, Rosary Esteves e Rui Esteves entre outros que se somavam ao sonho. Também meu a partir de quando conheci toda a história. Sempre junto e quando recebíamos espetáculos não saia de perto do Alísio aprendendo o que podia sobre iluminação e um faz tudo atendendo as demandas das companhias que vinham se apresentar. A segunda peça que participei, encenamos “Condenado ao Inferno” de René de Obaldia – Otavinho entusiasmado pelo teatro do absurdo queria levar ao palco o que havia visto numa de suas viagens. Fui escalado para fazer um dos condenados. Fizemos rápida temporada no Inacabado antes de seguir para o Festival de Arcozelo idealizado por Pascoal Carlos Magno. Na última hora, véspera do embarque o Dalmo, que fazia um dos papeis principais, não pode ir. Fui escalado para substitui-lo, mais por conhecer todos os detalhes da montagem e por isso, todas as falas. Dois dias de ensaio e em toda a viagem até o Rio de Janeiro ensaiando também na rodoviária esperando a condução que nos levaria até Arcozelo. Lá chegando, com muitos dos participantes, principalmente do Pará, nos recebendo com uma cantoria que varou a madrugada. Pascoal Carlos Magno daquela maneira muito carinhosa alardeando que éramos o único grupo de teatro de estudantes, ele não gostava de falar amador, que tinham teatro próprio. No dia da nossa apresentação um acidente. Nosso cenário, todo em preto camuflava as cordas do balanço da personagem feminina, os pés do elevado do anjo e as cordas sustentando o balanço do condenado. Em volta, no nível do palco, outros seis também condenados perambulavam pelo palco como se purgassem seus pecados. Antes de abrir as cortinas, de cada lado saia um encapuçado vestido todo de preto com um turíbulo movimentado em direção da plateia. O da direita com um passo em falso caiu do palco, o turíbulo ao bater no chão esparramou as brasas que não eram cenográficas, no público. Constatado que ninguém havia se queimado e, depois de uma breve pausa, começamos nossa apresentação. A mulher-personagem contracenava com movimentos no balanço, o anjo da mesma forma se movimentava no pedestal, mas o condenado, meu personagem, ficava ajoelhado, sentado sobre as pernas, com as duas mãos na superfície duma prancha sustentada por cordas e só fazia movimentos faciais quando falava, mantendo sempre o rosto na mesma posição. Exceto pelas roupas, o cenário todo em preto delineava o surrealismo. Apesar do incidente no início, fomos muito aplaudidos. Quando me baixaram da prancha não dei conta de me levantar, nem de fazer nenhum movimento. Um professor cujo nome nunca soube, especialista em expressão corporal, que ali faria uma oficina sobre o assunto, subiu no palco e me socorreu destravando meu corpo e dando uma bronca em todos, depois de saber que eu não tinha nenhum preparo para permanecer naquela posição por tanto tempo. No dizer dele, subira no palco para me cumprimentar pela performance. O Festival de Arcozelo foi um sucesso, muitas páginas na revista O Cruzeiro. Vereda da Salvação de Jorge Andrade encenada pelos paraenses levou todos os prêmios foi lá que conheci Claudio Barradas e a relevância do teatro paraense. Arcozelo na verdade uma antiga fazenda, acomodava os grupos de todo o Brasil participantes do maior festival de teatro promovido por Pascoal Carlos Magno. Ficamos no antigo estábulo; nas baias, dormíamos de dois em dois. Numa filmagem sobre o local fui escalado para figurar num documentário que o Ministério da Educação e Cultura estava fazendo na cobertura do Festival, indicação feita por Pascoal que já falava da encenação de Romeu e Julieta nos jardins de sua casa no Rio com atores amadores, para minha surpresa, me incluindo entre eles. O que acabou nunca acontecendo. A convivência com grupos de todo o Brasil e principalmente ao assistir Vereda da Salvação e outras peças de autores brasileiros, as aulas e palestras confirmavam a pouca identificação que tinha sobre o que estava na mira do nosso mentor para o grupo. Em nossa volta já se falava em encenar “Uivo”, um poema de Allan Ginsberg, mas o que fizemos, visando o festival de São José do Rio Preto, foi “Salomé” de Oscar Wilde, mesmo sem aparentar a magreza obvia do personagem, o Profeta Iokanaan (João Batista) foi meu papel. Três lances de cenário, minha cabeça moldada em geso por um protético, assim estreamos sem grandes percalços. A crítica não foi boa. No festival foi um fiasco, nada deu certo. Tivemos problemas com a montagem do cenário que levamos e com muitos adereços; barbas descolando dos rostos, o tombo de um dos atores, a música para a dança de Salomé falhando na rotação do gravador de rolo deixando a atriz numa situação cômica inusitada. Quando Alisio se afastou da AGT afiançando que eu daria conta de assumir seu lugar; surpreso e um pouco inseguro com a programação intensa daquele ano, mesmo assim, a cada dia a confiança ia aumentando. Minha primeira atuação sozinho foi num monologo de Garcia Lorca apresentado por uma atriz goiana, o Alisio já havia deixado o esquema da luz pronto. Numa das cenas ensaiadas, ele descia da cabine e na sombra, pela plateia, sorrateiramente subia os degraus do cenário e debaixo da cruz enlaçava a atriz e a beijava; tarefa deixada para que eu fizesse. E assim fiz. Só que sem saber como dar um beijo cenográfico, a beijei de fato. No outro dia ela trouxe um contratado para fazer a cena. Só aí entendi que havia dado uma tremenda bandeira. Naquele tempo iluminei “Gente de Gleba” de Hugo de Carvalho Ramos numa adaptação da folclorista Regina Lacerda, O Uivo encenada pela AGT, sem que participasse de nenhum dos elencos. Alguns espetáculos já traziam o desenho de luz marcado nos textos, outros deixavam por nossa conta, só assinalando algumas passagens. Assim trabalhei com Ari Toledo em três temporadas, Gal Costa e o Som Imaginário, Elza Gomes e Zacarias antes de “Os Trapalhões”, Pequenos Burgueses de Gorki com o Teatro Oficina de José Celso Martines, Vivendo em cima duma árvore e Dom Casmurro com a Companhia do Ziembinski. Convidado por ele fui fazer a temporada também no Teatro Nacional de Brasília. Meu último trabalho no Teatro Inacabado antes de deixar a AGT foi em O Assalto de José Vicente. Por razões que não fiquei sabendo, um dos atores, no mesmo dia que chegaram precisou voltar. A temporada foi adiada por uma semana. Seu substituto, Reinaldo Gonzaga veio no outro dia para substitui-lo. Uma semana de ensaios intensivos que começavam na manhã e se estendiam até a noite; eu estava de férias no banco e acompanhava, ajudando no que podia. A estreia e a temporada foram impecáveis e carregadas de emoção. Um dia antes, todos já haviam saído para o hotel, quando apareceu uma pessoa procurando pelo Reinaldo, era primo do ator e não se viam fazia anos. Estava saindo do trabalho numa construção ali perto. Sugeri que ele viesse ver a peça como nosso convidado e depois se encontrassem fazendo uma surpresa. Assim o reencontro deles se misturou com a alegria de todos comemorando a sucesso da estreia. Durante o acompanhamento dos ensaios acabou que praticamente decorei o texto, as marcações e imaginei coisas diferentes para algumas cenas, além de vislumbrar a possibilidade de fazer com o Paulo Roberto Vasconcelos com quem já estava conversando para deixarmos a AGT e procurar caminhos compatíveis com o que acreditávamos - fazer teatro brasileiro. Textos como os de Plínio Marcos e Sérgio Jockyman autor gaúcho que havia conhecido quando lá morei e muitos outros. Assim obtive informalmente a anuência do autor José Vicente para encenar sua peça e junto com o Paulo fundamos a Cia do Teatro do Autor Brasileiro e começamos a ensaiar num banco de jardim na Praça Cívica, tal qual o Otavinho fazia antes da construção do Inacabado, até que um dia a diretora de um órgão do Estado se aproximou e perguntou o que fazíamos ali. Explicamos que não tínhamos onde ensaiar; ela prontamente nos ofereceu o saguão de sua secretaria no rígido horário das seis às oito da noite. Meu entendimento com o Paulo era muito grande, não só na atuação como na criação de cada detalhe numa montagem diferente da que havia trabalhado, com cenas reestruturadas e a música ressignificando os momentos. Uma ousadia; Paulo era mais alto, fazia o empregado que limpava o banco; eu o bancário retardatário e revoltado. Numa das cenas, no compasso da música de Villa Lobos o bancário se crucificava nos braços abertos do serviçal numa simulação de homossexualismo mais marcada. No final, quando o bancário começa a quebrar toda a agência com a iluminação piscando as luzes como aquelas das boates e a polícia, representada apenas pelos sons de sirene e tiros, o personagem é atingido, começava as músicas de Chico Buarque: Construção e Deus lhe Pague como ele gravou no disco Construção. Nossa estreia foi no Teatro Inacabado, sem que pedíssemos ou nos fosse oferecido qualquer concessão especial, fizemos apenas uma apresentação para um público razoável, mas vibrante. A segunda no Teatro de Arena da Universidade Católica de Goiás totalmente lotado. Na cena final o inesperado; uma garrafa se espatifou no chão e sem que desse conta, me cortei e começou a sair sangue do corte. Com o efeito da luz estroboscópica e o bancário quebrando todo o mobiliário da agência, o som de sirene da polícia chegando, somado a música da cena; foi como se o sangue brilhando com o piscar da iluminação fosse parte da encenação. O público de pé nos aplaudindo calorosamente foi a confirmação de que estávamos no caminho certo. Quando demos as mãos para agradecer ao público; Paulo me disse baixinho, rindo – “Filho da Mãe”. Minha irmã que estava na plateia preocupada com o acidente que ela sabia não fazer parte da cena, já estava na coxia. Com o Paulo, desde a AGT, havíamos feito três peças juntos, mas nunca contracenando, ali naquela segunda apresentação confirmamos a sinergia natural nos muitos cacos respondidos a altura que acrescentávamos na representação. Nem chegamos a pensar em voltar a fazer no Inacabado, nossa experiência em estrear lá não foi boa, Otavinho ficara ressentido com nossa saída do grupo, mais ainda, depois de nossa estreia. Nos dois outros teatros com menos recursos e no DCE, havia a rivalidade disfarçada do ambiente teatral da época. O Cine Teatro Goiânia barreiras intransponíveis. Pensávamos ser no interior, onde poderíamos melhor significar nossos sonhos. O cenário era simples de conseguir aonde fôssemos, um gravador e a luz estroboscópica já havíamos alugado para nossas primeiras apresentações. O único problema era nossa locomoção que nem seria tão complicada, compramos de segunda mão, um baú que cabia toda nossa tralha e poderíamos levar no porta-malas de um ônibus e colocamos na mira adquirir o que estávamos alugando. Logo conseguimos vender um espetáculo em Pires do Rio e seguiríamos até Ipameri, onde amigos promoveriam, por bilheteria, nossa apresentação. Meus cunhados quando souberam se prontificaram a nos levar naquele fim de semana prolongado por um feriado. A apresentação no teatro dos padres foi um sucesso de público mesmo com a quase interferência do cônego por cauda de uma das cenas. Mas, quando levando nosso equipamento para o carro, um dos rapazes que nos ajudavam tropeçou nos primeiros degraus da escada, deixando rolar o baú. O estrago foi grande e, além de inviabilizar nossa próxima apresentação, nos deu um prejuízo maior do que o valor da venda do espetáculo. Cancelamos Ipameri; dali, de volta para Goiânia, o carro do meu cunhado começou a dar problemas acabando por fundir o motor. Conseguíamos acontecer no palco, mas pra chegar nele só dificuldades. A venda de uma apresentação pra uma entidade religiosa foi um alento, voltamos ao Inacabado. Tudo pronto, na véspera cancelaram. Nosso prejuízo não foi maior graças a inesperada compreensão do Otavinho. As conversas que tivemos naqueles dias, eu e o Paulo foram de desalento. Ele tinha um convite para se mudar para Brasília e aceitou. A Cia Teatro do Autor Brasileiro e o Assalto ficou na nossa lembrança. Cinquenta anos depois em Belém, sem nunca mais ter tido qualquer desejo de voltar aquele ambiente, recebi o convite do amigo Edyr Augusto Proença para criar e fazer a iluminação de sua nova peça “Joana” com a atriz e, também minha amiga, Zê Charone, fundadores do importante Grupo Cuíra. Naquela noite o sono não veio, foi noite de gratidão ao amigo Edyr, generoso cumplice de tantas coisas importantes que ajuda a semear, além de nos legar sua diversa obra já conhecida mundo afora. ///////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////// Otávio Zaldivar Arantes... A alma era ele... Sua importância é indiscutível, se doou totalmente ao teatro, uma abnegação começada na juventude e foi intensificada no passar dos anos. A Agremiação Goiana de Teatro foi fundada por ele no interior. O Teatro Inacabado nasceu do ideal de construir em Goiânia um local para sediar a AGT e apresentar as peças encenadas por ela. No terreno havia uma invasão; em troca da desocupação foi, ao invasor, oferecido dois lotes doados pelo Departamento de Terras do Estado. A ajuda do governo e principalmente de professores da UFG, seus alunos e poucos empresários foi importantíssima. O teatro foi totalmente reconstruído e, ainda sem as poltronas inaugurado. Na primeira peça encenada os espectadores se sentavam em cadeiras distribuídas na entrada ou em bancos improvisados com tábuas e tijolos. Numa mudança em seu telhado de alumínio um operário, descuidando-se, deixou espalhar fagulhas de solda elétrica ocasionando um incêndio apavorante. Mas nada demovia o sonhador. Reconstruído, foi durante muitos anos o único teatro de Goiânia com todos os recursos cénicos e técnicos modernos, mas ainda sem o ar-condicionado. Sua vida foi o teatro. Os anos que com ele trabalhei aprendi muito, principalmente sobre sonhos. Muitos anos depois de nos afastarmos, já morando em Belém e trabalhando na Amazônia, nos falamos por telefone. Era sobre a assinatura de um documento num dos órgãos públicos de incentivo ao teatro onde a AGT era cadastrada e meu nome ainda constava como tesoureiro. Prontamente enviei o documento que era preciso; pouco tempo se passou quando recebi a notícia de sua morte. Foi atropelado em Brasília quando se dirigia ao Ministério da Cultura em busca de apoio para a modernização do Teatro Inacabado. Sem nenhum documento, só foi identificado porque levava com ele os papeis que estava indo entregar no Ministério. //////// Zaldivar... / na solidão o sonho / o tijolo, a cena / implodiu na rua / / monólogo perdido / na solidão / diálogo esquecido / nos sonhos / / tijolos inacabados / cena apagada / do espetáculo / de sonhar / / MQ