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No
prumo da sombra, sentado no coxo, cigarro de palha atrás da orelha, chapéu
meia-aba, com parecença de novo. O bigode branco apontando com as pontas, o
igual do cabelo rodeando a calva. Roupa de algodão no alinho e a gemedeira
cuidada no sebo curado.
Idade...
não sabia, estava no mundo. Fala mansa e um querer saber de tudo mas sem
especular muito, só assuntando. A prosa meio enrolada não apontava para canto
nenhum, só descobriu que labutava de um tudo nos entremeios da lida.
- Lá vem o
enterro do Clemente...
Saía dos pensamentos, tirava o chapéu, alinhava os
poucos cabelos. De olhos baixos, assistia à passagem do cortejo já com a
porteira aberta. Nessa hora, o tempo parava. Até o ranger do carro de bois
passando ao longe, parava. O sanhaço calava seu canto em cima do moirão da
porteira. Respeitador. Vento soprava lento em acompanhamento. Fartura de gente.
Bom homem o Clemente.
Atrás do Climério,
ladeando, dona Ana seguia. Hora mais boa do vivente, hora da morte...
Dos velórios gostava não. Tempo de espera, se o
falecido faleceu. Gostava não. Só ladainha e o esconder do mal feito, porque só
defunto honrado demais foi, bondade demais teve. Por isso preferia os enterros.
Os seis carregando calados o peso do bem e do mal, sem carecer de balança,
pensava Joaquim. Dor dos parentes, amor derramando...Vizinhos, amigos e
conhecidos já não falam nem bem nem mal, tirando o Manco. Esse sim, parava de
falar não, era da natureza dele. Nessas horas que o silêncio é falado. Manco
não achava com quem conversar. Mas depois lá na venda:
- Clemente
era homem bom com os filhos, mas muito bruto com a criação. Vê ele ferroando
uma canga de boi dava dó.
Joaquim virava o gole da branquinha e já saía de
fininho. Gostava do depois também não. Preferência era o abrir da porteira, a
caminhada silenciosa, só o barulho dos passos no chão sovado da estrada e o
sopro do vento respeitador.
A gamela tomando forma no lavrado do facãozinho
corneta, bem amolado, e a voz lá de dentro:
- Joaquim,
Esperança rebentou a cerca de novo e tá na horta pisando tudo.
Joaquim acudia prontamente. Lá vinha ele puxando
Esperança pelo focinho. Mula Borborema, inquieta, no lado da cerca, corria
rente olhando a estrada, na dobra do morro.
- Que diacho
esse jeito dela, só pode ser uma coisa: É Baldino chegando. Falava sozinho
Joaquim
Quando a mulada do tropeiro
apontava no tope do morro, tinha que correr e abrir a porteira senão Borborema
levava a cerca e tudo. Aberta a porteira, o galope era compassado e garboso até
encontrar a tropa; emparelhava com um mulo velho de nome Ojero, que ninguém
acreditava na idade que tinha. Perguntado Baldino pela idade do mulo, ele só
dava risada até mudar de assunto.
A reação de Borborema era o primeiro sinal de festa no
lugar. O cometa de Baldino era o mais festejado por aquelas bandas. Farturento
no proseio, dava as notícias como coisa de assunto seu, trazia recado, carta,
receita de quitanda do mesmo jeito que as notícias da política. Trazia o encomendado
e também o do carecer daquela gente. Agrado não escasseava a ninguém.
Para Joaquim, presente melhor não havia, o amigo
chegando. Para Baldino, a melhor parte de sua lida andeja, o pouso do Braço,
local do arrancho, a prosa do amigo. Um lugar no mundo de andar dum tropeiro
que se pudesse considerar sua casa, seria ali. Sozinho no mundo, se pudesse
escolher um parente, seria Joaquim. Se
cobiçasse uma mula nova, seria Borborema.
Não havia no sertão todo céu mais lindo, estrelas mais
recamadas. E tinha ainda a formosura e as encomendas de dona Duvigis, cobiça
recolhida no corpo e cobre garantido na guaiaca.
Alegria de Joaquim, a
chegada de Baldino. Sentados no rabo do fogão, cada um no seu cigarro de palha.
- Baldino,
tô pricisano de ir no Ritiro, aproveito do amigo a companhia se for fazê
passage pur lá.
- Mais que
eu, quem vai gostá é Ojero e Borborema, quem sabe num agrego ela na tropa dessa
veiz. Comentou rindo para Joaquim.
Ainda sem raiar o dia, a mulada já se embrenhava pela
Meia-Légua. À medida que o tempo engolia
o caminho, Joaquim e Baldino aprofundavam a conversa, revelando um ao outro
suas histórias, coisa que nunca haviam feito antes, apesar da amizade de tantos
anos.
- Nasci em terra distante que nem alembro. Vim
novo, cum primo Ambrósio, que já tinha posse no Braço. Fui sendo criado
ali na labuta da terra e do gado, cum ele e os
irmão. No tempo, cada um foi se apartando, criando famia, até primo
Ambrósio cabou na cidade.
Silêncio.
- Casei não
Baldino, passei perto dessa alegria. Ela era muito formosa, morreu dos peito,
muito nova. O casório tava de data marcada e tudo, morreu nos meus braço, cum
minha jura de querê outra não. Dia do
enterro foi dia do casamento. Mais foi triste não, foi só silencioso. Daí que
veio o gostá de acumpanhá os enterro. Silêncio demais, hora de ficá só com os
pur dentro, é respeitoso com a sina. Vida miúda, né Baldino?
Baldino emocionado:
- Nos miúdo
que tá os graúdo, Joaquim.
Silêncio.
- Sou da beira do Veríssimo, Joaquim, de frente de
Minas. Herdei estrada de pai tropeiro, criado sem eira. O lugar era garimpo de
diamante, a mãe ficou enterrada lá, nem alembro dela. Peguei gosto pela lida,
num tem lugar nessa chapada que num negociei. “Óia o Jerômo Minino chegando
...” Jerômo era meu pai e o minino era eu. Jerômo, meu pai, descansou velho já
variano, mas nos caminho. Foi numa noite escura, no pouso dos Conjeto. Pensei
quietá por lá, vendi a mulada com as arriatas e a mercadoria, fiquei só com
Ojero. Agreguei nos Conjeto, mais sentia falta dos caminhos e do ofício. Foi
quando apareceu os ciganos e conheci Diolina, que me trouxe p’ra estrada e me
fez passá o dos pior. Dizia que era de todos os home que quisesse. Eu tava
enfeitiçado, Joaquim. Tulerei aquilo mais de ano e um dia não pude agüentá
mais, cacei meu rumo. Inda cum fornecimento, recomecei minha lida. Compromisso
de ofício que honro até hoje. E Diolina nem prá lembrá serve. Ocê tem razão, é
miúda sim, Joaquim.
Silêncio.
A hora do acontecer, acontece.
Na passada, no vau do Lajeado, Borborema escorrega as
patas traseiras. Joaquim cai de pescoço na pedra. Baldino desmonta correndo
para socorrer o amigo, gritando seu nome, mas Joaquim está morto.
Com a noite engolindo o
dia, Baldino desponta na Meia Légua. Joaquim atravessado na sela.
No pouso, ninguém, curral vazio. Baldino chamava pelo
vaqueiro Legário, por sua mulher, nem viva alma.
Quando já acabava de arrumar o defunto em cima da mesa
da cozinha, Baldino ouviu, primeiro, o barulho de cachorro, depois o menino
Tobias, com a lamparina na mão, indo pelo caminho.
- Minino Tobias, onde tá o povo daqui?
O estalo fez o chão tremer. A cerca do pastinho enrolou
os arames em fogo. O menino que ia passando nem ouviu os gritos de Baldino.
Desandou numa carreira danada.
Céu derreteu pesado, enchendo o Vai Vem em minutos. Por
toda a noite água caiu. Baldino ali, sozinho, com Joaquim.
No amanhecer do dia o corpo já apodrecia; sem aparecer
viva alma.
Da janela da cozinha, ele avista o morro da Catarina e
a ponte do Vai Vem encoberta pelas águas.
Baldino avalia que ninguém pode passar e, devagar como
se rezasse, embrulha o corpo de Joaquim com os baixeiros. Amarra com um laço,
enquanto diz baixinho:
- Caixão teve... caixão teve...
Baldino atrela Borborema e Ojero na carroça, onde põe o
corpo de Joaquim e segue pelo caminho do cemitério.
A porteira
aberta, os sanhaços cantando por todo o caminho na barulheira da manhã nascendo
estiada.
Baldino no dentro do pensamento:
-
É miúda sim, Joaquim, é miúda sim...
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