sábado, 14 de dezembro de 2013

Pedro Viriano e João Mutaba - MQ


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Acordou muito cedo, precisando das primeiras horas do dia, a memória espalhava calor de luta no corpo, sentia-se alquebrado pela idade e solidão, mas não se deixava quedar.  Da janela, olhava a curva do rio, os paus-d’arco floridos no meio da mata e se punha no passado, esperava João Mutaba como fazia todos os dias. Parte do que contava estava na lembrança dele também. Queria manuscrever tudo e iam se recordando pouco por pouco.

 

Quem escreverá nossa história senão os poderosos que sabem ler e escrever. Como saberão o quanto queriam a Amazônia européia e que só o sangue derramado evitou que ela não fosse brasileira.

 

Supria o pensamento, enquanto Mutaba preparava o papel e o tinteiro.

 

Remanesciam dos que não quiseram anistia, preferindo a vida nos ermos do Abaribó, lugar quase despovoado, escondido na mata fechada e na fama da valentia secular dos cafuzos que um dia dominaram aquelas terras.

Não se conheciam até o dia que se encontraram fugindo, cada um com sua família. Pedro Viriano, oficial calafate quebrado na virilha esquerda e com o rosto marcado de pólvora, remava subindo o Guamá com mulher e filha. Mutaba, negro, descendente de escravos vindos de Goiás com seus donos, nos primórdios de Cametá,  nascido forro sem saber por quê; nadava tentando atravessar o rio com o filho nas costas. Dali nunca mais se separaram, subiram todas as águas procurando o Abaribó por mais de ano.

 

No sertão Abaribó quase deserto e desolado, a maioria dos que chegavam, vinham com esperança de encontrar, no mistério daquelas águas que o cortavam, ora afluentes, ora confluentes, ora defluentes, confundindo qualquer perseguição, o refúgio que a bravura pedia e se impunha sobre a anistia pedida, com honradez, por patriotas e concedida, como espórtula, com descaso por improficientes.

 

Pedro lia para Mutaba. De olhos úmidos, brilhando no reflexo do sol da manhã. Narrador e personagem ao mesmo tempo, empunhando com as mãos trêmulas a arma da palavra escrita, aprendida com a mãe e afiada pelos livros que o Cônego lhe recomendava ler. Sabia a última batalha travar, contava com os lampejos de Mutaba, com a tinta que ele extraía; devoção na tarefa de manter o tinteiro sempre cheio. Demorava olhando o chão de terra batida, macambúzio. Lembrava a mulher e a filha mortas pelo escorbuto em meio à falta de recursos.

O corpo ia cedendo aos anos e à pobreza do lugar. As palavras iam ficando no escasso papel, nas letras meio borrados em tecidos de algodão e nos ouvidos de Mutaba que pedia quase todo dia a Pedro Viriano ler o poema da liberdade, se sentia importante ouvindo tantas palavras bonitas que ele não conhecia e nem entendia, mas sabia ter ajudado escrever; seu orgulho, lutar aquela luta, preparar a tinta desde a extração do anil-trepador até o preparo com gotas de óleo de andiroba, carvão e ervas sicativas, receita que a intuição cabocla, logrou. Daquela aguada escura saía também beleza na entonação da voz.  

Pedro lia :

 

tudo por fazer

na terra nova

encontrada aqui

 

tudo por entender

do braço índio

nascido aqui

 

vida viva

de vencidos e vencedores

vivendo livre

sobejando aqui

 

encontro das culpas seculares

aprendidas de joelhos

e mãos postas em armas

com a vida viva nascida aqui

 

contrição e a rubra mordaça

desnudada nas batinas

entalhes lúbricos

resultados sem lavor

 

traço negro trazido à força

para empenho e labor

 

vida viva

mutilada da altivez

restada nos porões

pútridos do estanco

 

manumissão de libertos

juntos

calados e misturados

às conquistas que o deszelo

cobriu com hipocrisia

sobrepondo lenitivo à vida

 

do braço índio cativado aqui

do braço negro exilado  aqui

do braço branco renascendo aqui

 

verdade mestiça de dores

esparramadas em subserviência

findando no descaso com a terra

que se fingiu descobrir

 

o gentio se misturando

mesmo curvado

 

quimeras prenunciando salvação

imitando de mão em mão

um deus

um rei

 

mas sonhos podem ter

as mãos quando ganham

os espertos com seus grilhões

 

mas sonhos podem ter

as mãos quando tocam

a verdade nos sonhos

de outras mãos e somam

a escolha da liberdade

de mão em mão

 

 

óbolos de fel que põem

solenemente acima

falsos e vazios

circunspectos sujigando

 

em leis que moem

e subtraem apenas

 


estugando o ódio


nas entranhas


da morte em cal


sangue e fezes


 

embriagados na loucura

dos boticários

punindo em vão

segregando o respeito

 

dor

adornada de dor

adonando todos

 

desencadeando vala comum

e rasa do Penacova

 

valimento dos restos

de menos valia

 

 

rompâncias e sujeição

assomados nas ruas

 

iniquidade torturando

calma e silêncios

no ecôo da concertina

no sibilo das balas

 

polução

na calma da noite

na soberba das alforrias

 

cordura com os atos

exéquias pequenas e tristes

nos arrabaldes do sonho

mourejados

só com a vida

 

cabedal que se doa

com zelo, sem datação

 

ressôo de bombardino

sibilo das ordens

entrando pelas gelosias

das janelas abandonadas

pelos senhores intolerantes

 

sobrecarga da ira

no gentio apartado

vagando erradio

pelos mocambos

deixando rastos

imperceptíveis

nos bivaques e caminhos

 

no negro amolegado

pela chibata

homiziado nas quilombolas

 

no branco tocado

pela liberdade sem laços

rompendo desígnio

 

detração pelos adros

e palácios como vômito

no linóleo impregnado

 

o esgar dos brasões

enrijecendo a verdade

pelas ruas e caminhos

espalhando a vontade

 

o gesto

lesto

esmiuçando os arredores

até o suburgo na beira do rio

 

onde folga homens

embaixo dum pau copado

 

deslindando seu relato

parte por parte

para entender melhor

o dédalo das leis promulgadas

 

postergando e emudecendo

o ventre tenro


onde a liberdade


queria nascer


 

João Mutaba não movia um músculo do corpo, ficava tempo olhando o longe. Pedro Viriano, cada dia que passava, terminava a leitura com a respiração mais cansada. Ensimesmado como o ouvinte, se perdia das palavras, ficavam horas trocando seus silêncios.

Enganava o tremor das mãos com a tarefa que se impunha, pedia a Mutaba tinta e a lembrança da chegada do mestiço Visgo Rei e sua gente, anistiados e depois fugidos do Corpo de Trabalhadores.

 

 Nossa verdadeira derrota foi na calada das leis que perdoam e aprisionam a um só tempo: os braços e os sonhos, desespero dos precitos, trabalho livre em grilhões, dispostos. Servidão paga com moedas esvaecendo direitos, cortando fio por fio a teia que a liberdade ousava tecer.

 

Pedro Viriano foi encontrado por Mutaba sentado no banco, na mesa, em frente à janela onde costumava ficar olhando as águas, a cabeça tombada sobre o ombro direito como se as visse. Nas mãos, segurava o maço com seus escritos, os braços esticados pareciam querer entregá-los a alguém.

João Mutaba sentou no chão batido da soleira, olhou os caminhos do Abaribó entrando pela mata, findando nos barrancos, ligando as cabanas; um abandono, somente velhos esquecidos e esquecendo, pensava em silêncio, ouvindo a voz do morto recitando:

 


... postergando e emudecendo

o ventre tenro


onde a liberdade


queria nascer


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