Monjolo cascava o arroz,
Zefinha catava feijão. Na roça, Dito Véio esfriava os calos da mão. O cabo
apontado para o céu, encostado no peito, e o corte da enxada virado para
dentro, onde ele limpava a terra do solado da butina.
A roça ficava de jeito que, do seu eito, ele avistava a
janela da cozinha, enxergando Zefinha de longe. O pensamento distinguia ela,
mais longe ainda, na formação das roças, na puxada do rego d’água, na doença do
pai, e depois da mãe. Ia lembrando da menina nova sempre ao lado dele, pedindo
garupa e ajudando tirar leite no curral. Lembrava até do dia que ela nasceu. E
agora, avistando Zefinha na janela, catando o feijão, remoía por dentro o
desassossego de ver ela tão moça, bonita e sozinha no mundo, mercê dos espertos.
Ele foi o único que ficou, mesmo sem a paga, no esquecer dos anos.
Distraído nos pensamentos só viu quando já estava
rodeado daqueles cavaleiros.
- Quem é seu patrão, nego véio?
Respondeu meio assustado levando eles até a casa onde Zefinha,
já sem avental, esperava na porta.
- Que deseja, seu moço? – perguntou Zefinha.
- Tamo
procurano dois preso fugido. Um tá atirado na perna, o outro é preto igual esse
véio, nóis num sabe quantos tiro pegô. O
rumo deles era esse, a moça viu gente estranha passá?
- Passou ninguém não.
Mal deram água aos cavalos e ganharam estrada.
- Dito, que será que os dois fizeram?
- Sabe lá minha minina, pelo tamanho da tropa, coisa
muito ruim.
No decorrer de dois dias, Zefinha começou a dar falta
dos indez que ela deixava nos ninhos das galinhas poedeiras.
- Dito, as galinhas num tão pono, que será que foi?
- Sei não, minha minina, será algum gambá? Vou pôr reparo.
Passou Dito Véio duas noites seguidas vigiando e nada
viu. As galinhas não botavam mais. Aí começaram a sumir coisas: primeiro, foi a
colcha de algodão da estima de Zefinha, depois uma panela de barro, um pedaço
de toucinho do varal. Outro dia foi o facão do Dito.
Os dois viviam assustados o dia inteiro, os afazeres,
às vezes, entretinha. Mas logo vinha aquele desconfio de tudo que mexia no
redor da casa.
Estando Dito Véio na limpa da roça, com o sentido posto
no em roda, viu a sombra no lado do paiol. Foi lá que pegou os dois, nem
precisou levantar a arma, estavam caídos no chão, sujos, fedendo e magros de
dar dó. O que estava atirado ardia em febre, o lugar do tiro inchado e cheio de
pus. O outro não dava conta de carregar o companheiro, ia deixar ele ali e seguir
só.
Zefinha atrás de Dito já foi dando as ordens.
- Vamos levá eles prá dentro.
Dito carregou o atirado e Zefinha deu sustento no apoio
do outro, que mal dava conta de andar. Deitou o são, deu água, comida, enquanto
Dito banhou, de bacia a perna do ferido já estendido no catre, delirando.
Zefinha apanhou umas folhas de fumo no terreiro e preparou um emplastro de
urina com fumo e pôs na ferida; deu chá de mamacadela com palha de alho, o
homem foi sossegando devagar até dormir sereno. Seu companheiro não disse uma
palavra, caiu logo no sono. Ela ficou a noite toda na cabeceira do ferido
vigiando a febre dele, trocando o emplastro. Essa labuta durou dois dias. Enquanto
ela cuidava, ia ouvindo a história da boca do de nome Zaqueu.
- Trabaio
p’ro seu Cristino, ele é da pulítica lá da Bahia; prendero nóis ano passado,
nóis num matô nem robô não. Seu Cristino defendia o povo das glebas do Arreal
da Barrera, terra que Coronel Ladera pois cobro cum arrumação de papel e
pulítica. Prendero nóis muitos mêis, mais em sala livre, enquanto o pai do seu
Cristino era vivo. Depois foi na grade mesmo. Nóis iscapô pur ajuda do cabo
Olino que veio fugino tamém, mais levou um tiro derradeiro na persiguição e
ficou na barranca do rio. Eu mais seu Cristino, atirado na perna, garramo num
toco e descemo quase dois dia intero até a barra desse córgo e vimo dá aqui.
Na semana seguinte, Cristino já dava demonstração de
cura, já passava um tempo acordado, mas não dizia nada, ainda fraco, ganhando
sustento nas canjas e nas beberagem que Zefinha fazia. Zaqueu já ia limpar roça
com Dito. Da janela ela ficava vendo os dois no capino, sempre conversando.
- Minha minina, qué qui nóis vamo fazê cum os dois.
- Sei não. O Cristino inda tá muito fraco. Mas se
aparece a tropa do governo nóis esconde eles na dispensa.
- Eles num vão vim mais, vão só cercá na barranca do
rio pr’eles num vortá.
O tempo passando e um dia Zefinha que cochilava ao lado
do catre de Cristino, tigela na mão, acordou com as dele procurando as suas.
Ele sorriu e beijou suas mãos agradecido.
Conversaram o dia inteiro, ele pôs mais detalhes na
história, contou da sua terra, da sua gente, da morte do pai, da sua sina,
agora de sozinho no mundo.
No começo, andava escorando numa vara de tambu, que
Dito escolheu no mato para ele. Depois já andava pela casa, encostando aqui e
ali. Nesse tempo, ajudava Zefinha nos serviços da casa. E por fim já curado.
- Tá chegando o tempo de ir.
- Por que não fica, trabalho é o que mais tem. A terra
é grande, eu mais Dito carecemo de ajuda.
- Num posso abandoná minha gente, tenho que voltá.
- Traz eles, o Zaqueu falô deles p’ro Dito. Aqui tem
terra prá todo mundo, nóis ajuda no dismato. Agrega os que for possível.
- Minha minina tá certa, seu Cristino. Sou seu positivo
prá buscá eles; Baldino tá perto de passá, sigo cum ele até a barranca do rio,
de lá o senhor dá orientação.
Naquela mesma noite, Cristino e Zefinha dormiram a
primeira vez juntos. Seis meses depois começaram a chegar os baianos no Sertão
do São Marcos.
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