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Não deu tempo de pensar: Potaço atirou na direção do inimigo. O cano da
arma velha fendeu-se com a explosão, o fogo cegou o olho da mira e chamuscou
todo o rosto. Nem assim perdeu a agilidade. Esbravejando pulou por cima das touceiras
de onde os soldados disparavam, lacerando os cujos com o terçado sem lhes dar
tempo de carregar as armas, impondo-lhes sua valentia com a derrota. Eram
poucos e ficaram ali para sempre, uns demoraram tolerando a dor e a morte
chegar, suplicando por um golpe final de boa morte.
Seus rompentes de valentia eram falados, dizia-se protegido e que sempre
escapava porque a morte não o queria em seus desígnios. Parecia ser verdade
pelas vezes que enfrentou tocaias e ardis que o inimigo impunha, como se
soubesse de seus próximos passos. Essa fama o fazia, onde passasse, incorporar
mais seguidores, já formavam um grupo de mais de quarenta entre tapuios, escravos
fugidos e mamelucos como ele.
Quando um sinal de caminho havia,
a sina se impunha nas errâncias, sem tergiversar para o passado. Pedro Potaço
lembrava o relho comendo a carne, a cada chicotada o algoz dava uma risada mais
alta, sentia o sangue verter escorrendo até o cós da calça. Foi a primeira e a
última vez que foi açoitado, cumprindo punição por comer da saca de farinha.
Castigo imposto como escravo ele fosse, amarrado na argola da porta pelas mãos
e sentindo o peso das do patrão misturar com a risada e os impropérios. A
mulher pedindo clemência e o português batendo o preço da mão de farinha.
No
silêncio, a marcha descompunha em leque, até o barranco, modo evitar a tropa
vinda em alcance. Divididos em grupos de três em três, sobrando na retaguarda
Potaço e o mulato Mutu, ferido no peito.
Acantonados
na mata, sentiam o mormaço da tarde produzindo um torpor que contagiava a
todos. Na espera do sinal, um momento de descanso no meio da fatigante marcha
de tantos dias.
Tremeluziu
na escuridão da noite nascendo; o sinal do candeeiro na margem, era o aviso.
Estertorando ao seu lado, com o peito aberto por ferimento, o mulato perdia
todo o sangue; os espasmos de dor pareciam afastar a morte; precisava ser
carregado mas o tempo urgia, era uma distância que ele não dava conta de
carregar só; a decisão foi tomada sem hesitação: fez que o iria carregar com
uma mão e com a outra cortou a jugular na misericórdia de não abandoná-lo
sofrendo.
No lanchão, em meio ao gado, se
esconderam, agachados para a travessia, o alvoroço dos animais foi se
aquietando quando a embarcação pôs-se em movimento, margeando, rio abaixo, à
espera do outro sinal. Quando ele, veio em três piscadas de lume da outra
margem, a embarcação atravessou.
A roupa de algodão
esmolambada que cada um vestia fazia muito perdera a cor; a sujeira
predominava. As armas velhas, a falta de cartuchame, de pólvora, a maioria dos
homens armados de terçados, bordunas e franzinas lazarinas mal davam conta da
caça. O alimento era escasso, raro uma caça, dividida sem fartura, em nacos que
não matavam a fome. Mas a valentia os alimentavam e sabiam ser sorrateiros.
Ensombrecia a tarde
quando o governador de armas começou a falar para uns poucos reunidos em volta
atendendo o toque de rebate. O descaso com seu pronunciamento o deixou
colérico. Gritava proceder do reino, de avoengos ilustres, gabava representar o
império. Que iria acabar com os desmandos havidos até ali, enumerava a captura
de revoltados, a prisão de uma dezena de culpados. E deram-se horas, até quando
os estampidos da primeira carga surpreenderam a milícia formada no Largo.
O português foi
encontrado morto entre as sacas, com a boca cheia de farinha empapada de sangue
e a urina escorrendo, ainda quente, pelo chão.