Foi numa noite fria e úmida, num
agosto entrando, as batidas na janela me acordaram, daquele sono de começo de
noite. Era o Anésio afobado e tropeçando nas palavras.
- Corre, home de Deus, o padre
ficou doido, dona Lica mandou chamá na urgência. Corre, que vai acontecer uma
disgrama.
Mal tive tempo de vestir a roupa,
chegou o Onório, com a mesma urgência, se benzendo todo.
- O padre ficou doido, não deixa
ninguém entrar na igreja. Dona Lica já chamou todo mundo. Ele acabou de rezar a
missa e endoideceu, começou atirando as velas acesas no povo que rezava a
novena da padroeira, enxotou todo mundo da igreja, fechou a porta e disse que
só abre se o compadre for lá.
Que sandice era aquela? Por que
eu? Mania tinha ele de me chamar para tudo. Às vezes por coisa à-toa lá vinha
recado.
- O padre pediu p’ro senhor passar
na igreja ainda hoje.
Chegava lá era só para conversar,
falar da festa, da procissão ou qualquer outra coisa à-toa, quase sempre essas
conversas acabavam no cigarro que ele me encomendava fazer. Sempre aquela
conversa sobre anjos que eu ouvia calado. Coitado do padre Inocêncio. Seria a
idade agarrando ele? Pensava, enquanto apressava o passo, deixando Anésio mais
Onório para trás.
Lá chegando, a pequena multidão
foi abrindo caminho, espaçando, me deixando bater na porta.
- Padre Inocêncio, estou aqui.
Nenhuma resposta. Num tempo o
barulho da matraca manifestou, vindo meio de cima, como se estivesse sendo
tocada em cima do andaime que o Zé do Vidro usava para trabalhar.
- Padre Inocêncio, sou eu. Abre a
porta.
O grito veio em seguida.
- Arromba, Arcanjo, mas não deixa
ninguém, fora você, entrar.
Arrombar aquela porta de carvalho,
talhada em recortes de formão, com duas polegadas e meia de grossura? Realmente
ele não estava no seu juízo. Dei a volta e entrei pela porta lateral, arrombada
sem muito esforço.
- Padre Inocêncio, onde o senhor
está?
- Aqui em cima, Arcanjo. Acode
aqui, Arcanjo.
Padre Inocêncio estava em cima do
andaime, com a matraca numa mão e um castiçal com três velas acesas na outra.
Encantoava um vulto que, de longe, não distingui, só percebi o contorno na
sombra. Era baixo, envergado para frente e estava trepado no alto do altar em
construção. A sombra projetada na parede, pela luz tênue do castiçal, só se
mexia quando o padre, receoso, tentava chegar mais perto apontando as velas em riste.
Nessa hora, o efeito era assustador, o vulto não tinha mais para onde correr,
padre Inocêncio dominava a situação.
- Arcanjo, é ele, está cercado o
anjo ruim, o cão, peguei. Segura a vela e a matraca, não deixa ele escapar que
vou buscar os paramentos e a água benta. Peguei ele agachado atrás do altar e
tirei todos de dentro da igreja, esse bicho é perigoso, quando falei com ele,
não respondeu e foi fugindo, pulando dentro das sombras.
O padre suava nervoso, demostrando
uma agilidade quase impossível na sua idade. Enquanto ele descia do andaime,
fiquei vigiando a sombra, espantado, ao mesmo tempo que tentava chegar mais
perto para ver se distinguia pelo menos a fisionomia do coisa ruim. Foi no
chegar o castiçal mais perto que me espantei mais ainda, o diabo não era o
vulto. Nem fugir ele conseguiria, estava mais assustado que padre Inocêncio que
já voltava para exorcizar o lugar com
seu latim fluente.
- Padre Inocêncio, esse coitado
não é o coisa ruim, é o Ditinho da Juvina, ele é surdo-mudo e ruim da idéia,
deve de ter fugido da Malhada.
Ele fez o pelo sinal enquanto fui
ajudando o coitado do Ditinho passar do altar para o andaime. Na porta,
arrombada, o povo espiava de soslaio o medo com que o pobre diabo olhava o
padre Inocêncio recolher a matraca num silêncio todo.
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