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O que aconteceu? Não posso mexer,
não enxergo nada mas distingo tudo. Tudo passa ao redor, desencontrado, passa enviesado, sem ordem, coisas da
meninice invadindo meu olhar que vê sem os olhos, que vê para trás. A maldade
feita com a mulher que pedia esmola, ninguém viu mas agora eu via. Parecia mais
velho olhando, mas era eu menino, fazendo e ao mesmo tempo de longe olhando.
Tentei passar as mãos nos olhos
mas as mãos não mexiam, o corpo não mexia, não tinha cheiro ao redor mas eu
sentia o cheiro do sangue do escrivão esfaqueado, perto do cruzeiro, que eu
socorri. Ele chorava de dor e o sangue cheirava quente e entrava pelo meu
nariz. Enxergava o cheiro entrando, sentia entrar, via, de um canto, tudo isso
acontecer, sentindo eu mesmo sentir.
Tudo dando volta, a cigana se
limpando para mim, ali bem na minha frente, os seios pulando fora do corpete e
o barulho da água na bacia de asseio me chamando, eu querendo ela, eu me vendo
querer, olhando o marido querer depois de mim.
Calunga sangrando no peito, o
esguicho matando ele devagar, ali na minha frente, briga de jogo, eu querendo
que ele morresse para ficar com tudo do nosso à-meia, apiedei, socorri
depressa, ficou só em mim a maldade, mas dali eu via e sentia o peso daquele
guardado.
O que está acontecendo? O tempo
passado está repetindo?. Me acode, me vira, mexe comigo.
Padre, fui eu não, fui ruim não.
Via tudo, sentia tudo na minha frente. O padre apontando com o excomungo antes
do veneno fazer efeito. Foi ela, meu Deus, foi ela que mandou eu comprar o
veneno e quis deitar comigo. Tudo aparecia na minha frente como se tivesse
acontecendo naquela hora. Era tão novo,
nem barba tinha, mas o fogo dela já bulia comigo e no em volta, também,
pergunta Sileno, Barbuim ou para o sem vergonha do Damão. Via tudo, fui eu não,
até o Alarico falou mal, como se ele não quisesse daquele fogo, a quentura. Não
adiantou fugir, mudar de serviço, de idéia. Não adiantou freqüentar a igreja,
congregar aos marianos. Adiantou, Deus? Eu via onde ela foi espalhar o fogo
depois da viuvez, foi na delegacia, no juiz, na sacristia. Vejo com meus olhos
cegos, seu padre. Estava sentado na cômoda vendo a labareda, vendo o diabo
ajudá-la a levantar sua batina pegando fogo, vendo sem ver os arranjos para me
condenar.
Na cela eu sonhava, sonhava em
escapar, sair no mundo, para o norte. Sonhava virar cigano.
Quietura esta, não consigo me
mexer, enxergar e não escuto nada, só as lembranças vindo. Eu ajudando Quitéria,
aleijada com vida só pela boca, ensinando seu filho Zezinho, por via de oficio,
a viver. Eu passando a perna no seu Baldino com duas mulas velhas, dando peso
de pedra na saca de feijão e seu Baldino consentindo, calado na bondade dele.
Por tudo isso, lembranças do
bem e do mal, desconfiei que tinha morrido. Enquanto me velavam, eu ia
aparecendo no tempo pelo qual passei e ia formando confusão. Nessa hora entendi
os dois vultos que apareceram ao meu lado, ali, naquela imobilidade de morto
mas vagando, vagando para trás... os dois puxando, ora um; ora outro, para cada
lado do tempo. Nesse momento, pude perceber a mão de um no que fizera de bom na
vida e a mão do outro nas minhas mazelas, chegara a hora. Era o anjo e o
demônio me tomando, com firmeza, pelas
mãos para seguir meu próprio enterro.
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