segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Duas sombras - MQ


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O que aconteceu? Não posso mexer, não enxergo nada mas distingo tudo. Tudo passa ao redor, desencontrado,  passa enviesado, sem ordem, coisas da meninice invadindo meu olhar que vê sem os olhos, que vê para trás. A maldade feita com a mulher que pedia esmola, ninguém viu mas agora eu via. Parecia mais velho olhando, mas era eu menino, fazendo e ao mesmo tempo de longe olhando.

Tentei passar as mãos nos olhos mas as mãos não mexiam, o corpo não mexia, não tinha cheiro ao redor mas eu sentia o cheiro do sangue do escrivão esfaqueado, perto do cruzeiro, que eu socorri. Ele chorava de dor e o sangue cheirava quente e entrava pelo meu nariz. Enxergava o cheiro entrando, sentia entrar, via, de um canto, tudo isso acontecer, sentindo eu mesmo sentir.

Tudo dando volta, a cigana se limpando para mim, ali bem na minha frente, os seios pulando fora do corpete e o barulho da água na bacia de asseio me chamando, eu querendo ela, eu me vendo querer, olhando o marido querer depois de mim.

Calunga sangrando no peito, o esguicho matando ele devagar, ali na minha frente, briga de jogo, eu querendo que ele morresse para ficar com tudo do nosso à-meia, apiedei, socorri depressa, ficou só em mim a maldade, mas dali eu via e sentia o peso daquele guardado.

O que está acontecendo? O tempo passado está repetindo?. Me acode, me vira, mexe comigo.

Padre, fui eu não, fui ruim não. Via tudo, sentia tudo na minha frente. O padre apontando com o excomungo antes do veneno fazer efeito. Foi ela, meu Deus, foi ela que mandou eu comprar o veneno e quis deitar comigo. Tudo aparecia na minha frente como se tivesse acontecendo naquela  hora. Era tão novo, nem barba tinha, mas o fogo dela já bulia comigo e no em volta, também, pergunta Sileno, Barbuim ou para o sem vergonha do Damão. Via tudo, fui eu não, até o Alarico falou mal, como se ele não quisesse daquele fogo, a quentura. Não adiantou fugir, mudar de serviço, de idéia. Não adiantou freqüentar a igreja, congregar aos marianos. Adiantou, Deus? Eu via onde ela foi espalhar o fogo depois da viuvez, foi na delegacia, no juiz, na sacristia. Vejo com meus olhos cegos, seu padre. Estava sentado na cômoda vendo a labareda, vendo o diabo ajudá-la a levantar sua batina pegando fogo, vendo sem ver os arranjos para me condenar.

Na cela eu sonhava, sonhava em escapar, sair no mundo, para o norte. Sonhava virar cigano.

Quietura esta, não consigo me mexer, enxergar e não escuto nada, só as lembranças vindo. Eu ajudando Quitéria, aleijada com vida só pela boca, ensinando seu filho Zezinho, por via de oficio, a viver. Eu passando a perna no seu Baldino com duas mulas velhas, dando peso de pedra na saca de feijão e seu Baldino consentindo, calado na bondade dele.

Por tudo isso, lembranças do bem e do mal, desconfiei que tinha morrido. Enquanto me velavam, eu ia aparecendo no tempo pelo qual passei e ia formando confusão. Nessa hora entendi os dois vultos que apareceram ao meu lado, ali, naquela imobilidade de morto mas vagando, vagando para trás... os dois puxando, ora um; ora outro, para cada lado do tempo. Nesse momento, pude perceber a mão de um no que fizera de bom na vida e a mão do outro nas minhas mazelas, chegara a hora. Era o anjo e o demônio  me tomando, com firmeza, pelas mãos para seguir meu próprio enterro.

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