quarta-feira, 30 de setembro de 2009
VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
A oiara
Em noite de lua cheia
A oiara vai banhar
Entrando mar adentro
Vai seus cabelos lavar
Vive na ilharga dos rios
Vai ao mar só passear
Distante de sua lenda
Quer somente descansar
Anda pela maresia
Embaixo de sol e luar
Descansando ela inventa
Jeito novo de encantar
“O rio pejou de lamento
Foi desespero no mar
A lua se foi na noite
Deixou somente o luar”
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MQ
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SERTÃO D'ÁGUA - ESTADO DO PARÁ
Estado do Pará
Alegava João Merino que não podiam ficar de fora dos acontecimentos. Se fosse necessário uma ordem, que ela fosse conseguida o mais rápido possível. Ora se visse, o mais novo e moderno jornal ficar de fora de fatos tão contundentes. Envolvia até o comandante do navio americano Millaryd que já deu até entrevista na Província.
- Mas temos que respeitar a festa de Nazaré. Imagine um assunto desses na véspera do Círio. Nem a di-retoria da festa, nem dom Francisco iriam entender dar uma cobertura maior a esse assunto, argumentava Tibúrcio Maia, jornalista famoso, um dos fundadores do jornal e membro da diretoria da festa do ano anterior, portanto co-nhecedor do zelo do bispo quanto à quadra nazarena.
João Merino achava que aquelas notícias eram importantes demais para não estar na primeira página do jornal. Na cidade, só se falava no assunto, a Intendência estava se mobilizando; ouvira o cunhado falar que iriam convocar a Brigada e a Capitania, a mando do governador que chamou o intendente às pressas no palácio. Até que já estavam preparando duas alvarengas com uma tripulação fortemente armada para vigiar a baía.
Somente os dois falavam na reunião, ninguém chegava a nenhum acordo, mas a notícia da morte do car-regador no Porto do Sal fez vigorar o pensamento de João Merino que, como se ignorasse o do colega importante, tomou a decisão.
Foi um corre-corre na redação e o jornal saiu com o assunto na primeira página.
MORTO NO PORTO DO SAL
“Foi encontrado morto sobre sua canoa o car-regador, morador da ilha do Combu, Sr. Rai-mundo de Souza. Seu corpo deu entrada no necrotério público onde está sendo examinado. Não se sabe qual a causa da morte. Populares garantem que o carregador foi atacado por um ser estranho que atormenta, desde ontem, quem navega pela Baía de Guajará.
Conforme relato de pelo menos quatro pessoas no Porto do Sal que avistaram a tal visagem, trata-se de um ente fantasmagórico, remando uma canoa e soltando bolas de fogo pela boca.
No Ver-o-Peso, onde já aconteceu um tumulto esta manhã, muitos passageiros, barqueiros e freteiros afirmam ter visto o mesmo, mas per-guntados, cada um tem uma descrição diferen-te para o estranho navegador. Há quem diga ser mais de um, atribuindo a esses seres pode-res de navegar com muita rapidez.
As autoridades já foram avisadas e prometem providências imediatas. O desembargador- chefe de polícia não pôde falar ao Estado do Pará sobre o assunto, mas seus auxiliares afir-maram que o caso estava sendo tratado com prioridade.
Na intendência, obtivemos informações sobre uma reunião que acontecerá ainda hoje e para a qual foram convocadas diversas autoridades, a pedido do bispo, para descobrir a origem desses boatos que, sem dúvida nenhuma, pode atrapalhar os festejos da quadra nazarena.
Mais detalhes sobre esta reunião e todas as providências que serão tomadas pelo governo, leia em nossa edição de amanhã.”
continua...
MQ
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terça-feira, 29 de setembro de 2009
ANTONIO JURACI SIQUEIRA - Três Décimas de Adeus
Em memória de Nazareno Silva
(1963 ° 2009)
Chora matraca, pandeiro,
soluça forte, tambor,
para espantar essa dor
que fincou pé no terreiro.
Corre no campo, vaqueiro,
e traz o Boi Pavulagem
para prestar homenagem
ao valente Nazareno
que encerra o labor terreno
e embarca em nova viagem.
Chora meu Boi Malhadinho,
Bole-bole, Xequerê
e Pedreirinha, porque
Deus chamou nosso padrinho.
Foi preparar um cantinho
para o boi dançar no Céu.
Levou tambor e chapéu
todo enfeitado de fita
pra festa ficar bonita
com alegria a granel!
Vai, Tio Nazo! Vai cantando
para os campos do infinito
que o teu exemplo bonito
o vento vai espalhando
nas praças, multiplicando
teu recado de esperança
no sorriso da criança
que tomaste pela mão
indicando a direção
com amor e confiança.
Antonio Juraci Siqueira
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SERTÃO D'ÁGUA - ILHA DE COTIJUBA
continuação...
Ilha de Cotijuba
Nazaré, encostada no barranco, na cabeça da praia, deixava tudo que Antônio queria, fazia tudo que ele pedia, menos atrás, dizia, porque dói... dói... dói... Dali ela controlava a chegada de Idelmar. Dos cinco filhos que tinha, bem uns três o marido nem desconfiava que eram de Antônio, seu compadre.
No devaneio da hora, depois de gozos e gemidos, Nazaré abriu os olhos e viu como se já avançando pela areia aquela visão assustadora, tremendo o corpo, contorcendo e espumando pela boca, os olhos estatelados, esforçando um grito.
Nazaré quedou com o amante, ainda dentro de si, fez um ruído estranho como fosse um grito e desmaiou. Antônio se virou, pensando ser o compadre, mas quando viu a visagem, saiu correndo, puxando as calças, nem se lembrando de Nazaré. Aturdido, chegou no embarcadouro falando da visão.
Logo a praia estava cheia de gente, e o que encontraram, foi só a mulher desmaiada e seminua. – Foi boto que tumô ela, axi! - dizia um. – Tu viu, Antônio? perguntava outro.
Antônio respondia ter visto uma visagem que não tinha nada com boto: ela era enorme, vinha dentro duma montaria que bubuiava até na areia da praia. Tinha um manto cobrindo e uma cruz atravessada no peito, urrava e espumava a boca assim... assim... assim...
A notícia se espalhou pela ilha toda:
- Nessa hora do dia, quem tumou ela foi argum bicho do mato, vivinho... vivinho... vivinho..., dizia o ajudante, calafetando o barco do seu Pereira.
- Tu não vê mesmo, Batela, parece o Idelmar. A mana s’tava era reinando com o cumpadre dela, opinou o calafate.
Novo ajuntamento de gente no trapiche, com a chegada do gaiola Esperança. A notícia da visagem assombrando na baía, salvou a reputação de Nazaré antes do marido chegar.
No jirau, espalhando o pescado tirado da camboa, Nazaré rezava no medo do marido descobrir tudo, quando vieram contar, para seu alivio, as notícias da visagem que aparecia até em Belém. Nazaré passou o resto do dia salgando peixe, calada em seus querer.
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continua...
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MQ
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009
VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
Tudo ficou maior
Comi farinha baguda
Vi a dança do tangará
Andei por surjões de terra
Já remei no Tarauá
Tomei a beberagem
Vi matar muito veneno
Já comi piracuí
Bebi água do sereno
Com ervas cuidei curuba
Já dormi olhando ao léu
Andei com gado bravo
Ouvi estrondar o céu
Existi em muitas coisas
Que consiste meu redor
Mas foi só com seu amor
Que tudo ficou maior
“Coaxou a cutaca
Ao longe... longe... longe
Um latido ouvi chegar
De longe... longe
Esbarrou na carobeira
E fez cama pra deitar
Não latiu a noite inteira
Me esperando acordar”
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MQ
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MARIMARI TISCATE
Escreva um poema para mim, meu bem
Que sou mais de ler do que vivê-los
Infelizmente sou daquelas que sonham tão alto
E têm pequenas asas pra voar
Escreva um poema para mim, meu bem
E me resgate dessa solidão plantada, com raizes
Infelizmente sou daquelas que arriscam tanto menos
Quanto maior o chamado do céu pra voar
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Marimari Tiscate - http://marimaritiscate.blogspot.com/
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domingo, 27 de setembro de 2009
WANDA MONTEIRO - O Beijo da Chuva
INQUIETUDE
Estou comprando
Oração
Reza
Feitiço
Que seja!
Que possa me curar desse despropósito
Dessa inquietude sem nexo
Reação anômala de não me saber
De mentir-me
Mitos
DeMitidos
Que me faça atravessar
Esse quotidiano insólito
Esse muro de perplexidade consciente
E ciente do Nada.
Um Nada
Que dói
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SERTÃO D'ÁGUA - A Província do Pará
continuação...
A Província do Pará
- Primeira página, seu Anísio, ordens diretas do Dr. Artur, mande parar tudo. Ele quer chapa, entrevistas... põe quantos precisar nisso. Mande atrás do Ranulfo, quer uma chamada dele na primeira página.
- E o Círio? O senhor sabe que vai dar problema com a direção da festa. Seu Armando não vai entender.
- Problema do Dr. Artur. Acha logo o Ranulfo, manda avisar Tilipa no Ver-o-Peso; ele que fique atento por lá. Põe alguém no Porto do Sal.
O dia começava agitado, Anísio discordava das ordens recebidas. Ouviu, ao sair de casa, os boatos que achava até um assunto interessante, mas, primeira página? Na véspera do Círio, ainda chamar Ranulfo... pra ele era muita falta de consideração com a festa, com ele. Lua de mel, imagine juntar com aquela zinha da pensão de quartos e pegar licença pra lua de mel como se fosse casamento... esse Dr. Artur só dava valor a quem não prestava, ia pensando.
A manchete agradou a todos na redação, menos a Anísio que lia a notícia sem entusiasmo.
VISAGEM APARECE
NA BAÍA DE GUAJARÁ
“Continua o grande mistério da visagem que apareceu, na madrugada de ontem, para inúmeros barqueiros que chegaram a Belém para o Círio de Nazaré, atravessando a baía, vindos de todos os cantos do Estado.
Esse mistério surpreende a todos. A cidade viveu momentos de polvorosa. No Ver-o-Peso, Porto do Sal, centenas de pessoas confirmam ter visto o ser estranho soltando bolas de fogo pela boca que ficam boiando em volta da canoa, formando uma colcha de luz.
Alguns passageiros, vindos de Mosqueiro e Canuari, no Taça de Ouro, ouviram sons roucos, e barulho de mato quando passaram pelo Tapanã e a viram entrando no furo, urrando como onça, desgalhando a margem.
Em entrevista a este repórter, o comandante do vapor Ararirá de Maués, sr. Antônio Passos, confirma ter visto a montaria rodeada de pequenas luzes com um vulto muito grande, navegando rápido, ora a bombordo, ora a estibordo. Os passageiros, que também o viram, puseram-se a rezar até o desaparecimento completo do vulto.
Entrevistamos também um ribeirinho, mais conhecido no porto do Ver-o-Peso como Zé Calendário, que nos informou ter encontrado a visagem no clarear do dia, próximo ao Furo do Peuá. Viu-a num relance e esperou ser atacado, mas abriu vela e rezou para Nossa Senhora de Nazaré, que o protegeu.
O assunto domina a conversa nas ruas, estações, portos e no comércio da cidade onde o movimento é grande, nesse início da quadra nazarena.
O movimento de embarcações que chegam nos portos de Belém é o maior já registrado em toda a história do Círio de Nazaré. Aportaram ontem pela manhã o Antonina de Cajary, o Rio Araguaia do Tocantins, o Claudonina do Guamá e o Rio Xingu do Xingu, fora dezenas de embarcações de menor porte. São esperados, ainda para esta tarde, o Barão de Mauá, o Fé em Deus de Cametá e o navio americano Millaryd que traz a bordo o poeta Camargo Neto e sua família, de regresso à terra natal, a tempo de participar dos festejos do Círio de Nazaré”.
Anísio nem terminou de ler, Tilipa entrou na sala esbaforido: - apareceu um morto no Porto do Sal, foi a visagem, todo mundo está indo pra lá. O caso é sério seu Anísio.
continua...
MQ
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sábado, 26 de setembro de 2009
GESTOS DE CADA LUGAR
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Somado não dá errado
Erê! Beco da Bosta
Lugar encantado
Onde novesfora é tudo
Somado não dá errado
Telelém... Telelém...
Se ouvir um cavaquinho
Seguindo um violão
Ou o canto de um menino
No dentro duma canção
Se escutar um clarinete
Com trompete duelando
Um pandeiro em surdina
Com um sax escutando
Ou a caixa conversando
Baixinho com a rabeca
Um sax dando palpites
Caxixi cozendo a beca
Pode ficar tranqüilo
E aproveite o encantado
Desta festa de alegria
Com amor por todo lado
Erê! Beco da Bosta
Benvindo louvado seja
Telelém... Telelém...
Bendito louvado seja
Telelém... Telelém... Telelém...
MQ
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NICE PINHEIRO
CAMILO DELDUQUE
Entre o adeus e a separação
Agora o meu pai foi dormir
Na velha rede de tucum
Que a índia ticuna teceu
Ele não quer barulho algum
Nem o ruído de uma poesia
Remando a solidão da separação
Entre o poema e o adeus
Faltaram algumas palavras
Detalhes de sonhos e fantasias
De tanta felicidade insolvente
O meu pai
Está descansando entre as árvores
Rodeado de um silêncio moqueado
Inventando saudades com certeza
Entre o ventre e a prenhez da partida
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sexta-feira, 25 de setembro de 2009
CRISTINA FARAON
O amor é uma criança em todos os sentidos.
O amor é todo intuição, curiosidade e aprendizado. O amor erra demais, nossa! Mas sorri logo depois e aprende com uma facilidade incrível. Ele não nasceu pra morrer mas para crescer porque assim são as crianças.
Quantos anos tem o seu amor? 1 aninho? 12? 35? 40? Não importa, ele é uma criança e ainda não sabe nada de nada. Está só começando. É tolo como ele só, pode ter certeza disso. Quer coisas impossíveis, chora por besteira, ri de coisas que ninguém ri e vê o mesmo filme mil vezes sem cansar.
A coisa mais triste do mundo é quando ele está doente e vai perdendo peso, perdendo peso... Que dor! Parte o coração. Um amor que fenesce e morre é como qualquer criança que adoece, agoniza fenesce e morre. Igualzinho igualzinho.
Todo amor por mais que dure, morre sempre cheio de promessas e esperanças. Nenhum amor dura o suficiente tanto quanto nenhuma criança vive o suficiente.
Uma criança transmudará ao longo de sua existência, criará novas manias, fará novas perguntas, afeiçoar-se-á a novos brinquedos, criará travessuras impensáveis, ficará doente, irremediavelmente doente e depois renascerá das cinzas porque as crianças são assim mesmo. O amor engolirá chaves, deixará todo mundo louco mas depois sorrirá candidamente e voltará a correr no jardim. Não importa o que aconteça, o amor se recuperará porque está escrito que crianças estão destinadas à vida.
Ah, não nasceram para morrer! Mas é certo que morrem...
Estranhamente morrem, a despeito do que está determinado. A despeito da lisura irepreensível de suas peles, da maciez de seus cabelos, da inabalável disposição que têm para pular, correr e perdoar. A despeito disso tudo, muito estranhamente de vez em quando uma luz se apaga nesse mundo de meu Deus.
Por algum mistério muito misterioso alguns amores nascem doentinhos, inviáveis, já quebrantados. São velados desde o nascimento por amantes em suspense e familiares atentos. Coração na mão, suspense, terço na mão, noites sobressaltadas, lágrimas furtivas.
Centenas e centenas de crianças dormem febris entre sopros agourentos da noite, entre avisos de folhas secas que insistem em entrar pela janela a perturbar seus leitos de pedra.
Algumas até duram. Não podem correr, não podem pular, não podem ser expostas a nenhum tipo de provação. Qualquer travessura seria o fim, qualquer vento encanado, água gelada, piso escorregadio, susto ou fruta passada. A gente olha e sabe... e entre mimos e dores tentamos de tudo.
Afirmo com grande dor que a coisa mais triste do mundo é enterrar uma criança. Uma criança morta não é só uma pessoa morta. Uma criança morta são sonhos decepados, promessas esfaqueadas. E o futuro que virou miragem.
Um velho amor morto é ... Não há "velho amor morto". Um amor morto é uma criança morta com mil coisas por viver e fazer, novas historias ainda pra contar, desenhos ainda não desenhados pra mostrar, muros para pular, canções para aprender.
Não existe amor velho assim como não existe criança velha. Tudo o que existe é criança doentinha, sem defesas, com pulmões fracos e pais atônitos que não sabiam direito o que fazer e então perderam a luta.
...Então ela se foi. E não importa o trabalho que essa criança deu: sua partida vai doer para sempre e eles só conseguirão lembrar dos bons momentos, do seu sorriso e daquele corpo quentinho quando ainda havia vida.
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Cristina Faraon - http://cadeaminhavida.blogspot.com/
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SERTÃO D'ÁGUA - FOLHA DO NORTE
continuação...
Folha do Norte
Na Folha do Norte, o repórter tentava convencer o editor que a matéria era boa. Dizia ter visto gente da Província entrevistando o ribeirinho que chegou mais perto da visagem. Contava também já tê-lo entrevistado, compensava até um fotógrafo bater uma chapa, dava primeira página, era certo que dava.
Seu Juvenal pigarreava sem tirar os olhos dos papéis que lia e respondia sem nem olhar Cheiro Verde:
- Tu achas que podemos, nas vésperas do Círio, perder tempo com uma notícia dessas? Se oriente, corre atrás de alguma coisa de proveito.
Cheiro Verde andava pela redação mostrando pra todos a matéria já pronta, com o título “ VISAGEM ATORMENTA OS FIÉIS”. No artigo descrevia três aparições, entrevistava Manel do Coroa de Prata, o Papo de Anjo do vapor Guarani e o Nereu da freteira Confiança. Para Cheiro Verde era a melhor reportagem que tinha feito na vida, melhor chamada que as do famoso Ranulfo da Província, com ela esperava reconhecimento, promoção.
Era do jornal todo o mais dedicado nos afazeres, com seu terno surrado de brim, o chapéu de palhinha sempre levado nas mãos; não sabia o porquê do tratamento que sempre lhe dava seu Juvenal. Nos anos, nunca o tratava bem, era sempre com aquele desdém como se também ele não tivesse origem humilde. Não se importava com o apelido colocado pelos colegas, ficava - isso sim- orgulhoso. Tinha sido sua melhor matéria para o jornal, a fuga de Cheiro Verde, decisiva para a polícia encontrar o bandido; foi só ler o que escreveu sobre a família dele para prendê-lo no Marco da Légua, onde estava escondido. Todos o elogiaram no jornal, menos seu Juvenal que, daquele dia em diante, só lhe dava coisas sem importância para fazer.
Continua...
MQ
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
SARAU DA CONFRARIA TUCUJU NO FORMIGUEIRO - MACAPÁ
Sarau da Confraria revive Isnard Lima e tem Adriana Raquel e Os Cometas
Última sexta-feira do mês é data marcada para o Sarau do Largo dos Inocentes, projeto da Confraria Tucuju que leva mostra da diversidade cultural do Amapá para o centro histórico da capital, Macapá. Nesta sexta (25), o sarau homenageará o poeta amazonense Isnard Lima, que viveu no Amapá até sua morte em 2002. Como atrações musicais haverá shows de Adriana Raquel na abertura e da banda Os Cometas no encerramento.
O Sarau se consolida como oportunidade de exposição e comercialização dos produtos da cultura como artes plásticas,fotografia, patrimônio imaterial, poesia, literatura, artesanato, CD, DVD e comidas típicas. Os artistas podem participar livremente, bastando apenas entrar em contato com a organização do evento na sede da Confraria, localizada na av. Mendonça Furtado, 100, Largo dos Inocentes, atrás da Matriz de São José.
Isnard Lima
Isnard Brandão Lima Filho chegou ao Amapá em 1949, vindo de Manaus. Era filho do prestidigitador Isnard e da professora de música Walkíria Lima. Poeta, advogado, boêmio e místico, nasceu no dia 1º de novembro de 1941 em Manaus. Publicou Rosas para a Madrugada (poemas, 1968) e Malabar Azul (crônicas, 1995) e publicou centenas de crônicas e artigos na imprensa.
Faleceu no dia 11 de julho de 2002, deixando pronta uma coletânea poética intitulada Seiva da Energia Radiante, onde reuniu toda a sua produção, iniciada em 1966 e que está em processo de publicação pela APES e Secult. Um livro de memórias ficou inacabado. Sua produção literária é considerada de grande qualidade tanto pelo público como pelos especialistas”. (Texto de Paulo Tarso Barros).
Os Cometas
O grupo musical Os Cometas nasceu sob as bênçãos de Mestre Oscar Santos, entre alunos da antiga Escola Industrial. Sua primeira formação data de 11 de abril de 1962 com os seguintes integrantes: Roberval (bateria), Walfredo (bateria e vocal), Pedrinho (guitarra base), Luis (contrabaixo), Assunção (trompete), Espíndola (sax), Sebastião Mont’Alverne (guitarra solo), Ricardo Charone (piano), Joacy (cantor), Nando (cantor), Célia (cantora), Muscula (percussionista) e Aimoré (piano). Passaram pela banda ao longo do tempo Nonato Leal (guitarra), Gato (guitarra) e Dom Pedro (guitarra base).
Nas décadas de 1960 e 1970 os grupos musicais eram denominados de conjuntos e Os Cometas inovaram a cena dos bailes e shows introduzindo instrumentos de sopro e eletrônicos. Tocavam nos espaços e clubes mais tradicionais como Piscina Territorial, Esporte Clube Macapá, Assembléia Amapaense, Amapá Clube, Sede do Trem, Santana Clube, Independente Esporte Clube e Manganês Esporte Clube.
Sucesso, casas lotadas e muitos fãs durante mais de uma década. Então, veio a longa interrupção a partir de 11 de abril de 1978. Quase três décadas depois Os Cometas ressurgem em 2004, matando as saudades da geração que passou a juventude dançando e amando ao som do conjunto. A nova formação traz Walfredo, Zé Paulo, Pinto, Edilson, Espíndola, Eliseu, Nando e Humberto Moreira. No repertório a música popular dançante dos anos de sucesso da banda.
Adriana Raquel
Artista de muitas facetas, Adriana Raquel é paraense, estudou artes plásticas, francês e balé. Durante cinco anos estudou violão popular na Escola de Música Walkíria Lima. Sua primeira experiência como vocalista foi com a banda Brilho de Fogo, por um ano, quando recebeu prêmio de Cantora Revelação da Ordem dos Músicos do Brasil, secção Amapá.
A partir dessa experiência decidiu-se por carreira solo e gravou seu primeiro CD, Minha Flor, com canções próprias e de outros compositores do Amapá como Zé Miguel, Cléverson Baía e Alan Gomes.
No sarau da Confraria Adriana fará o show Amapalizando, onde mistura vários ritmos, valorizando o marabaixo. Traz também os ritmos populares do Brasil como o samba e o pop. Com muita percussão, o show acústico tem músicas inéditas da cantora e compositora e de grandes nomes da música da Amazônia, como Eliaquim Rufino, Osmar Júnior e Zé Miguel.
Márcia Corrêa – Jornalista
Confraria Tucuju
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JEITO DE SENTIDOR - Modos
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Além do jeito de imensidão e o olhar
Quero todos os gestos
E o gosto dos teus pecados
O modo das tuas mãos
E o que há no mistério
Espalmando a verdade
Quero também o que arde
E o que escondes na razão
Quero teu silêncio dentro da minha boca
E teus lábios no meu corpo
Tua vontade e os desejos incontidos
Que o teu riso revela
Quero o sossego da tua harmonia
E também a paixão das tuas lutas
O remorso de qualquer ação
E tua sede quando restar angústia
Quero todos os momentos
Em que te sinto longe de mim
Neles contarei histórias
Para o teu amor me enxergar
Quero o que difere a tua vida da minha
Estar em ti como estás em mim
Inventar estrelas e ter a lua nas mãos
Para abrir sua luz onde passares
Porque a beleza dos teus pés
Devem só pisar luares
Quero-te também desolada
E se de amargura for teu caminho
Tenho afagos para te dar
Quero também tua crença e tua paz
No meu íntimo incrédulo e vazio
E que dê a carícia das palavras
Ao que cega minha voz
O que sabes do amor
Ensina-me e permite
Que eu chegue perto da tua dor
Com uma nesga de razão
E deposite, te peço,
A liturgia da tua sensualidade
Nos meus braços implorantes
E o que está prenhe nos teus sonhos
Deixa estar nos meus também
Nenhum castigo se imponha
Sem me teres pelas mãos
E se tua memória falhar
Ao contar-me segredos
Inconfidências ou se esqueceres
Algumas verdades
Espera apenas o tempo da tristeza
Que magoado te amarei mais
Se fingir não estar ao teu lado
Acredita no teu amor
Impregnado como seiva
Freqüentando meu destino
Quero teus lamentos e um pouco da tua vida
Para neles plantar minhas vertigens
Quero também tua desatenção
A tristeza de algum momento
E tua pele dolorida
Para ungir com bálsamo
Misturando na compreensão
Nossos cheiros
Quero a carne dolorida da tua vaidade
Para enternecer minhas mãos
E se te sentires impotente
Em me mostrar o teu amor
Não temas o que és ao querer-me
Não acredito na impostura
E nem temo o que embriaga
Dá ao poeta compaixão
E ao amor o que és
Porque dester-te parece jeito infindo
De estar morrendo sem piedade
Desmerecendo o amor
MQ
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JAC. RIZZO
Um véu de água
me escorre na lembrança
Sou um mural
de imagens e vozes
mergulhadas na umidade
do tempo
refletidas na transparência
das pedras
Transmudo tudo:
Sinto a doçura no mar
e amargo gosto no mel
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Jac. Rizzo - VEREDAS - http://jacrizzo.blogspot.com/
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quarta-feira, 23 de setembro de 2009
MÁRCIA CORRÊA - Diálogo com a noite
Procurava o sono pelas cercanias do quarto de dormir. Ele, que outrora se mostrava sempre obediente ao esperá-la sobre o algodão macio do travesseiro, agora se rebelava e passava horas a se esconder nos desvãos da estante, por entre os livros, por trás do cabide de bolsas como um inquilino sorrateiro.
Sem ele e sua calma reparadora, ela enfrentaria um dia difícil ao amanhecer. Olhos pesados de sonolência e olheiras, cinzas de uma fogueira esmorecida, tingindo de cansaço seu semblante. O corpo se recusaria a acordar e a mente embaralhada buscaria esforços na razão para despertar.
Nessas horas preferia não mencionar, sequer pensar, insônia. Parecia-lhe que ao dar nome às peraltices do sono estaria dando a ele um diagnóstico decisivo. Como um rótulo que define alguém para sempre, sem que esse alguém tenha a chance de ser visto em suas múltiplas facetas. Como o louco, que mesmo são, sempre será louco.
E o sono soprava desafios ao ouvido dela, passando de soslaio pelo canto da escrivaninha. Queria vê-la desajeitada por dentro do pijama azul de bolinhas minúsculas, com os cabelos presos num coque desgrenhado, caindo por cima da jaqueta de lã que a fazia parecer sempre resfriada.
Não gostava de ver TV, o aparelho parecia-lhe um estranho pacote de muita gente a tagarelar invasivas palavras na sua intimidade. Preferia o exaustivo vício de pensar. Aqui e ali dava voltas na cozinha, um bico de pão, uma mordida no bolo de chocolate e um gole de guaraná diet direto na boca da garrafa. Quanta incongruência!
Deixava de lado os óculos, de propósito. Os muitos graus de deficiência na visão a impediam de ver os detalhes sórdidos da camada espessa de cobertura do bolo, então, tudo parecia menos grave. Era assim quando resolvia cantar em público. Sem ver as expressões das pessoas desatava a desafinar sem culpa.
Lembrando de coisas bobas ia armando ciladas para o sono sem que ele percebesse. Fingia não mais esperar por ele, até que enciumado o danado ia se chegando. Formava um bocejo longo, outro mais curto e entrecortado, um lacrimejar pelos cantos dos olhos até deixar tudo confuso nos pensamentos desatinados perdidos no corpo de pano...
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Márcia Corrêa - http://novopapeldeseda.blogspot.com/
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SERTÃO D'ÁGUA - VER-O-PESO
continuação...
Ver-o-Peso
No Ver-o-Peso, contava Zé Calendário pra Norato:
- Se tu visse, meu mano...! foi na vazante, tumei susto. A montaria parou de proa pedindo peagem, ali... ali... ali... bem de testa. Uma luz forte alumiava a visagem vinda de dentro d’água. Dei um grito: Senhora de Nazaré, valei-me! Soltei vela, virei leme e olhei pro contrário, rezando até atracar.
- Mano, tu tá cum pavulagem.
Do lado, passando, Filó ouviu pelo meio a conversa e parou pra perguntar o que era. Quando contaram, ela ficou muito séria, e disse ter ouvido o mesmo caso na boca de Manel da Coroa que parava no Porto do Sal.
- Na costa um manto vermelho, vinha de bubuia, rudeado de luz, num foi, mana? Falando pra colega que ia junto.
Norato puxou o beiço da rede onde Chicão cochilava, perguntando:
- Tu também viu? Conta o que tu viu.
Chicão relatou que um vulto de capa numa montaria batendo casco, eristando o murumuru, na dobra do Urubueua; pensou que era um caboclo panhando cacho, só olhou de relance.
Tia Merença ensinava ao garapeiro o banho de casca de taperebá maduro, casca de cajuaçu e jupindá, mas a atenção mesmo estava na confusão que via formar. Os carregadores rareando, e aquele um tanto de gente em volta do Zé Calendário:
- Tu deixa descansar na água fresca depois banha, instruía olhando para o lado contrario ao do freguês, curiosa, enxergando a filha no meio daquela multidão.
- Tume de conta mano, pediu ao vizinho. E foi saber o que era que estava acontecendo. Num segundo já gritava espalhando em roda as pessoas: - tumém vi esse um... saindo dali... e apontou o necrotério – rubou a canoa do Calixto da Donana, axi!
- Tá variando, mea tia? - gritou alguém.
O tumulto se formou. A partir daquele momento, todos no Ver-o-Peso já tinham visto a visagem, para cada um o ser era de um jeito. Havia quem dissesse que estava vestido com um manto de luz, outros que se olhasse firme pra ela ficava cego; uns falavam que era envolta numa colcha de mururés que soltavam luz. Falavam de ela sair pelas ruas, à noite, igual ao boto seduzindo as mulheres.
- Tranca a tua, Almino - gritou alguém.
Havia os que a tinham ouvido gemer igual ao urutaí; os que viram a canoa ser puxada por dois botos tocados na muxinga. Uns falavam mais de uma, eram como uma tribo.
- Mea tia nhá Merança, tumei... tumei... tumei... e nada de cortá, dizia o freguês.
- Manezim da Tatuoca tumém viu, mea tia, falava Dimo, vizinho de barraca.
- Tu dêxa de lesera, aquele mano! e respondendo ao freguês: - vai cortá sim, tuma mais tudo dia que corta - e voltando a discutir com o vizinho: - só vê o que já foi visto. É leso igual tu.
- Mea tia Merança, agora deu pra querê ofendê até os culega, tu parece urubu cuíca... axi!
Merença era conhecida como puçangueira por todos, difícil alguém que nunca tivesse encostado na barraca dela no Ver-o-Peso atrás de um lenitivo, uma meizinha, um chá que fosse. Ao mesmo tempo, era a mais incrédula. Essa história de visagem, achava, era alguma tapeação. Fosse um ente, ela saberia, era acostumada a lidar com os profundos, curar com elementos, saberes, não só com plantas, raízes e ervas.
Filó era única filha e continuava nos modos da mãe já derreada pelos anos. Tamanha mulher nova, bonita demais! Mundiava qualquer um que gostasse, era só firmar o querer. Onde passasse, ninguém lhe tirava o olho. Juntava com a fama da mãe a boniteza, e mantinha o tenente Alvino sempre querendo situação. Mas o querer dela era outro e queria do jeito que ele quisesse: era Ranulfo, o jornalista da Província. Queria de longe, nunca se aproximara dele; só tinha visto umas vezes entrando no prédio do jornal, mas o dia que pudesse chegar perto, ele ia querê-la, tinha certeza.
Filó aparentava também não acreditar. Aquela confusão no Ver-o-Peso, logo de manhã lhe dava um pouco de medo, arrepiava. Mas gostava do movimento, era o que ela mais gostava. Quem sabe o jornalista não aparecia lá?
continua...
MQ
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terça-feira, 22 de setembro de 2009
RIO DO BRAÇO
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Meia Légua
(Marcos Quinan / Renato Gusmão)
Era um sobe serra, turricando num verão
Sol ardente, meia légua; distante estirão
Nhô de Nana numa mula
Levava os terém que da vida aculhia
Alegria, muita fé, inté desque era menino
Se largava pra vê, louvar o Santo Divino
Nhô queria era chegar, mode festejar
Mas eis que a mula, num sem esperá
De um tranco impacou, emperrada ali ficou
Nem canga nem nada lhe arrancava desse chão
Povo que passava ferecia opinião, assuntando num favor
Se a mula se picava, ara não duvida não
Que a lida é demais, a vida dá conta
A fé não se desfaz por nada nessas bandas
Nhô queria era chegar, mode festejar
Mas eis que a mula, num sem esperar
Enquanto Nhô suntava num modo de chegar
Arribou serra afora sem rédea, sem espora
Deixando Nhô de Nana excomungando o animal
Deixando Nhô de Nana excomungando o animal
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Arranjo de Base – Eudes Fraga
Arranjo Sopros – Roberto Stepheson
Voz – Eli Camargo
Violão de Aço – Eudes Fraga
Sanfona – Chiquinho Chagas
Flauta / Sax Soprano – Roberto Stepheson
Percussão – Marcos Amma
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VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS
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Camutins
Onde as águas são limites
Camutins lugar que é meu
De lá vim muito pequeno
Algum santo me valeu
Lá deixei minha família
Vivendo no bem da vida
Entre caboclos da beira
Com a sorte merecida
De lá vim com vaqueiro
Na garupa garantida
Com ele fui aprendiz
Hoje herdei sua lida
Entendo de vaqueirice
Mas penso um dia voltar
Levando meus desenganos
Pra esconder no meu lugar
“Baixa rasa, baixa funda
Monta as águas, examina
Campos altos e mondongo
Qualquer teso me ensina”
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MQ
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segunda-feira, 21 de setembro de 2009
SERTÃO D'ÁGUA - PORTO DO SAL
continuação...
Porto do Sal
O Porto do Sal estava diferente naquela manhã, um ajuntamento de gente em volta de Manel da Coroa que contava o que viu, cruzando rente à quilha do Coroa de Prata, na madrugada quando passava pelo furo do Cirino. Em volta todos, em silêncio, prestavam atenção na descrição que ele fazia: muitos pontos alumiados dentro d’água, guarnecendo a montaria que conduzia a visagem e rodava no meio da luz, rodava rápido com a vela que saía do próprio corpo, enfunada de mil ventos. Um chapéu grande tampava o rosto esverdeado e um manto a vestia toda. A luz era tanta que turvava a vista. Ele nunca vira nada igual na vida toda, navegando na baía, nem nas duas viagens que fez pra Manaus.
Em volta juntavam carregadores, encarregados, e os passageiros do gaiola São Gabriel que acabara de atracar. Muitos passageiros afirmavam ter visto de longe a canoa com alguém remando com o manto de luz sobre as águas, um ente muito alto parecendo gente do estrangeiro. Um menino agarrado nas pernas da mãe acrescentou:
- Cuspia fogo toda hora, cuspia... cuspia... cuspia...
Outro passageiro, aproveitando o que já ouvira:
- Também vi o fogo, cada cuspida acendia uma luz na água.
Todas as embarcações que aportaram ali, naquela manhã, davam notícias daquela visagem enorme bordejando, ora de um lado, ora de outro, muito veloz, espalhando bolas de fogo que não se apagavam na água. Uns falavam num grito rouco que ela fazia ao expelir o fogo pela boca.
Logo chegaram notícias de que a mesma visão foi vista por muita gente que chegou ao Ver-o-Peso. Ela quase pegou Zé Calendário. Por lá a confusão era até maior. Falavam até que não era uma só, e sim muitas, uma tribo inteira e que iriam atacar Belém.
No Labrador o movimento pegou seu Duca desprevenido, nunca tinha vendido tanto vinho quinado e aguardente. Os carregadores se misturavam com os passageiros desembarcados das gaiolas, bebendo e ouvindo o relato de quem tinha visto a visagem. Num canto, o pescador contava que ela veio pra cima da vigilenga, jogando bolas de fogo e num pouco tempo sumiu no breu largando fumaça. Noutro canto, o passageiro falava dela ziguezagueando ora de proa, ora de popa, fazendo ronco de esturro de onça.
Raimundico descarregava, no Ararirá de Maués, peles de borracha e castanha quando viu o Capitão mandar chamar o sargento Ozias. Os dois ficaram muito tempo conversando na cabine. Alguma coisa estava de verdade acontecendo, deduziu o carregador assombrado com tudo que ouviu contar e vendo o brigadiano sair com o comandante. Os dois gesticulando muito, examinando o casco do Ararirá, chamando o imediato do outro vapor e seguindo os três para a proa. O que queria era logo terminar a tarefa e sair dali, seu medo do assombrado era sabido por todos. Morava no Combu, não queria saber de atravessar fora de hora, ainda mais na minguante que punha o escuro na noite.
Quando lhe perguntaram se tinha ouvido o que Manel da Coroa contou, fizeram-no com muito respeito. Raimundico era um carregador muito conhecido no Porto do Sal, pela força que tinha retida nos braços, acostumados a descarregar toneladas num só dia, famoso também por não tolerar nenhum desaforo, destemido em brigas e confusões. Mas, quando o assunto era o sobrenatural, ele nem ficava perto, tinha verdadeiro pavor.
Era o que sentia naquela hora, desamarrando a montaria, depois do gole de cachaça com quinado tomado às pressas no Labrador, um verdadeiro pavor. De tão afobado, quando viu o corpo de bubuia na entrada do furo, escorregou o pé de apoio, ao mesmo tempo que sentiu a dor no peito e a falta de ar, chamou por todos os santos de sua devoção, perdendo as forças, caindo sem conseguir ao menos gritar.
Foi encontrado com os olhos bem abertos, morto de susto, dentro da canoa enganchada numa raiz na saída do furo.
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continua...
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MQ
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GESTOS DE CADA LUGAR
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Louvação
Louvo agora Lola Brígida
E a Dedérson também
Que vieram bem de longe
Pra cantar o Telelém...
Um louvo dou a Da Dúvida
Pra Montanha eu dou também
Que vieram bem de longe
Pra cantar o Telelém...
Erê! Mundo pequeno
A todos louvo também
O meu jeito de louvar
É cantar o Telelém...
Telelém... Telelém... Telelém...
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MQ
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domingo, 20 de setembro de 2009
PEC150
http://abaribo.blogspot.com/2009/09/campanha-pec150-endereco-eletronico-dos.html
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A mesa
E não gostavas de festa. . .
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. Teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes).
E, pois, tudo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim. . . Puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe. . . Calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de todo remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, hem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinqüentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada. . .
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse. . . Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? Farofa
há de ser acompanhada
de uma boa cachacinha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
Ind'outro dia. . . Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!
E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. A teu lado,
vê: recobrou-se-lhe o viço.
Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio,
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.
Este outro aqui é doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético,
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.
Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco,
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quanto a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.
Esta calou-se. Não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças,
Se tanto assim a querias,
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é própria de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)
Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te — não se morreu
ma só vez, nem de vez.
Restam sempre muitas vidas
para serem consumidas
na razão dos desencontros
de nosso sangue nos corpos
por onde vai dividido.
Ficam sempre muitas mortes
para serem longamente
reencarnadas noutro morto.
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Estamos todos como éramos
antes de ser, e ninguém
dirá que ficou faltando
algum dos teus. Por exemplo:
ali ao canto da mesa,
não por humilde,
talvez por ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. Que tal?
Fica tranqüilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de te afirmar.
Lá que brigamos, brigamos,
opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez... ou senão,
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. Não herdei
de ti essa balda. Bem,
não me olhes tão longo tempo,
que há muitos a ver ainda.
Há oito. E todos minúsculos,
todos frustrados. Que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. De tão remotos,
de tão puros e esquecidos
no chão que suga e transforma,
são anjos. Que luminosos!
que raios de amor radiam,
e em meio a vagos cristais,
o cristal deles retine,
reverbera a própria sombra.
São anjos que se dignaram
participar do banquete,
alisar o tamborete,
viver vida de menino.
São anjos. E mal sabias
que um mortal devolve a Deus
algo de sua divina
substância aérea e sensível,
se tem um filho e se o perde.
Conta: quatorze na mesa.
Ou trinta? serão cinqüenta,
que sei? se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinqüenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
A procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua bênção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça menineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchendo meu nada.
Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.
Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora),
os gestos acumulados
de efusão fraterna,
atados (não convém lembrar agora),
as fina-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo,
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!
Quem preparou? Que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
quem se apagou? Quem pagou
a pena deste trabalho?
Quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
Quem tem auréola? Quem não
a tem, pois que, sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la,
e se pensa melhor faz?
quem senta do lado esquerdo,
assim curvada? Que branca,
mas que branca mais que branca
tarja de cabelos brancos
retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?
quem é toda luz e é branca?
Decerto não pressentias
como o branco pode ser
uma tinta mais diversa
da mesma brancura. . . Alvura
elaborada na ausência de ti,
mas ficou perfeita,
concreta, fria, lunar.
Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?
Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito — enfim — vos querermos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.
.