quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Joaquim da porteira - MQ


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No prumo da sombra, sentado no coxo, cigarro de palha atrás da orelha, chapéu meia-aba, com parecença de novo. O bigode branco apontando com as pontas, o igual do cabelo rodeando a calva. Roupa de algodão no alinho e a gemedeira cuidada no sebo curado.

Idade... não sabia, estava no mundo. Fala mansa e um querer saber de tudo mas sem especular muito, só assuntando. A prosa meio enrolada não apontava para canto nenhum, só descobriu que labutava de um tudo nos entremeios da lida.

 

- Lá vem o enterro do Clemente...

 

Saía dos pensamentos, tirava o chapéu, alinhava os poucos cabelos. De olhos baixos, assistia à passagem do cortejo já com a porteira aberta. Nessa hora, o tempo parava. Até o ranger do carro de bois passando ao longe, parava. O sanhaço calava seu canto em cima do moirão da porteira. Respeitador. Vento soprava lento em acompanhamento. Fartura de gente. Bom homem o Clemente.

Atrás do Climério, ladeando, dona Ana seguia. Hora mais boa do vivente, hora da morte...

Dos velórios gostava não. Tempo de espera, se o falecido faleceu. Gostava não. Só ladainha e o esconder do mal feito, porque só defunto honrado demais foi, bondade demais teve. Por isso preferia os enterros. Os seis carregando calados o peso do bem e do mal, sem carecer de balança, pensava Joaquim. Dor dos parentes, amor derramando...Vizinhos, amigos e conhecidos já não falam nem bem nem mal, tirando o Manco. Esse sim, parava de falar não, era da natureza dele. Nessas horas que o silêncio é falado. Manco não achava com quem conversar. Mas depois lá na venda:

 

- Clemente era homem bom com os filhos, mas muito bruto com a criação. Vê ele ferroando uma canga  de boi dava dó.

 

Joaquim virava o gole da branquinha e já saía de fininho. Gostava do depois também não. Preferência era o abrir da porteira, a caminhada silenciosa, só o barulho dos passos no chão sovado da estrada e o sopro do vento respeitador.

A gamela tomando forma no lavrado do facãozinho corneta, bem amolado, e a voz lá de dentro:

 

- Joaquim, Esperança rebentou a cerca de novo e tá na horta pisando tudo.

 

Joaquim acudia prontamente. Lá vinha ele puxando Esperança pelo focinho. Mula Borborema, inquieta, no lado da cerca, corria rente olhando a estrada, na dobra do morro.

 

- Que diacho esse jeito dela, só pode ser uma coisa: É Baldino chegando. Falava sozinho Joaquim

 

Quando a mulada do tropeiro apontava no tope do morro, tinha que correr e abrir a porteira senão Borborema levava a cerca e tudo. Aberta a porteira, o galope era compassado e garboso até encontrar a tropa; emparelhava com um mulo velho de nome Ojero, que ninguém acreditava na idade que tinha. Perguntado Baldino pela idade do mulo, ele só dava risada até mudar de assunto.

A reação de Borborema era o primeiro sinal de festa no lugar. O cometa de Baldino era o mais festejado por aquelas bandas. Farturento no proseio, dava as notícias como coisa de assunto seu, trazia recado, carta, receita de quitanda do mesmo jeito que as notícias da política. Trazia o encomendado e também o do carecer daquela gente. Agrado não escasseava a ninguém.

Para Joaquim, presente melhor não havia, o amigo chegando. Para Baldino, a melhor parte de sua lida andeja, o pouso do Braço, local do arrancho, a prosa do amigo. Um lugar no mundo de andar dum tropeiro que se pudesse considerar sua casa, seria ali. Sozinho no mundo, se pudesse escolher um parente, seria Joaquim.  Se cobiçasse uma mula nova, seria Borborema.

Não havia no sertão todo céu mais lindo, estrelas mais recamadas. E tinha ainda a formosura e as encomendas de dona Duvigis, cobiça recolhida no corpo e cobre garantido na guaiaca.

Alegria de Joaquim, a chegada de Baldino. Sentados no rabo do fogão, cada um no seu cigarro de palha.

 

- Baldino, tô pricisano de ir no Ritiro, aproveito do amigo a companhia se for fazê passage pur lá.

 

- Mais que eu, quem vai gostá é Ojero e Borborema, quem sabe num agrego ela na tropa dessa veiz. Comentou rindo para Joaquim.

 

Ainda sem raiar o dia, a mulada já se embrenhava pela Meia-Légua. À medida  que o tempo engolia o caminho, Joaquim e Baldino aprofundavam a conversa, revelando um ao outro suas histórias, coisa que nunca haviam feito antes, apesar da amizade de tantos anos.

 

- Nasci em terra distante que nem alembro. Vim novo,  cum primo Ambrósio,  que já tinha posse no Braço. Fui sendo criado ali na labuta da terra e do gado, cum ele e os  irmão. No tempo, cada um foi se apartando, criando famia, até primo Ambrósio cabou na cidade.

 

Silêncio.

 

- Casei não Baldino, passei perto dessa alegria. Ela era muito formosa, morreu dos peito, muito nova. O casório tava de data marcada e tudo, morreu nos meus braço, cum minha  jura de querê outra não. Dia do enterro foi dia do casamento. Mais foi triste não, foi só silencioso. Daí que veio o gostá de acumpanhá os enterro. Silêncio demais, hora de ficá só com os pur dentro, é respeitoso com a sina. Vida miúda, né Baldino?

 

Baldino emocionado:

 

- Nos miúdo que tá os graúdo, Joaquim.

 

Silêncio.

 

- Sou da beira do Veríssimo, Joaquim, de frente de Minas. Herdei estrada de pai tropeiro, criado sem eira. O lugar era garimpo de diamante, a mãe ficou enterrada lá, nem alembro dela. Peguei gosto pela lida, num tem lugar nessa chapada que num negociei. “Óia o Jerômo Minino chegando ...” Jerômo era meu pai e o minino era eu. Jerômo, meu pai, descansou velho já variano, mas nos caminho. Foi numa noite escura, no pouso dos Conjeto. Pensei quietá por lá, vendi a mulada com as arriatas e a mercadoria, fiquei só com Ojero. Agreguei nos Conjeto, mais sentia falta dos caminhos e do ofício. Foi quando apareceu os ciganos e conheci Diolina, que me trouxe p’ra estrada e me fez passá o dos pior. Dizia que era de todos os home que quisesse. Eu tava enfeitiçado, Joaquim. Tulerei aquilo mais de ano e um dia não pude agüentá mais, cacei meu rumo. Inda cum fornecimento, recomecei minha lida. Compromisso de ofício que honro até hoje. E Diolina nem prá lembrá serve. Ocê tem razão, é miúda sim, Joaquim.

 

Silêncio.

 

A hora do acontecer, acontece.

 

Na passada, no vau do Lajeado, Borborema escorrega as patas traseiras. Joaquim cai de pescoço na pedra. Baldino desmonta correndo para socorrer o amigo, gritando seu nome, mas Joaquim está morto.

Com a noite engolindo o dia, Baldino desponta na Meia Légua. Joaquim atravessado na sela.

No pouso, ninguém, curral vazio. Baldino chamava pelo vaqueiro Legário, por sua mulher, nem viva alma.

Quando já acabava de arrumar o defunto em cima da mesa da cozinha, Baldino ouviu, primeiro, o barulho de cachorro, depois o menino Tobias, com a lamparina na mão, indo pelo caminho.

 

- Minino Tobias, onde tá o povo daqui?

 

O estalo fez o chão tremer. A cerca do pastinho enrolou os arames em fogo. O menino que ia passando nem ouviu os gritos de Baldino. Desandou numa carreira danada.

Céu derreteu pesado, enchendo o Vai Vem em minutos. Por toda a noite água caiu. Baldino ali, sozinho, com Joaquim.

No amanhecer do dia o corpo já apodrecia; sem aparecer viva alma.

Da janela da cozinha, ele avista o morro da Catarina e a ponte do Vai Vem encoberta pelas águas.

Baldino avalia que ninguém pode passar e, devagar como se rezasse, embrulha o corpo de Joaquim com os baixeiros. Amarra com um laço, enquanto diz baixinho:

 

- Caixão teve... caixão teve...

 

Baldino atrela Borborema e Ojero na carroça, onde põe o corpo de Joaquim e segue pelo caminho do cemitério.

A porteira aberta, os sanhaços cantando por todo o caminho na barulheira da manhã nascendo estiada.

Baldino no dentro do pensamento:

 

- É miúda sim, Joaquim, é miúda sim...

 

 

 

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