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A água do Sapé vestia a pedra que fazia, igual à ponte,
a ligação dos dois barrancos. Uma casca fina d’água brilhava no sol da manhã;
era o Vau do Lajeado, passagem obrigatória de toda tropa que cruzava a
Meia-Légua, lugar também de arrancho dos viajantes e de toda boiada que ia rumo
ao curtume. Até rancho feito por não se sabe quem tinha sido erguido, no uso
dos passantes.
Foi ali, naquele rancho, na beira do caminho, que a
conheci, ainda menina, agarrada ao pai. Aonde ele ia, ela estava atrás. Magra,
olhos grandes, olhando a gente meio no espanto, meio no curioso. Onde já se viu
levar uma criança daquela idade numa comitiva pelo sertão afora. Ainda mais nas
águas, com as estradas que era lama só. Sem demonstrar especula, à noitinha,
garrei a puxar prosa com o ponteiro da boiada e soube que o vaqueiro tinha
perdido a mulher fazia pouco, e não tinha onde deixar a menina. Em ia levando
ela junto para deixar com a madrinha no Vai Vem.
Os caminhos foram cada um para o seu governo, eu lá ia,
eles voltavam, no rumo do curtume.
Varou ano, varou dois, nunca mais vi nem o vaqueiro nem
a menina, mas, toda vez que parava no rancho do Lajeado, me vinha no lembrar
aquele olhar e a figura dela acompanhando o pai até no tomar água de cócoras,
na lâmina d’água da pedra do Lajeado.
E foram varando anos, criei situação no negócio com
fumo e, um dia, entregando a mercadoria na venda do Manco, dei de cara com a
menina, agora uma moça feita e das mais formosas. Foi de relance o olhar, mas
no tempo de enxergar a boniteza e pôr quentura no corpo.
O Manco pois reparo e, com aquele seu jeito de
conversar demais, já foi logo contando que era enrabichada com o Custódio.
Quando ele ficou viúvo, no mesmo dia, a afilhada já estava na cama dele.
A pitada de tristeza bateu dentro, não dei mais prosa.
Recebi os cobres e ganhei estrada. No Lajeado fiz pouso e comecei a pensar
nela, nem o nome sabia. Juntava no pensamento o olhar da menina com o corpo da
moça e ia formando bem-querença.
Era parar no rancho do Lajeado que me lembrava dela. E
pensava em Custódio, logo com a
afilhada, ainda nova daquele jeito. Um dia, de pouso, quando estava nesse
pensamento, escutei o barulho da tropa de Baldino, junto com o barulho das
mulas no vau, senti a catinga de couro molhado, única carga que ele levava.
- Boa noite, seu Baldino.
- Noite, o céu vai derretê seu Zaqueu.
Ajudei o descarrego e a escovação das mulas enquanto
proseava com o velho Baldino; proseio de um tudo, até que não agüentei e
perguntei se ele sabia do pai da menina, afilhada de Custódio.
- Sei quem é a minina e conheci o pai dela. Ele morreu
perto do Cobertão, começô a tussi e escarrá sangue, apartô da comitiva na casa
do Tó e lá ficô até o derradero. I’eu que levei ela e a nutiça p’ro padrinho.
Nunca mais vi.
Amanheceu o dia encoberto na ameaça de chuva forte
daquelas de lamber a beirada dos córregos. Nem eu nem seu Baldino arriscamos
seguir viagem, ficamos de conversa, esquentando fogo.
- E como anda o negoceio cum fumo, seu Zaqueu?
- Dá para o sustento, mais a trabalheira é muita. Tirando
o povo do Cobertão, que sabe fazer uma cura bem feita, o resto descuida na
cocha e, quando negoceio, pelo menos uma vira tenho que fazer.
- Me lembrei do seu pai, ele falava mesma coisa. Foi pur isso que larguei a
labuta cum fumo.
- Seu Baldino, como é que o senhor agüenta a catinga do
couro estrada a fora, mês a fora?
- O custume agüenta, seu Zaqueu.
A chuva começou, fina e intermitente, quando ouvimos
gente chegar. Era Custódio e a afilhada. A moça, antes de apear, jogou aquele
olhar bem no dentro do meu. Apearam. Ela acomodou em volta do fogo, estava de
barriga, só vimos quando vestiu a capa seca que seu Baldino cedeu.
Custódio asseverando autoridade com o olhar, pondo
reparo nos cuidados que tínhamos, gastou pouco falar.
Ela começou a tossir, seu Baldino saiu debaixo de chuva
mesmo e voltou com umas raízes; fez uma infusão misturando com salamargo e dava
de beber, hora em hora. No redor, foi escurecendo, a chuva engrossando. Foi
assim o dia todo mais a noite, riscada no céu de raio e trovão. Parecia que
estavam desarrumando o mundo.
Eu mais seu Baldino passamos o tempo todo no lado da
moça, ardendo de febre, tossindo comprido, e pelos cálculos já perto de parir.
Do lado, o Custódio roncando que parecia um porco, dava vontade de sangrar ele.
Já no meio da manhã, a chuva foi raleando e o Lajeado
foi enchendo mais ainda, não dava para passar de jeito nenhum. Custódio
perguntou.
- E agora, seu Baldino, como nóis vamo passá?
- Agora é isperá o Braço enguli essa cheia. Em dois
dia, se pará de chuvê.
A moça ardia em febre, a infusão não adiantava. O
Custódio nada valia, nem perto dela chegava, só ficava vendo a água do Sapé subir,
eu olhava para ele entojado.
Não mexia uma palha, só reclamava da catinga do couro
amontoado, ocupando metade do rancho. Seu Baldino tinha razão, com o tempo
catinga vira cheiro.
A moça sem força para nada, se sujava toda; assear era
custoso; Custódio, na primeira vez, ainda fez sozinho, mas depois era eu e seu
Baldino a bulir nas partes dela para limpar; no meio daquela lama toda, rancho
com cheiro de couro, sem lenha seca; o pouco querosene que tinha, já quase no
fim. Ainda Custódio pondo reparo. Era custoso.
No quinto dia, o sol apareceu e a febre não desapareceu.
Com uma semana, o vau deu passagem.
- O que o senhor vai fazê? Perguntou seu Baldino a Custódio.
- Vamos segui viage de vorta.
- A moça num agüenta, entrei no meio da conversa.
Custódio demonstrou não gostar da minha emenda. E nessa
hora a criança achou de nascer aparada por seu Baldino. Não tinha ali nenhum
pano, nenhum graveto para acender um fogo; a criança chorando, a moça fraca demais
foi minguando até morrer nos meus braços. Do lado, Custódio teve reação pouca,
nem perto dela chegou e nem pegar a filha nascida quis. Não agüentei nessa
hora.
- Seu filho da égua! Já encostando a faca na goela
dele, perdendo o respeito de tudo. Seu Baldino que nem sabia da amigação
exigiu.
- Ponha tento, seu Zaqueu.
Acalmei e; ali na frente da moça morta, com a criança
chorando, o cheiro de couro, a chuva voltando a cair forte, o safado do
Custódio com a pose perdida, contei tudo a seu Baldino.
- E agora, seu Custódio, o que o senhor vai fazê com a
criança?
- Num oriento as idéia, seu Baldino.
Outra vez entrei na conversa.
- Eu fico com ela para criar. Seu filho duma égua.
Seu Baldino não falou nada. Custódio também não. E no
calar consentiu. Arreou o cavalo e voltou ao Vai Vem.
Ficamos com o corpo para enterrar. Isso feito, eu mais
seu Baldino ganhamos estrada, passando no vau com a água pelo joelho. Dele
ficou a promessa de batizar a menina que levei.
E lá se vão dezessete anos. Os olhos e o corpo são da
mãe, mas a menina é filha legítima, parida do amor de dois olhares.
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