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quinta-feira, 31 de março de 2016
quarta-feira, 30 de março de 2016
Fundo dos olhos - MQ
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Fisionomia sumida, um quase sorriso
esquecido na boca enrijecida, mas via tudo como se as pálpebras fossem de
vidro. Podia vê-la sem disfarçar as lágrimas, insinuando-se para o amigo com o
charme da dor. Ela, tinha sido dele e de outros.
Ele, dela e de tantas outras que
vieram vê-lo durante aquela madrugada; choravam discretamente, passando a mão
em suas mãos entrelaçadas.
Uma noite especial aquela. O
sentimento reunido em cada um passeando pela inércia do seu corpo. Podia ver a
mentira escondendo-se no fundo de muitos olhos. Os amigos queriam o amor de
todas as suas mulheres que se despediam chorando, mas gesticulando
possibilidades.
Ele, na imobilidade da morte, entendeu
o medíocre nos seus olhos também. Não agüentou mais; num grande esforço,
conseguiu libertar-se do corpo.
Da porta olhou as pessoas, constatou o
falso em cada uma delas e em si mesmo. Sorriu indiferente; sua alma deu a
última olhada na mulher, nas amantes, na mais regular e saiu – foda-se – foi
beber no Bar das Almas.
terça-feira, 29 de março de 2016
segunda-feira, 28 de março de 2016
domingo, 27 de março de 2016
O dia dela - mq
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Parecia irreal encontrá-la sozinha na
madrugada de um fim de semana. O lugar era muito impróprio, mesmo para uma dama
tão vivida e experiente, viajada e com tantos poderes nas mãos.
Era difícil acreditar que estivesse
sem os assessores e os acompanhantes habituais, bajulando; sem os mais
encantados da imprensa que naquele mesmo dia só falavam dela em suas matérias,
em todos os editoriais, colunas, rádios e TVs. A cidade toda sob sua
influência. A seus pés, bandas de música, grupos de dança, as escolas e as
associações. Gente do governo municipal, estadual e federal. Até um embaixador
a cortejara.
Sentada no banco da praça, olhar sem
brilho, pediu ao passante que acendesse seu cigarro; suspirou, cansada, um
agradecimento que ele não entendeu; levantou-se sacudindo a purpurina e
caminhou altiva por entre os canteiros.
De onde estávamos, assistimos quando a
bruxa partiu na sua vassoura, confirmando voltar no próximo ano.
Foi rindo baixinho, sarcástica,
aumentando o contentamento enquanto se afastava até desaparecer, gargalhando;
aquele lugar já perdera seu encantamento, suas entidades, seu imaginário fora
esquecido... Agora, tinha um dia seu naquele lugar também.
Ah! Ah! Ah! Gargalhava
Aquele lugar, agora também era seu.
Ah! Ah! Ah!...
sábado, 26 de março de 2016
sexta-feira, 25 de março de 2016
quarta-feira, 23 de março de 2016
terça-feira, 22 de março de 2016
segunda-feira, 21 de março de 2016
domingo, 20 de março de 2016
O acidente - mq
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O carro parou na esquina, não puderam
se conter. Uma revolução foi desencadeada no momento da despedida.
Nas mãos, o desejo se configurou e
desarmou todas as roupas. O cheiro dos corpos explodiu no ar, embaçando os
vidros; veio da bomba construída nos olhares.
O calor da pele derreteu maçanetas e
transformou o ponteiro do velocímetro em ventilador. Todas
as curvas se rebelaram, misturando-se, entrelaçando-se, recurvando-se numa
única conspiração.
Nas bocas, todas as palavras do mundo
soaram iguais e mastigaram dezenas de beijos. Os sexos portaram eretas suas
armas e se lamberam, feridos de amor e paixão.
Na esquina, dentro do carro havia uma
revolução, parecia a única batalha do desejo, um início de fim.
Foi quando, num instante, a manhã caiu
em cima do carro e matou os dois.
sábado, 19 de março de 2016
sexta-feira, 18 de março de 2016
Transgressão - mq
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Quase um ritual. Sério, metódico,
consciente e muito bem-arrumado no terno e gravata que nunca repetia, nos
sapatos muitos bem engraxados para um andar seguro e calmo.
Quase como obrigação, toda semana, na
terça-feira por volta das oito horas, vinha ele pela calçada, depois de deixar
o carro estacionado na avenida. Cumprimentava todos na entrada, um dos
habituais mais generosos; distribuía gorjetas, desde o guardador de carros até
o gerente.
Recebido com cortesias e mesuras,
entrava solenemente, acompanhado pela recepcionista; sorrindo discretamente, ia
até a ultima mesa, a mais escondida.
O encarregado das fichas atendia-o
preferencialmente. Era seu momento especial, desfrutando cada detalhe da
transgressão; sabia de todas as leis e como aplicá-las no seu tribunal.
Bebia três ou quatro doses, convivendo
com todos que ali jogavam como se fossem seus pares. Ganhava, perdia e
entregava-se ao imprevisível com um brilho diferente no olhar.
Na casa de jogo, o juiz se realizava
descumprindo a lei.
quinta-feira, 17 de março de 2016
quarta-feira, 16 de março de 2016
terça-feira, 15 de março de 2016
Coisa instituída - mq
Mente, mente
e mente...
Influencia
as mentes e mente...
Se oculta e
mente
Comanda, usa
e mente
Explora e
mente
Arquiteta
despudoradamente e mente
Arvora-se
indecentemente
E mente,
mente e mente...
segunda-feira, 14 de março de 2016
Meio cego, meio surda - mq
Tinham nascido em lugares distantes um
do outro, épocas diferentes, costumes outros vieram em cada um para os dois.
Ela era quase surda, ele enxergava
muito pouco. Em ambos, os dois sentidos desfaleciam. Quando se conheceram, ela
o amou no instante que o viu. Ele, ouvindo, foi se entregando devagar,
descobrindo-se na sensualidade daquela voz.
Com o tempo perceberam que suas almas
se pertenciam; a dela, masculina, via a vida e deslumbrava-se com tanta forma e
tanta cor. A dele, feminina, ouvia tudo que soasse no ar e nos seres.
Num, o silêncio apagava a música do
som; no outro, a escuridão calava a luz enquanto se pertenciam.
Viveram juntos pelas ruas do bairro,
decorando cada forma, ouvindo a vida. Andavam o dia inteiro; quando anoitecia,
misturavam os sentidos no amor. Era assim que ela escutava a vida e ele via a
beleza do mundo.
Quase a um só tempo: a tecnologia deu
a ela o aparelho minúsculo, ouviu. Ele recebeu o transplante da córnea tão
esperada, agora via.
Mas, ao se amarem sem suas
deficiências, uma sensação nova os engoliu. Era como um amor que não valia,
cego e surdo... morria.
domingo, 13 de março de 2016
sábado, 12 de março de 2016
sexta-feira, 11 de março de 2016
Bela, séria e sensual - mq
Quando ia passando, pela primeira vez
notou: era bela e sensual; olhava a todos pela fresta da venda com indiferença,
estática e séria.
Sentiu um olhar como se lhe copiassem
o corpo e seguiu em frente.
A sensação acompanhou-o, até cair no esquecimento.
A partir daquele dia, começou a ouvir
vozes todas as vezes que passava por ela. No começo não entendia, pensou
loucura; eram poemas declamados iguais aos que seu primo fazia? Não eram. Foi
se familiarizando com a voz e, mesmo no meio do barulho da rua, foi conseguindo
entender aos poucos. Eram leis declaradas uma por uma, com todas as mudanças,
parágrafos, artigos e códices.
Loucura. Olhava os passantes tentando
comprovar se também estavam ouvindo aquilo. Parecia que não.
Em muitos dias ficou observando, ela
praticamente declamava as leis. A inflexão, as pausas soavam de um jeito
diferente, conforme o passante, conforme a roupa, conforme a aparência.
Não podia ouvir a palavra doutor
que se calava. Passava o outro guardador de carros que trabalhava do outro lado
da praça, ela voltava a declarar suas excelências.
Ninguém a ouvia, apenas ele, que
também a entendia; e era por isso que, todos os dias, na porta do Palácio da
Justiça, o guardador de carros urinava na estátua bela, séria e sensual.
quinta-feira, 10 de março de 2016
quarta-feira, 9 de março de 2016
Beijo na boca - mq
Resolvera assumir, beijo na boca nunca
mais.
Do pescoço para baixo valia tudo,
cheirava, mordiscava e lambia. Os pés, unhas, entre os dedos. Gostava de morder
o tendão do pé acima do calcanhar que uma vez ouvira um caipira chamar de
“peia”. A palavra fascinava. Peia misturava-se com pernas, coxas, aproximava-se
de nádegas, ânus e do sexo.
Ah! Beijava extasiado, chupava,
lambia. O umbigo, os seios, braços e nas costas passeava a língua com a boca
úmida esparramando prazer. Ah! Muito prazer. Mas na boca nunca mais, não sabia
se era o buço, o medo do hálito de bebida, cigarro ou mesmo o mau hálito. Tinha
uma sensação esquisita, faltava o ar, um abafamento. A respiração junta não era
agradável. Não notavam mesmo.
Tinha tantas maneiras de agradar e
sabia excitar, envolver, cheirar a pele toda, lambendo, mordendo, tocando.
Encantava nas preliminares e intermediárias e sabia se encontrar com o prazer.
Nunca houve nenhuma reclamação;
preparava o enlevo, sabia dissimular, olhava no rosto e, penetrante nos olhos,
colocava toda a malícia, parecendo sempre querer mais.
Usava as mãos em carícias pelo rosto,
tocava os lábios, os cabelos, deixava que os dedos se entregassem à língua, à
malícia dos dentes. Sabia envolver-se em permissões e muita luxúria.
Mas beijar na boca, ele não beijaria
mais.
terça-feira, 8 de março de 2016
segunda-feira, 7 de março de 2016
domingo, 6 de março de 2016
Mistura de raças - mq
Estava ali sozinho, viera a pé para
espairecer, gostava de andar naquele pedaço da cidade.
Chegou, estava começando; falou com o
escritor que dava autógrafo, pegou o seu. Falou com alguns amigos, tomou café,
folheou alguns livros, conversou com uma amiga que chegava, conheceu duas ou
três pessoas novas e já ia começar a se despedir quando se sentiu estranho, uma
pequena tonteira, um embaçar das vistas. Por segundos as luzes se apagavam e
reacendiam lentamente, alternavam cores e, em momentos, pareciam ter um brilho
muito intenso.
Imaginou-se desmaiando e procurou
aproximar-se de uma amiga. Pálido, avisou que estava passando mal, estava sem
carro e que, qualquer coisa, o levasse a um hospital. Ela, preocupada,
constatou a palidez; tocou sua testa, chamou uma pessoa que ele não conseguiu
identificar, não enxergava mais.
Rapidamente deitaram-no no chão,
trouxeram-lhe água; juntaram-se curiosos e a médica fez perguntas que ele nem
ouvia direito.
Um carro já estava colocado em posição
de levá-lo, quando a médica, rindo muito, pediu para trazerem um copo de vinho.
Voltou para casa sozinho pelo mesmo
caminho, chutando pedras, envergonhado e xingando o arquiteto que planejou a
iluminação do espaço cultural alternando as cores e a intensidade com que eram
trocadas, para simbolizar a mistura das raças.
sábado, 5 de março de 2016
sexta-feira, 4 de março de 2016
quinta-feira, 3 de março de 2016
Cinco quadras - mq
A distância era de pouco mais de cinco
quadras. Na porta, consultou o relógio; olhou distraído para a rua, sentiu a
primeira pontada e não sentiu a mão direita.
Nos primeiros passos, a falta do braço
inteiro. Olhou a esquina e uma das pernas foi como se tivesse sido arrancada de
um puxão. Olhou para os lados, querendo passar despercebido; a outra mão, com o
braço inteiro, entorpeceu, não sentiu mais.
Mal chegou na esquina da quadra, a
outra perna. Olhou no relógio de novo, o tempo conspirava. O sexo e a bunda
pareciam cortados pouco acima do umbigo. Suou frio, olhou a próxima esquina;
suou mais ainda, despercebeu até o pescoço.
Aflição, o tempo, a próxima quadra, e
a nuca ficou como se flutuasse no ar, até que não a sentisse mais. As horas, a
calçada, um torpor. Acontecia.
Perdeu o cheiro, o gosto começou
escorrer deixando um rasto. O tempo, a penúltima quadra era a praça - e os
olhos foram sumindo bem devagar, mas a boca e o resto do rosto arrancado como
se tirasse, em outro puxão, a máscara.
Na quarta quadra, por último, os pés
se distanciaram dos dele e pode vê-los, tão belos, caminhando na frente;
andavam para uma intensidade, para outras vidas.
Acompanhou sem lágrimas cada passo.
Olhou em volta. Todos
o observavam ali parado. Um corpo disforme e vazio que precisava andar.
Suspirou, olhou o relógio, continuou
até a esquina. Pronto. Tinha acabado.
Estava só com a sensação de tê-la
ainda totalmente dentro de si.
quarta-feira, 2 de março de 2016
terça-feira, 1 de março de 2016
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