segunda-feira, 19 de junho de 2017
sexta-feira, 16 de junho de 2017
Bendito Benedicto, poeta bendito
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Ateu que sou.
Um dia acompanhei a procissão para viver seu poema.
E vivi.
Palavra a palavra, verso a verso e cada silêncio resignado no ar.
Cantei na melodia instigante que freqüenta cada estrofe.
E dancei na sensualidade do ritmo, argamassa milimetricamente assentando angústia e beleza.
Nesse dia, Benedicto Bendito. Senti fé, fúria e muita esperança.
Desde então, na corda do seu poema, minha alma se amarra e se liberta desesperadamente.
MQ
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quarta-feira, 14 de junho de 2017
Arlequim
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terça-feira, 13 de junho de 2017
Zelé
Açodando o passo iam pela madrugada, a chuva fina, de
novo, começava a cair encharcando a capa estendida sobre a cabeça dos dois. Ela
toda encolhida, com frio, esforçava andar mais depressa e puxava o corpo de
Gentil para esquentar o seu.
Passando na porta da igreja, Zelé vinha apagando as
luzes dos postes. O claro do dia entrava no Arraial e a chuva engrossando,
sobrepunha o fusco, embaralhando o que se enxergava.
Zelé viu aquele vulto estranho passando do outro lado
da rua, não distinguiu quem, hora de quase missa o certo era eles estarem indo
para igreja, não como saísse dela. Coisa de noite feia, pensou, mas logo
esqueceu, continuando a lida.
Na noite seguinte, clara e estrelada, madrugada fria,
Zelé lembrou do vulto quando vestia a capa. Foi subindo a rua pensando fosse a
parteira Júlia indo aparar alguém ou seu Arcílio da farmácia acudindo algum
doente. Nesse pensamento, foi descendo a rua. No terceiro candeeiro, concluiu
não ser possível pois nenhum deles morava na direção de onde o vulto vinha e
nem para onde ele ia. Um dia, se lembrasse ia perguntar.
Passou mais de mês, até já tinha esquecido daquele
assunto, ao apagar o último poste atrás da igreja, viu saindo do cemitério um
vulto, mais magro, quase certo o mesmo daquela noite. Zelé, homem sozinho no
mundo, já tinha visto tantas coisas no escuro da noite, parecendo ser o que não
era, que já nem ficava assustado. Coragem não faltava, lidava com tudo sem
assombro, no mais real.
Sem reconhecer quem fosse, mesmo tendo visto ele antes
de apagar o último candeeiro, Zelé acabou o serviço naquele dia e, como quem
não quer nada, foi visitar seu Zé Coveiro na intenção de descobrir alguma
coisa. Conversaram a manhã toda mas nada na conversa dele deu pista de quem
pudesse ser. Naqueles mais de seis meses, o único enterro foi o da moça Aurora,
filha do seu João Bastos, que morreu de tuberculose. Enterro dos mais tristes,
o marido, casado de novo, dava dó. Dizia Zé Coveiro.
Ficou Zelé, dali em diante, por quase o mês vigiando o
cemitério, apagava o último candeeiro no fim da rua e se escondia na sombra
esperando ver quem entrasse ou saísse. Nada aconteceu naquele tempo, Zelé foi
esquecendo o assunto. Uma tardinha ele viu sair do cemitério dona Celeste,
mulher de seu João Bastos, e naquela madrugada resolveu esperar mais uma vez.
O céu choveu todo naquela noite, estiando perto do
romper do dia, para sua surpresa não era um vulto e sim dois, para seu espanto
era Gentil e a moça Aurora entrando no cemitério, o susto foi grande mas Zelé
não se revelou escondido.
Hoje, ele vigia a hora de Gentil buscá-la e vai na
frente apagando os candeeiros, das ruas onde os dois passam, para ninguém
descobrir aquele segredo das madrugadas do Arraial de Nossa Senhora da
Conceição.
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segunda-feira, 12 de junho de 2017
domingo, 11 de junho de 2017
Perdoado Quenzim
Lá vem me atentar. Já não chega o
aborrecimento de ver aquela torre ficar quase mais alta que minha cumeeira,
ele, depois que chegou para dar acosto ao vaqueiro Quenzim, não sai daqui do
curtume. Pensa que não vou disputar direito. Quenzim já emporcalhei com cachaça
e no jeito de matar os bois. Esse tempo perco é não.
Ele que continue vindo aqui,
exibindo a torre, fazendo o que quiser. Incomoda não. Pode pôr sino, cruz, mandar
fazer afrescos, avisto mas não tenho que levantar a cabeça, nivelo com a altura
da cumeeira, perde tempo o colega. Esse vaqueiro é um fraco, basta um gole de
cachaça para desarrumar ele. O vivente já vem com a natureza dele. Adianta ir
na igreja? Aprender reza nova?
Cerco ele, pego a beleza, cochicho
no ouvido:
- Depois do gole, é sua...
Esse mundo é um de quem quer, de
quem sabe pôr arrelia é também. O colega cerca Quenzim. Eu não fico só no de
longe esperando a hora de açular no tempo dum gole para destravar o real dele.
Com esse lido só quase com cachaça, é o que põe ele no fraco.
Adianta o colega ficar grudado
nele? Cochichando caridade no carecer dele, aferro à-toa. Quenzim põe o olho na
arroba do boi e eu assopro no ouvido dele.
– Leva um pedaço por conta da
caridade do patrão, faz guizado...
No juízo dele só ponho a favor, o
colega põe até perdão, quer de qualquer jeito. Aproveito o ouvido.
- Toma pinga, faz de novo...
Meu jeito é esse, descubro a
fraqueza primeiro. Vou cevando o vivente com coisinhas que o colega nem percebe.
Esse de agora, o Quenzim, menino ainda no alambique do Tartulfo, onde o pai
trabalhava, quando foi pegar a caneca de garapa, o colega distraiu e eu
assoprei:
- Prova daquela lá...
Descobri a fraqueza. Hoje, só
atento com o gole, o resto vem junto na natureza dele. E o jeito dele matar os bois?
Não reparou nas maldades que fui bafejando, devagar, anos e anos, daqui da cumeeira.
Agora o colega vem de novo me
afrontar com o perdão de tudo? Por que não deixa Quenzim acabar de estrebuchar,
sangrando nesse chifre afiado? Por que não larga mão dele? Já não chega o
abodego daquela torre ficar mais alta que minha cumeeira?
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sexta-feira, 9 de junho de 2017
quarta-feira, 7 de junho de 2017
O irmão do Rutinho
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O sol já ia nas grimpas do
dia, esparramando quentura para todo lado, e o menino ainda no faltar das obrigações
com o padre que era teimoso, imagina chamar Zé Bilú na igreja, convencer de
quê, meu Deus? O povo falava até que ele tinha parte com o diabo. E agora essa
do vigário chamar. Boa coisa não era.
E não era
mesmo, o padre exigia de Zé Bilú que ele desse a volta e não passasse na porta
da igreja, como fazia toda madrugada, quando voltava do jogo, bêbado, e
gritando pela rua. Ameaçava excomungar, mandar prender.
Zé Bilú retrucava que ele num tinha nada com os
particulá dele, que ele era home do mundo e num tinha respeito de quem usava
saia.
A confusão foi formada, no sermão de todo dia o padre
excomungava o ateu; na intendência, dava parte; falava com as gentes da
política. Falava, com as carolas do lugar, da qualidade desse cidadão, não
tinha profissão, ninguém sabia de onde tirava o sustento. O padre parecia não
tirar o Zé Bilú do pensamento hora nenhuma. Esse, por sua vez, fazia parecer
que nem era com ele. Fingia não ouvir.
Mas de madrugada sempre achava um jeito de levar um
animal qualquer para defecar na porta da sacristia. No outro dia, o vigário
fazia queixa para o delegado e procurava durante todo o dia Zé Bilú, sem encontrar.
Zé Bilú não corria dele, mas sempre evitava encontrá-lo,
fosse para não ter o bate-boca, fosse para não enfezar o homem.
E assim foi sucedendo,
excremento na porta da sacristia, falação no sermão. O delegado não tinha como
fazer nada, o intendente era parceiro de jogo do excomungado. E todos foram se
acostumando com a arrelia dos dois.
A vida de Zé Bilú não era
só no à toa, não. Não era só no jogo o arrisco dele, tinha o garimpo no
Veríssimo, no à-meia com o Rutinho, espera de sorte no cascalho, nas águas do
rio. Teimosia de anos, de muito baralho partido para o lado do não, de muitos
calos nas mãos que ele não dava parecença.
A não ser Baldino, que sabia e fornecia abastecimento,
quase sempre no prazo de troca das poucas pedras do de sustento. A maior dava
para ano, mas ficou na banca de jogo. Zanga de Rutinho. Mas Zé Bilú tinha o
crédito do fornecimento e a zanga acabou aí.
Zé Bilú pôs combinação com o irmão, na evitação da mesa
de jogo, enquanto não repartisse as pedras poucas que tirava. Depois disso era
os dias na rua, no carteado, na arrelia com o padre, enquanto o cobre durasse.
Rutinho que ficava no pesado da lida não punha
importância. O irmão, quando pegava na bateia, trabalhava num dia o que valia
muitos. Às vezes, Zé Bilú chegava, sentava no barranco sem nem tirar as botinas
e ficava olhando o cascalho para lavar, como naquele dia, com o olhar fixo num
rumo, pensando sabe lá o quê. Ficou quase a manhã assim.
Não espantou Rutinho. De vez em quando ficava sentado
olhando, já estava acostumado. Mas, de repente, ele levantou, passou a mão na
bateia e foi no rumo certo do monte de cascalho para lavar e nem chegou a
usá-la. Com a mão mesmo ele pegou a pedra, soltando um grito que foi ouvido até
lá no Garimpo do Ligoso. A pedra era do tamanho de um ovo, das mais puras. Logo
chegou gente de outros garimpos, tamanha a gritaria de Zé Bilú e Rutinho.
- Bamburrei minha gente, segurava o diamante com as
duas mãos, punha contra o sol, pulava e gritava com o irmão e a companheirada
que foi juntando.
A notícia chegou no Vai Vem, primeiro que o vento que
estava soprando. Mas os irmãos não foram para lá, não. No medo de queimar a
pedra esperaram um mês a passada de Baldino no voltar. Com ele foram para Minas
vender o bamburro.
Com os cobres na guaiaca, puseram a labuta nas terra da
viúva de Totonho Costa, comprando a parte dela, mais a de dois herdeiros,
incluindo a sede. Formando com o ajunte dos pedaços, terra bastante para gado,
lavoura e muita criação.
Zé Bilú, passados quase seis meses, voltou para a mesa
de jogo como se não tivesse acontecido nada. De madrugada, a mesma algazarra de
sempre, a mesma arrelia com o padre, o animal defecando na porta da sacristia.
E para surpresa sua, não teve sermão.
O padre nunca mais fez queixa de Zé Bilú para o
delegado nem para o intendente. Mas quisesse saber dele, era só passar na porta
da sacristia, se tivesse o monte ali, Zé Bilú estava no Vai Vem.
No correr do tempo, Rutinho engraçou com Lonora dos
Costa. O irmão tratou do pedido e foi com Rutinho combinar data na igreja.
E aí foi senhor José Belarmino para cá, senhor José
Belarmino para lá.
Hoje, dia de Nossa Senhora da Conceição, festejo maior
da paróquia, Zé Bilú é o festeiro. Na procissão, Zé Bilú carrega o andor com a
fita de congregado mariano no pescoço.
Mas, até hoje, se quer saber se ele está no Vai Vem é
só passar de manhãzinha na porta da sacristia e ver se o monte esta lá.
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terça-feira, 6 de junho de 2017
segunda-feira, 5 de junho de 2017
Moça Davina
Davina era só pensamento, de tanto
o padre falar em anjos, pensava como seria a vida deles, por que cada um tinha
um da guarda? Será que, também, tinha um demônio para cada um, na tentação?
Olhava a figura do santinho que a
mãe lhe dera quando pequena, o anjo protegendo a criança quase caindo no
abismo. Era tão bonito aquele anjo. Será que cara teria o demônio? Pensava.
Será que o padre ia zangar com ela se perguntasse? Será que Lalinha tão sabida,
lia tantas coisas, podia explicar?
Davina ficava pelas tardes perdida
dentro da imaginação, sonhava com o anjo, com aquela beleza toda, lhe dando a
mão como fosse a criança do santinho.
Um dia, pediu que Lalinha
explicasse se, como o anjo da guarda, todos tinham um demônio da tentação. Como
era a cara do diabo, do anjo da guarda ela conhecia, tinha o santinho. Mas se o
demônio aparecesse como ia distinguir.
Lalinha, cheia de mistério, contou
que o diabo era a tentação em tudo, tinha qualquer cara que quisesse, ardiloso,
era coisa ruim, era o mal. Lembra dos sete pecados? Orgulho é coisa dele, a
inveja também, até uma bem pequena. Preguiça era ele atentando, a gula era ele
comendo dentro da gente, a ambição e raiva, tentação dele, e a luxuria era a vontade
de fazer coisas, sem-vergonhices.
Gostar de doce de leite era
pecado? Perguntava Davina. Gostar não era pecado, mas comer mais do que a fome
era. Respondia Lalinha.
As duas ficavam nessa conversa por
horas, enumerando situações de raiva, inveja, preguiça e ambição, quando
chegava na luxuria Davina queria saber mais. Não pode, é desonra, mas quando
você casar pode, não é pecado, Lalinha respondia como se soubesse tudo sobre
aquilo. Como? E não dói? Perguntava Davina. Não devia doer era abençoado por
Deus, deve de ser bom, mas sai um pouco de sangue. Antes de casar é como se
fosse o diabo fazendo, dizia Lalinha.
Durante muito tempo era o assunto
das duas, onde Davina visse Lalinha sempre tinha uma pergunta. Perguntava se
ela já tinha beijado. Se era pecado. Tinha que confessar? Isso era tentação?
Lalinha demonstrava conhecer o que
só tinha no curioso, nunca ia contar que sabia bem pouco daqueles assuntos,
gostava da admiração da amiga.
Necão conhecia todos na sala mas,
mesmo assim, não se dirigiu a ninguém, foi passando, generalizando o cumprimento.
- Tarde.
Nem prestou atenção se lhe
responderam ou não, foi direto para a cozinha em sorriso nenhum. A mulher do
Donato, que fazia o café, foi quem lhe falou.
- O senhor acalme seu Necão que
não há de ser nada, a mãe está com ela no quarto, a menina já serenou e o padre
foi chamado.
- Padre, prá quê! E esse povo aí
na sala? Que ajuntamento de gente é esse?
- O senhor não sabe o que
aconteceu com a menina? Se pôs no choro desde cedo e começou a gritar, não
deixando ninguém chegar perto, agora que abrandou. Gritava muito e falava
embaralhado, sem sentido.
- Por que chamar o padre?
Perguntou Necão, entrando no quarto onde a mãe e a filha abraçadas choravam.
- Foi o diabo, pai. Foi ele sim.
Enquanto falava, Davina se
encolhia na cabeceira da cama num choro doído, com as cobertas tampando o
corpo, ficando só a cabeça de fora. A mãe chamava por Nossa Senhora da
Conceição, e Necão, sem reação nenhuma, parado no meio do quarto não entendia
nada. Nesse momento o padre chegou, Davina, ao vê-lo, começou a chorar mais
alto ainda e a gritar.
- Foi o diabo, seu vigário, eu não
queria não.
O pai, se refazendo do susto,
esbravejou com uma raiva que nunca ninguém vira.
- Diabo coisa nenhuma, cadê esse
safado? Conta quem é, Davina, vou acabar com a raça dele. Quem é o desgraçado,
me conta, filha?
- Calma, seu Necão, pediu o padre.
- Ela está possuída? Perguntava a
mãe, chorando.
Com muito custo, o padre convenceu
o casal a sair do quarto e rezou por mais de hora, enquanto os vizinhos se
juntavam pelo resto da casa como se tivesse morrido alguém. Nessa hora, Necão
não agüentou e pôs todo mundo para correr, já com a espingarda na mão.
- Ela falou o nome do desgraçado?
Perguntava ao padre que saía do quarto com cara de pouco adianta.
Dobrando os paramentos, disse que
ela nem deixava ele chegar perto e que era um despautério essa história de
diabo, mas, por via das dúvidas, ele exorcizou a menina e benzeu o lugar.
Necão enfurecido entrou no
quarto seguido do padre e da mulher e encontrou Davina, ainda chorando, quase
nua, com o sangue escorrendo pelas pernas, tentando esconder o lençol sujo. A
mãe ao ver a filha daquele jeito, tirou o marido e o vigário do quarto,
chorando, ajudou a filha limpar o sangue do seu primeiro menstruo.
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sexta-feira, 2 de junho de 2017
quinta-feira, 1 de junho de 2017
Olho do boi
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Não queria ir, indo.
Calvário meu.
Puxado pelo laço prendido na argola do focinho, Lambari
parecia ter entendido tudo. Caminhava lento, parava toda hora e olhava comprido
para trás.
Desassossego meu, e as lembranças cutucando por dentro.
Êia,
Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo,
estrada ficando...
Boi formoso,
carro cantando...
Sentado no cabeção, enxergando o pai por entre os
chifres na entrada da Rua de Cima, provocando cobiça de Zarias pela canga de
bois.
- Põe preço, seu Lino...
- O que num tem preço, no preço está, seu Zarias, dizia
o pai passando a mão no lombo de Lambari.
Não queria fazer, fazendo.
Casa de Dito Cotobó, uma das primeiras da rua, com um
pequeno curral na porta.
- Só pago
100. É boi véio, inda mais de carro, carne dura, só pago os 100. Ocê me dá ele
morto, vivo num negoceio não.
Prevalecia Dito da situação. Quem num sabia da seca? Da
tristeza do pai com a lida, depois da morte da mãe e de tudo que aconteceu?
Nunca mais saíra de casa, falava quase nada o dia inteiro, era a vida da morte
estampada na figura definhada, inconformada e sofrida. Desistindo da vida, como
se todos os anos de labuta despencassem em cima, duma vez.
Dito sabia disso tudo e agora tirava proveito da minha
pouca idade, da necessidade aparecida de dinheiro.
- E só compro o boi em consideração ao seu pai, prevalecendo.
Quando percebi, já estava com o machado na mão e ouvia
Dito recomendar:
- Se quiser amarra ele no tronco.
Me vieram os pedaços primeiros da infância. Lambari
descendo da invernada, garboso, encostando no cocho, esperando pela lida.
Lambari entristecido com a morte de Cafuncho, seu par
de junta, picado de cobra.
Lambari, já velho puxando arado, serviço miúdo, não
para ele que também nessa labuta tinha garbo.
Tristeza, e aquele machado queimando minhas mãos.
Me veio bem-querença, desde os primeiros alembros.
Calça curta ainda, ver Lambari descendo da invernada
todo dia, no raiar, tomar encosto no cocho e esperar Lopoldo acabar de tirar o
leite. Depois, o cangar das juntas.
Êia, Lambari,
êia, Cafuncho...
Milho indo,
estrada ficando...
Boi formoso,
carro cantando...
O machado nas mãos, o lembrar queimando por dentro.
Quando saí na porta do terreiro, o olhar de Lambari me
pegou inteiro. O brilho do olho foi se apagando devagar e aquela tristeza
resvalou para dentro de mim. Não usei o laço, não carecia. Lambari ficou parado
na minha frente, olhar mais triste que o do pai desistindo da vida. Ergui o
machado e naquela hora nada se mexeu, nem eu. Lambari se virou em trote pequeno
ganhou distância e veio em galope, como se
sua sina fosse só correr. No começo, achei que era em minha direção, mas
não conseguia me mexer. À medida que o boi avançava, fui percebendo seus olhos,
agora não me olhando mais, parecia fitar um ponto qualquer.
Poeira e o boi se aproximando.... Barulho do galope e o
boi se aproximando.
Sentia o suor escorrer pelas costas, o corpo todo
paralisado como pedra. Vinha ele.
À pouca distância, soltou as patas dianteiras no ar e
cravou a testa no tronco, caindo morto ao meu lado, no meio da poeira que levantou.
Muitos anos já se passaram, hoje não careço precisão,
mas não passa um só dia sem que o olhar do boi Lambari não lateje dentro de
mim.
Êia,
Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo,
estrada ficando...
Boi formoso,
carro cantando...
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