Como fosse o próprio, entestou, ferveu e veio, queria
porque queria me enfrentar de novo, ali no meio da rua, na frente de todos; de
certo na demonstração de valentia, coisa que não tinha. Era jeito de
traiçoeiro, de capanga restado, mais sem serventia. Dormia de favor na casa
velha do Delfonso, se dizia parente de fulano, do sicrano, que era filho de
pai-rei, sabia dos modos e de todas as profissões; invocasse o pai não sobrava
nada em volta, secava tudo. Que eu fosse
embora antes que tardasse ali, esticado no chão com a alma apensa nos
profundos. Enquanto falava ia batendo as mãos nos bolsos como se procurasse
alguma coisa.
Me sentia na vergonha, ali no meio da rua em briga de
mão. Ele mal parando em pé de tão bêbado, mas era assim, não podia me ver em
lugar nenhum que vinha, bêbado ou não. Todas as vezes era aquela provocação,
quando levava uns pescoções, xingava de longe, esbravejava. O motivo dele não sabia,
uma ojeriza gratuita, nascida do nada.
Aquela situação já durava tempo, ficava medindo lugar
de ir para não encontrá-lo, tentando evitar. Mas não adiantava muito porque
onde me visse, lá vinha, batendo as mãos nos bolsos provocando, querendo briga,
se dizendo filho da brabeza, do pior que havia, não adiantava esconder que ele
achava, seu pai-rei guiava na sova que ia dar, que era protegido no natural e
no urdido.
A idéia surgiu quando vi na casa do Linoro uma carcaça
de boi, no quintal, secando ao sol. E ele, prontamente, me cedeu a cabeça e
ajudou nos preparativos. Passamos quase uma semana trabalhando para achar a
indumentária, o cavalo, o arreio, tudo preto, como foi pintada a cabeça de boi
preparada para vestir a minha.
Uns
metros antes da casa velha do Delfonso, no Beco da Passagem, fiquei esperando o
Birobo naquela noite. O Linoro, na outra esquina, deu o sinal quando ele
apareceu na rua. Coloquei a cabeça de boi, abri a capa de chuva sobre as ancas
do cavalo e apontei na esquina. Quando ele me viu, parou no susto. Nem dei
tempo, com a voz empostada inquiri.
-
Num toma bênça do pai-rei, Birobo?
Ele
quase já correndo, gritou.
-
A bênça, pai-rei.
E correu, rua abaixo, até que cerquei no galope; com
aquela cabeça de boi me machucando o rosto e o pescoço, perguntei.
-
Tá fugino do seu pai, travesso?
Birobo tentava pôr desconfio, ali parado na minha
frente, misto de assusto e espanto, abobado, sem conseguir falar, me ouviu
dizer que filho de pai-rei não podia ficar arreliando com ninguém para não dar
parecença de quem era e proteger os profundos, que ele tomasse tento. Num
volteio saí a galope rua acima.
Muitos dias se passaram sem que Birobo aparecesse. Um
dia o encontrei sóbrio, mais arrumado que sempre, meio sem graça aproximou-se
de mim, misto de riso e medo no rosto, se curvando todo, falou baixinho como
para ninguém ouvir.
- A bênça, pai-rei...
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