Alforriada por destino de testamento, Tomásia, caneluda, beiços
desmaiados, olhar comprido, vestindo corselete e cabeção, com os cabelos
ornados na beleza e cheiro de ervas, margeava o Piri com a canada de óleo de
copaíba.
Primeira vez, saía mercadejando
para si mesma, sumariava beleza, ao mesmo tempo que não sabia o que fazer dali
em diante, sentia falta de Nhá Belizária, das normas da casa onde tinha de
tudo.
Olhava o guarda-escravos
na feira, gente pronta para troca, compra e aluguel; os fugidos, cujos donos
não apareciam, oferecidos a menos preço. Não sabia o que fazer com sua
liberdade, serviço não havia para os forros, ainda mais para uma mulher sem
beleza que ninguém cobiçava ter, sabia fazer o da casa e cozinha, nunca fora alugada
para serviço nenhum. Sentia-se perdida naquela liberdade.
O benefício pegou Tomásia
de surpresa, maior ainda foi a de receber do resto da família roupa nova, uns
objetos de Nhá Belizária e uma canada de óleo pra vender. A família não deu
intenção de ficar com seu serviço na paga de quase nada, tinham muitos escravos
e com a morte da matriarca não havia muito o que fazer.
Saiu do
casarão uns dias depois do enterro; em lágrimas, foi se juntar aos mamelucos
que viviam embrenhados no mato próximo da Pedreira do Guamá, na cabana de
Nhanduca, seu conhecido desde criança - era filho de serviçais que passaram a
vida quase toda servindo sua finada ama.
Tomásia
perambulou muitos dias até vender o óleo de copaíba, nessa lida pelas ruas,
ouvia coisas que não entendia, via o que tinha restado da cidade e o movimento
de fardados em tudo que é lugar. Renovamento, recrutamento, perseguições, corpo
de voluntários... iam ter serviço? Exibia a carta de alforria, esperava ser
chamada todos os dias para o calçamento ou qualquer outro trabalho, procurando,
batendo de casa em casa, só ouvia descaso.
Duca,
como era mais conhecido, lidava com carvão, muitas cafucas produziam dia e
noite, como os de sua raça, falava pouco, enquanto ia de cova em cova fazendo o
abafo, ouvia tudo que Tomásia contava.
Preguiçando
na rede entreliçada de tucum e caroá, sem demonstrar nenhum medo, apesar das
perseguições aos mais graduados. Medo? Ele não. Lutou no segundo ataque e,
assim mesmo, só carregando cartuchame junto com o irmão, passado numa descarga
no alçapão do Arsenal, quando atreveu mais, na euforia da vitória.
Tomásia
conversava sem parar, deixando o mestiço meio zonzo, falava da boa vida que
tinha, que não queria ser mais uma curumba cruzando caminho com assassinos,
cortadores de orelhas, toda hora tendo que mostrar a carta de alforria. Fazia
munganga para a indiferença de Duca. Arrumava os cabelos, jeitosa, provocante e
oferecida. Ele nem prestava atenção, era fidúcia à-toa.
O
palhiço quase veio abaixo com o barulho da tropa espingardeando tudo, Duca
sentiu duas picadas e a vida sumindo. Embaçado pela névoa nos olhos ainda viu,
antes de restar; Tomásia, esbagachada,
segurando sua carta de manumissão,
passando de mão em mão, seviciada numa
dança macabra.
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