quinta-feira, 9 de julho de 2015

Cumará e Nheiú - MQ


 
Remava bem, fosse de proeiro ou na remadura. Saber vinha dos tempos dos antigos, passando o jeito de olhar as maretas, desvendando marés, rasuras e funduras, passando o conhecimento das águas e do enrediço de furos e igapós.

Cumará ia com Nheiú. Na empanada, os destribados levavam farinha, cutite, muitas varas de capim flecha, e uma enrodilhada trança de caroá.

Remavam, entrando na larga do Carnapijó, o sol, ressumando por trás do mato, punha o dia em volta e deixava ver o patacho fundeado, rente à margem, quase  embocando no igapó.

Cumará, do vê-lo, fez remo contra, ficando fora das vistas, no entremeio da ramagem. Foram muito recomendados para evitar qualquer camaradagem, mesmo de conhecidos, sabia seu Tomé das Letras, dono da farinha, da tomadia que faziam: do Carnapijó até Tatuoca, não deixando ninguém passar com nada que fosse de comer e em muitos casos apresando até os remeiros, que podiam escolher entre se alistar como voluntários ou serem presos.

A maré estava virando em vazante, desfavorecendo ainda mais o patacho encalhado, sem força de vento que o tirasse. Cumatá, quando percebeu a vaza prendendo o navio que pensou fundeado, fez sinal pra Nheiú, comandando sair remando na larga e entrar no igapó, cortando a face do costeado, pelo mucruará que sabia, ficava emprenhado na vazão.

Em manobra rápida, bordejaram quase riscando a madeira do casco, em remado silente e ligeiro, pondo surpresa no convés que reagiu só com muita gritaria, sem nenhum disparo. Embrenharam com outra manobra pelo caminho d’água, varando ilesos no caudal jusante.

Margearam, enquanto a sombra do mato pôde encobri-los, fazendo render as remadas até o sol dar sombra de quarto de dia, quando entraram pelo primeiro igarapé e ficaram esperando a noite.

Esta veio; juntando negrume e sacolejo de vaga, no rumo tortuoso que Cumatá traçou para evitar os navios fundeados e chegar à boca do Piri.

Mas tal não aconteceu, a canhoneira saiu de trás do brigue, numa manobra rápida, lançou o arpéu e pôs-se casco a casco, acendendo o lume das lanternas. Descobertos, farinha e canoa, Cumatá e Nheiú foram levados para Tatuoca e incorporados à frota, à despensa e ao corpo de voluntários.

Dali nunca saíram, a primeira ferida que Nheiú coçou, apareceu depois de muitos dias de tosse e febre, viraram manchas e pústulas por todo corpo. Em Cumatá, as pápulas chegaram junto com a prostração da febre. Quiseram fugir, mas as forças faltaram, as feridas roubavam a vida vagarosamente. 

Os dois foram separados junto com um sem número de outros infectados. A correria era grande, a febre pútrida não poupava ninguém, nem os principais, as autoridades, os estrangeiros; homens, mulheres e crianças, fazendo mais vítimas entre os presos nos porões da corveta Defensora e as forças militares.

Os escravos cavando valas e enterrando corpos com as mãos embrulhadas e o pano cobrindo o nariz e a boca, os objetos sendo queimados em grandes fogueiras, foi a última visão de Cumatá.

Nheiú durou mais um dia dentro da escuridão com os olhos comidos pela varíola.

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