Aferventando a farinha,
Manoel Douro, mais conhecido como Dourado, português de nascimento, brasileiro
por vontade sua, mexia a colher de pau desgrudando a rapa do fundo da panela,
pensava na demora da marcha, pensava no padre doente.
Tumida preparava os nacos
de peixe salgado para a fome de cada um. Ela, cafuza, filha de
escrava mandê e índio paracanã, sumidos há mais de vinte anos, foi
criada por ingleses, abastados comerciantes, na rua do Norte.
Fugida, confusa, vivia
com Dourado, dois filhos, nenhum dele, de quem? não sabia dizer, acompanhava-o
pelos sítios onde se travavam escaramuças e combates, indo de freguesia em
freguesia, de vila em
vila. Sempre em armas. Atiradores de pontaria certeira e
rápidos no recarrego das armas, auxiliados pelos dois meninos que carregavam o
cartuchame. Igual, preocupada em ter se perdido dos outros na retirada dos que
iam continuar a luta.
Amélia, escrava parteira,
alforriada na bondade do pai do menino que aparou, cantando reza banta, salvando
a mãe e a criança, sentada na raiz do pau d’arco, olhava distante com a mão
posta na testa do padre que ardia em febre. Além de parteira, conhecia o segredo das raízes
e plantas de cura. De benzimentos e rezas. Assistia o padre e esperava qualquer
destino fosse.
Cortando o pau preto,
Acapoúca, mameluco do Bujaru, mestiçado com gente do Abaribó, cuidava tirar reto.
O mais calado de todos, anhoto como cobra antes do bote, de força descomunal,
atado em destino e na bruteza a João Mão Cega que olhava as águas receberem os
primeiros raios da manhã, desprendendo vapor, como se o sol pudesse
esquentá-las.
Foreiro do Acará, o mais
chegado aos Vinagres, cabano de primeira hora, valente e preterido sempre do
comando de algum grupo, por não ter nunca domínio de si, mas preferido, junto
com Acapoúca, por todos em qualquer tipo de luta.
Seguiam, desde três dias, subindo o Guamá, o
casal com os filhos na canoa ligeira, farta de farinha e peixe salgado, quando
a chuva forte caiu e buscaram a margem. Mão Cega e Acapoúca vinham do mesmo
rumo por dentro da mata procurando os que queriam continuar lutando.
As batidas na samaumeira
ecoaram, pancadas ocas perdidas na mata juntaram os dois grupos à raizeira e ao
padre, prostrado no chão, ardendo em febre. Padre Demerval ,
desde o segundo dia de marcha juntos, vinha carregado na rede de varão, cuidado
por puçangas e rezas. Revezavam entre remar a pequena canoa carregada próximo à
margem e ombrear o varão.
O dia todo mais a noite
foi a espera ao lado do padre, em convulsões até a derradeira. Acapoúca viu Amélia
cruzar as mãos do morto no peito, cantando baixinho, chamou os outros.
Encomendado na liturgia africana pela negra, enterraram padre Demerval em
silêncio.
Vinham fugindo da
perseguição que faziam ao padre, desde que ele se opôs ao recrutamento dos
meninos do orfanato para o corpo de voluntários, contava Amélia. Ficaram muitos
dias nas matas de Nazaré, mas não foram descobertos e saíram a esmo, até a
febre o padre sabia para onde ir, mas depois ficaram perdidos, vagando.
Dourado propunha ficarem
juntos, formar força própria, juntar os desgarrados e seguir pro Tapajós. Sabia
de muitos que pensavam assim, contava mais de cem.
João Mão Cega nem chegou
a dar opinião do que achava, deviam fazer. A bala atingiu o pescoço, caiu sem
vida. O estralejar começou intenso, estavam cercados e sendo caçados como
animais.
Foi uma luta breve e
desigual. Eram mais de quarenta homens fardados e fortemente armados que deixaram
a morte espalhada nos corpos nus e mutilados em volta da cova rasa com o
religioso restando, desenterrado, sem as orelhas.
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