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Toda dor foi possível
suportar, o não-ter e sentir latejar fundo. Também, os olhares perguntando sem
perguntar. Exceto o de Alegria, esse doía. Sua presença incomodava. Havia uma
tristeza no ar quando ela entrava no quarto, com aquele sorriso que para mim
mais parecia soluço, coisa de amor
definhando.
Lembrava do dia em que a conheci, recordava do cheiro
da manhã, do domingo, da missa celebrada de fora da igreja em construção.
Lembrança dela passando de vestido de organdi, estampado em azul, sapato branco
e com o véu já na cabeça. A mãe puxando pelo braço por causa daquele olharzinho
que ela me deu. Lembrança do rosto corando e o olhar abaixando.
Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...
Aquele sino era o que mais
me doía, me enlouqueciam as badaladas, dilacerando por dentro. Como se tivessem
cortando meu avesso, dor insuportável e maior ainda com Alegria ali me olhando,
disfarçando a tristeza de dentro com sorrisos e afagos nas mãos. Fechava os
olhos, fingia dormir. Lembrava de quando a conheci.
Alegria mais Idalina, festa de Nossa Senhora da Abadia,
cheiro de pólvora dos foguetes, novena mais demorada, mastro erguido, leilões e
meu olhar acompanhando Alegria pedir para o menino Tobias entregar o correio
elegante.
- Me encontre atrás da igreja.
Nem acreditei, emoção
correndo no corpo, primeira vez assim. No encontro, Idalina reparando a esquina.
Nossos primeiros silêncios, as primeiras palavras. E ali mesmo, tempos depois,
minhas mãos entre as suas, também o primeiro beijo, e o compromisso definitivo.
Perdia a noção do tempo, já
era madrugada, ela já havia ido embora. E eram as mesmas sensações, a mesma
dor. Dor e a ansiedade nos minutos contados até o sino bater de novo.
Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...
Era como se tivesse uma chaga dentro do corpo que
latejava com o toque. Quando ele parava ia me acalmando e o pensamento voava
longe.
- O Pedro já é quase um homem, ele dá conta de buscar o
sino, seu vigário.
Era manhã de finados, lembro do cheiro da paçoca levada
na matula, de contar os passos para me distrair no caminho; de Baldino, que me
cedeu uma cabaça d’água no meu desprovimento e me ajudou a arrumar o cabeção do
carro que soltou numa bacada perto do Inajá. A trabalheira da volta com o sino
pesado, forçando a canga de bois, aluindo de lugar em qualquer diferença do caminho.
Lembrança da chegada, minha boca secando no medo de
lembrar. E a noção do tempo perdida na dor, o quarto escuro, as badaladas, é
agora.
Não era, doía pensar que era. Agora era.
Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...
Alegria vinha, não queria.
Não queria mais vê-la, não queria mais que aquele sino tocasse, não queria ver
ninguém.
Conformação no tempo não
achei, repassei todas as lembranças naqueles meses. Não achei sossego em nenhuma.
Não ver mais Alegria não aliviou meu sofrimento. O sino continuava tocando
todos os dias e era nessa hora que a dor nas pernas rodopiava dentro de mim.
Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...
Esperei todos dormirem e
fui rastejando até a igreja levando o facão. Foi como tirei a tramela da porta.
A escada ficava na boca do alçapão e dava no forro; de lá uma escada menor ia
até o campanário. Subi os degraus um a um, sentando-me, de vez em quando, para
tomar fôlego, até chegar ao sino. Dor nenhuma sentia nesse esforço. Recolhi a
corda, receio de tocar numa distração minha, e fiquei frente a frente com ele.
Era preso no cavalete, bem
feito por Joaquim Pirracento, sustentado na parede que apoiava a cumeeira. Fiz
dois piques com facão, um em cada lado do cavalete: uma facãozada, um intervalo
grande, cadenciado para não acordar o padre.
Enquanto rastejava pela rua na volta, lembrava-me do
dia em que cheguei. A festa que foi. Lembrei-me das tentativas de subir o sino
para a torre da igreja, de Alegria me falando: Agora podemos marcar o casamento;
da teimosia do padre em não esperar Joaquim Pirracento para subir o sino; do
cavalete mal feito, que eu mesmo ajudei a fazer, do sino despencando em cima de
mim.
Blém, blém, blém ...
Blém, blém, blém ...
Ouvi por sete dias. No oitavo, de madrugada, ele
despencou. Fazendo um enorme barulho, caiu na quarta badalada e derrubou todo o
telhado da igreja.
No meu canto não sinto mais nenhuma dor, nem tenho a
Alegria. Fiquei apenas com o silêncio e a sensação de ainda ter as duas pernas.
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