sexta-feira, 17 de abril de 2009

O POVO DO BELO MONTE XIII - Brás Teodoro

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Decerto eram sete as feras fechando o cerco antes que a desordem encontrasse circunstância. A paixão de ser, vingando o homem que nenhuma mortalha vestia, a implacável ferocidade que sabia mas não entendia a lealdade e a anomia entre os despossuídos. Sobrepunha heresias drenando consciências. Coisas de bestas-feras.

A fome não significava ao corpo. A morte não significava à alma. Nenhuma vontade havia de qualquer entendimento. O trabalho infamante da mentira passava longe da esperança e da dignidade.Eram leis vestindo a justiça e doando seu amargo.

As feições sustinham os horrores do mundo e atiçavam com os braços invisíveis o ar adusto que engolia a vida. As bestas andavam íntimas, me escurecendo o sangue com fezes e restos de suas bocas imundas. O homem morria dentro, e eu me sentia morrer nele. Meu corpo entorpecia padecendo em nós dois.

Nenhum Comandante de Rua era vivo na madrugada da guerra. A mansidão do Belo Monte tinha sido maculada pelo feroz dos homens. O mau cheiro punha entranhas no ar; matilhas comiam cadáveres e os urubus mal esperavam a aurora; gemidos atraíam os seres rastejantes da caatinga; um sombrio tingia a vontade dos vivos e deles nada havia por nascer.

Rezavam a valentia da vida e destemiam o jeito da morte. Estavam salvos enquanto apodreciam juntos. Assisti à morte fazer o rol das almas por entre os escombros, sorrindo dizer... fartura... fartura... e ensaiar anotações quando descobria alguém ainda vivo.

Ouvia os soldados gritarem: – num dêxa jagunço vivo... num dêxa ninguém vivo... é orde...! E a ferocidade se apossava de todos; o chão chiava como se quisesse se movimentar e engolir o combate; resvalo de balas, sangue esguichando pra todo lado, choro de mulheres e crianças sendo cortadas num talho só. Era a besta-fera solta e o mau cheiro de corpos insepultos apodrecendo dentro dos casebres, fazendo monturos pelas ruas; crianças avançando de zagaia em punho. Um delírio! Era o cego gritando no ouvido de cada um, mesmo dos mortos, sua cantiga de enxergar:

Recolham as armas
E salguem os punhais
Que a aurora seja perfumada
E a lua nasça nos quintais
E nas ruas corram proclamas
Desobrigando os leais
É chegada a hora
Da confiança nos beirais
Uma nova lei escrita
Nas canções dos desiguais
Deixando o amor nascer
Na verdade dos mortais
Recolham as armas
Selem os sinais

O rosto crispado, um misto de medo e soberba bem na minha frente, apontando a arma na minha direção, quase encostando a ponta no meu peito. Um disparo seco e a impureza de sua brabeza passando dentro do meu corpo. Entendia restar vivo e desentendia a velha mulher armada apenas com seu grito: “viva Antônio Conselheiro... viva o Belo Monte” - ser morta pelo balaço.

Por sobre minha cabeça um ricocheteio de projéteis nos contrafortes; os marrotes da caatinga ampliando o som dos tiros, de tambores e cornetas comandando o assalto em meio aos gritos dos feridos.

O desespero correndo entre mulheres e crianças; tempestade cuspindo fogo, abatendo sem distinguir os mais fracos. A dor se invejava e queria mais sujeição. Soltava seu rastro no mais cruel dos combates. Por entre a taipa pintada de tauá coberta de palha, um trucicó de pernas e braços de cadáveres apodrecendo; juntas cortadas, membros mutilados e faces com os olhos perfurados.

Varapaus inertes na mão dos mortos. Foices, ferrões e chuchos defendendo a igreja arruinada e a maior parte das ruas do Belo Monte. A defesa dos poucos sobreviventes era comandada pelos últimos da Santa Companhia. Ensandecidos pelo desamparo e crueldade, imolados pelo fogo entre escombros, gangrenas e cadáveres insepultos... um esparrame de vida engolida pela morte e o servilismo dos algozes.

Da Igreja Velha os disparos sustentavam a batalha inteira. A coragem assombrava o inimigo e os próprios agredidos. Feridos abandonados atirando do parco conhecimento no manuseio de munições e armas abandonadas.... um ar morrediço espalhando a mortalha do esquecimento.

***

A palha ardendo e ele atrás da tapera do Solobro esperando, já vestido de soldado, se misturar a eles. Passaram uns quatro, o último com uma bandeira na mão, quando o puxou para sangrar, sentiu aquela dor no rosto, nas costas e a escuridão adensando.

Zé do Tucano em delírio se misturava ao barulho das balas ricocheteando rente à cabeça; as palhas ardendo, o fogo, a fumaça, o rosto do soldado que ele arrastava para tomar o uniforme lhe vinha na mente. Ouvia as palavras de Severo na última reunião da Guarda Católica destacando quem ia furar o cerco e ajudar pela retaguarda, atacando o comando das tropas e avariando a matadeira.

Em lampejos de consciência, lembrou-se do Tucano, onde nasceu, o pai morto de morte matada; a mãe enterrando filho por filho, seca por seca até resolver seguir João Abade e o Beato. A casa de taipa, a beleza da mãe, a procissão de Uauá. Lembrava misturada com Caluta, a guerra... - agüenta Da Luz, delirava.

- Queria casar com Caluta... lembrava e desfalecia e voltava a lembrar: - “mãe... ela quer.. Dindinha ensina escrevê e contá, Caluta... ensino ocê... fazê breu... Dindinha... venera!” Misturava tudo. “Caluta... reza ...reza...reza... acode a igreja nova... Zé Preto... num morre Pichim, güenta home de Deus...“

Os benditos e ladainhas rezados por todos na igreja, perpassando no meio da luta e no seu torpor... o alvitre do santo pai Conselheiro..... “atira, atira Dalfredo...” a matadeira estrugindo... o cheiro de vela, a voz do santo Conselheiro pregando na igreja velha. No fio de memória lembrou Cabeção sangrando o soldado no barranco do Vaza-barris. “Rogai por nós, meu santo.”

“Os urubus.. na vila... vamo interrá .... Padre Santo... dona Duca... Mããããe...! mortos...tantos mortos... Quenzim, explodindo atrás do tabique, Caluta num chora, corre pra igreja... sem munição Severo... vai no punhal Severo... tira as mulhé daí, o fogo vem cumendo pela rua do Pedro Cacho... Tudo girando... acode meu santo! vamo arretirá as arma deles... amuntoa no beco.... minha mãe... insídia, um batalhão de soldados estugados, protege, meu pai Conselheiro...”

De longe, vi quando Zé do Tucano mexeu a perna e foi levado como se fosse um soldado.

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Vivíamos aprisionados, Anabel na sua juventude, eu na minha velhice. Nada podíamos fazer. Eu, só podia mover as horas pra trás na imaginação. Ela talvez pensasse ser tudo possível, a vida exuberava a sua volta. Confuso me sentia e misturava tudo. A cabeça doía, não sabia a serventia de tanta coisa que via ao meu redor. Como se saísse do meu corpo e assistisse à vida e à morte se invertendo em contundência. Não entendia os homens, o relógio, os cães, o que existi e nada do que sentia.

Uma intensidade vinha no meu peito, o corpo ensaiado na vida toda se punha em gozos e enlevo. Tinha Anabel e no instante seguinte essa plenitude virava dor. Os momentos inventados flagelavam-se. Misturado ao real, o imaginado sujeitava minha memória. Era a agonia da angústia gemendo alto.
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