terça-feira, 28 de março de 2017

O dramaturgo


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Autor muito aclamado, suas peças sempre faziam sucesso.

Prêmios e reconhecimento por onde passava. Livros publicados, palestras em universidades, seminários, uma unanimidade.

Sempre que lhe perguntavam de qual personagem gostava mais, respondia: ora um ora outro.

Mas na verdade a preferida nunca dissera a ninguém, guardava para si a grande paixão que sentia pela atriz de televisão fracassada, criada para um dos textos de que mais gostava. Um monólogo existencialista engraçado e denso ao mesmo tempo. Seu trabalho menos aplaudido e, em sua opinião, a melhor encenação de todos eles.

A atriz que viveu a fracassada abandonara o teatro, seduzida por uma religião. Nunca mais a vira.

Numa viagem com a trupe, começou a ter sonhos recorrentes com a personagem preferida. Sua melhor criação passava, correndo de uma multidão, na frente do hotel.

A cada sonho distinguia outros atores representando, eram seus perseguidores. O único rosto que identificava era o da atriz que a interpretara.

Resolveu; naquela noite, ficaria sem dormir para quebrar a sequencia daqueles sonhos.

Alta madrugada; estava lendo quando ouviu a gritaria e as batidas na porta; era ela pedindo socorro.

Era ela querendo fugir da ficção.


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segunda-feira, 20 de março de 2017

terça-feira, 14 de março de 2017

Quase vida

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Não sabia viver de outro modo, queria o mundo todo, tudo de uma vez. Ávido. Não parava de querer e não percebia o que ia se formando e crescendo, como uma aura acompanhando o corpo.

A mulher era especial, aquela lua também. Ambas fascinavam no imediatismo do momento, mas nenhuma durava em seu sentimento e na lembrança. O enlevo só alimentava seu prazer e mais nada.

Passado, isso é bobagem. Futuro, nem existe ainda, dizia e continuava ávido como se apenas o imediatismo significasse viver.

Cada dia de um jeito, cada dia com uma pessoa que ele encantava com sua beleza. Cada dia com o vazio aumentando como se fosse uma substância.

Numa noite percebeu-se diferente, quis lembrar da aurora e do sentimento pela mulher que amou num amanhecer e não conseguiu.

Sentiu a voracidade do presente que o envolvia, dominando, ditando apenas procedimentos, pedindo mais para crescer e só ai entendeu sua quase vida.

Era um corpo apenas.


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segunda-feira, 13 de março de 2017

sábado, 11 de março de 2017

Armou o cão

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Estava sozinho em casa, sentado na poltrona de couro, com a espingarda entre as pernas.

Fechou os olhos percorrendo as lembranças, identificando cada momento bom, cada decepção. Sentiu saudade.

Como se fosse um ritual, abriu a caixa no colo, escolheu a ferramenta e começou a cuidar da arma. Desmontou-a peça por peça, lixou as pequenas ferrugens, limpou com a flanela, passando óleo fino em cada encaixe.

Montou e desmontou duas vezes, conferindo a precisão do funcionamento. Levantou-se e foi buscar o carregador de cartuchos manual, escolheu um e calibrou com gestos seguros e carga reforçada.

Terminou a preparação, guardou o material; tomou um copo d’água, tinha a boca muito seca. Olhou contra a luz o cartucho como se o medisse e lhe conferisse uma missão.

Pensou na mulher. Quando chegasse, o quanto se aborreceria.

Desencaixou os dois canos da espingarda e carregou o esquerdo, depois resolveu e mudou o cartucho para o direito.

Um tiro só bastaria.

Depositou a arma carregada no braço da cadeira, levantou-se e ligou a televisão no último volume.

Voltou, sentou-se, reviveu alguns momentos, armou o cão e respirou profundamente antes de puxar o gatilho.

Atirou no tubo da TV.


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quarta-feira, 8 de março de 2017

terça-feira, 7 de março de 2017

Guerra sem fim

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Eram medíocres e inseparáveis no convívio e nos conflitos; o amor era, o ódio também. Um e outro conviviam com muitas diferenças e se precisavam. 

Vaidosos, cuidavam muito das aparências. Disfarçavam-se maquiando o rosto da harmonia e tinham cuidado ao afagar o perdão; de todos o mais casmurro e falso, anotava tudo para pequenas chantagens futuras.


 O egoísmo ora se juntava ao amor, ora com o ódio. A coragem, totalmente malvista, nunca se despia para nenhum dele
s.

 A compreensão, coitada, bem que se esforçava para explicar as razões de cada um, raramente conseguia. A mentira frequentava a cama dos dois, lânguida e discretamente metida.


 O desejo era um aliado, ao mesmo tempo libertário, imediatista e despudorado. O único que conseguia equilibrar, mesmo que por pouco tempo, o que do outro havia em cada um.


 Promíscuos com suas alianças temporárias, seus instantes de trégua e dissimulações, viviam na guerra sem fim que mora dentro dos seres.


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domingo, 5 de março de 2017

sábado, 4 de março de 2017

Bela, séria e sensual


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Transitava por ali todos os dias e naquele, quando foi passando, notou pela primeira vez. Era bela e sensual. Parecia que olhava todos pela fresta da venda com indiferença.

Imóvel e séria.

Sentiu ser olhado como se lhe copiassem o corpo e seguiu em frente. Aquela sensação o acompanhou até o momento de atender seu cliente.

Começou a ouvir vozes todas as vezes que passava por ela. No começo não entendia, pensou loucura. Seriam poemas declamados iguais aos que seu primo fazia? Não, não eram.

Familiarizado com a voz e, mesmo no meio do barulho da rua, foi conseguindo entender aos poucos. Eram leis declaradas uma por uma, com todas as mudanças, parágrafos, artigos e códices.

Loucura. Olhava os passantes tentando comprovar se também estavam ouvindo aquilo.

 Parecia que não.

Em muitos dias ficou observando. Ela praticamente ensinava as leis. A inflexão, as pausas soavam de um jeito diferente conforme a roupa e a aparência do transeunte.

Não podia ouvir a palavra doutor ou ver alguém de terno e gravata que se calava abruptamente. Esperava o passante passar, voltando a declarar suas excelências.

Era por isso que, todos os dias, na porta do Palácio da Justiça, o guardador de carros urinava nos pés da estátua bela, séria e sensual.

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sexta-feira, 3 de março de 2017