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No fora do tempo me vi na casa de João da Dica acompanhando ao longe - apequenado no caminho - a figura do filho mais querido. Vinha com a mala nas costas e um jeito de mundo no andar.
- Cala esse cachorro, meu velho!
Pediu ela quase gritando no descontrole da alegria. Os dois viviam naquele ermo desde que nasceram. Ela disposta na premonição e nas rezas que fazia atendendo todos que ali batiam. Ele, já encurvado pelo custoso da vida, esmorecia com qualquer esforço; gritava com o cão magro e barulhento e punha brilho nos olhos embaçados pela cegueira se espalhando, entendendo ser o filho chegando por fim.
A poeira remoinhava em volta do meu corpo parado ao lado dum monturo, me entrando pela respiração sem turvar as vistas. Via como se estivesse mais perto deles, quase rente àquele encontro. Convivi nos dias, dividindo o muito que retiravam do quase nada que tinham para repartir. Dica benzendo os dois homens restados em sua vida com a umidade de sua fé e os galhos de folhas secas, ouvindo do filho o melhor do mundo por onde andou.
Depois a partida. Eu via a cobra andar no mato e ouvia a insistência de Dica com o filho para que demorasse mais um pouco, inventando um agrado qualquer disposto num fundo de baú. Entendia o trajeto da cobra plena de veneno e o momento que ela cruzaria o caminho, e vi a sabedoria do olhar da rezadeira olhando o meu, livrando o filho.
Ela estava ali, na minha frente, dentro do papel-barro, nascendo das minhas mãos. Era diferente, atormentado e conformado, vivendo junto com aquelas pessoas, sentindo a alegria de Dica livrando o filho da picada da cobra para vê-lo seguir o Beato.
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Anabel entrava e saía colocando ordem ao meu redor e sua beleza em meus olhos. A agonia no meu corpo se contentava com o que idealizava sem tempo e nem idade. Precisava de algum tipo de lembrança e escrevia meu amor sem gestos. Doía e doía.
Dei de não deixá-la entrar e ficar sentindo sua presença do outro lado da porta tentando me ouvir chorar baixinho. Ela me pensando em um momento de muita emoção, e eu entendendo tudo o que desentendia. Mas, gostava de sabê-la ali.
Parecia uma força dolorida me conduzindo por onde já andara; sentia como se toda a emoção vivida com minha arte e meus amores tivesse sido reunida para um tempo sem tempo em que estava vivendo. Vagava minha lucidez e loucura como coisas límpidas, o amargo de indignação, que me pôs em tanta luta... era como se fosse o meu não-real. Iria fazer uma travessia no menos animal da minha tristeza e dor. Sabia, mas não sabia. Não sabia, mas sabia.
Dei de reler tudo o que juntara na vida sobre a loucura, eram dias e dias somente de leitura tentando entender a minha, como achar maneiras de lidar com aquilo; vidas reais nascendo da minha arte; eu me transmudando em participar de momentos delas, só conseguindo descrever aqui tudo o que via e vivia com eles, na vida deles, na forma de falar deles. Vidas nascendo, irreais, do meu sentimento; Anabel sendo amada e lembrada na consumição da poesia, me inventando poeta para possuí-la mulher. Era como se lesse páginas em branco, um vazio. Sentia como sendo lido.
Qualquer coisa que tentasse ordenar me colocava frente à ausência do tempo que me tomava. O papel-barro surgia na minha frente como se saísse pronto da minha emoção. A espátula colada como extensão do braço, abraçava as formas e a cor de terra punha seu perfume no meu corpo... Depois, o cheiro abafado me queimava as narinas, e lágrimas tentavam apagar minhas chamas. Era a loucura com sua lucidez me libertando.
Um cansaço me derrubava e o normal se punha de novo na casa, a presença dela me acalmava e me confundia mais, levando-me a recordar as mulheres que tive na vida. Lembrava e ia reinventando a sensação das minhas mãos acariciando Anabel; o calor do meu hálito queimando sua pele e minha língua dando-lhe frescor quando a beijava inteira sentindo seu gosto, vestindo-me de seu corpo, de seu cheiro. Lembrava muitas mulheres para poder inventar esse amor... pedia emprestado os melhores momentos que trouxe da vida para, de alguma forma, vivê-los com ela.
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À minha frente os contornos do rosto de Linoro. Por suas mãos, no Arraial dos Vaga-lumes, fui levado ao casebre; os dois animais, pele e osso, lambiam a terra e devoravam o próprio pêlo em movimentos mortiços. A criança restava no chão batido e apenas a mãe, de cócoras, com o choro infirmado pela fome, espantava as moscas varejeiras. Os outros da casa, junto à cacimba quase seca; esguridos lambiam o couro esticado nas varas em curtimento. Nem dor havia ali; pareciam padecer numa ausência de qualquer sentimento, de qualquer vontade; apenas pude sentir no grito da fome o íntimo da morte.
Vi, conduzidos por Antônio Conselheiro o que sobrou deles ser levado para o Belo Monte.
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Morria todos os dias na sensação de esvaecimento, a ventura me reinando e me condenando. O sangue vinha de longe, sujava a memória que não tinha e limpava a que me havia. Era a dor atilada confundindo a solidão de tantos me ajudando a chorar. Por dentro fitavam-se, olho no olho, cada um querendo predominação, cada um com sua opressão e soberba rosnando. O Diabo e Deus trancados na vida, se fartando nos embates e morrendo juntos, devagar.
Clamava por Anabel - me dê as horas da tua presença, sonha meu corpo, tira a dor dos meus restos, da minha angústia; chora comigo para sempre!
Sentia, verso e controverso se misturando à urna viva. Sepultava toda a loucura. Era o povo do Belo Monte quem levava o caixão.
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Na coberta, Leonila mexia o tacho fervendo a goma; Simeão de Caieira trazia amarrados de casca de angico e cuidava o fogo. Os filhos dividiam as tarefas - um carneando e coureando, outro tirando o relho e o mais velho carregando as tiras para o aloque - utilizavam os próprios fueiros da carroça nas forquilhas fincadas no terreiro, desde os tempos do avô, para fazer o jirau.
Na hora da goma pronta Leonila deu o sinal para a filha trazer as tiras de couro para dar fervura e fazer a sola. Na cozinha a mais nova fervia o chá de mangará para a tosse da mãe. Num canto, embaixo do banco, o menino cego de nascença abria as favas do feijoeiro... e assim a vida corria para eles no Belo Monte, quando apareci ali ferido de faca com um garrote de embira estancando o sangue.
Vim descendo a Favela por nenhum caminho, desprevenido de rumo, sem o de comer. Alapado durante o dia e cumprindo marcha na noite. Nenhuma pergunta fizeram, recebi uma taiada de carne e a farinha; contei do samango me furando e de como acabei com ele. Limparam a ferida banhando-a com manjericão e, com um lambedor que me deram, em pouco a livuzia foi embora e a leseira veio derreando.
Acordei aos cafus e no silêncio da casa vazia. Quis levantar, mas o corpo desobrigou no cansaço, ali fiquei com os pensamentos, sem saber direito onde estava e sem esforço para continuar fugindo. Ao longe, ouvia um canto de igreja; pensava que aquela família poderia estar me delatando, mas o que sentia era uma calma se pondo em volta.
Quando me pus de pé, Simeão de Caieira já estava lidando com o couro em cima do toco e as cintas amontoadas dum lado. Mal me viu, começou a furar e sem falar uma palavra, demonstrando apenas com jeitos, esperou ouvir minha história. Contei estar fugindo do mando da justiça por conta dum acerto de contas quando ainda era da polícia, no agreste pernambucano, sem enumerar direito o lugar, nem o porquê e nem como matei Alceu de Maria Mendonça.
Ouviu tudo enquanto furava o couro ritmando o bater do martelo na sovela como se a ferramenta traçasse um risco na tira.Com a voz calma levantou, entrou na casa de onde trouxe a vestimenta completa: chapéu de couro com o barbicacho de tira sem trançado, gibão, guarda, mombucabo, perneiras e matolão que me entregou, olhando minhas vestes arruinadas e rotas. Contou onde estávamos e pediu para me levar ao Conselheiro, lá no Santuário, antes de continuar fugindo.
Da conversa com meu Pai Conselheiro encontrei o caminho e meus temores. Com Simeão de Caieira, aprendi a lidar com um ofício; o traje que ganhei foi feito de irmandade e me abraça assim, na lida e na crença de sermos irmãos.
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