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Na porta era a maior
confusão, dentro pior ainda, apesar de nenhum negro entrar naquela sala,
senhores, viúvas e até padre Laffaiete com seus quatro escravos vinham
tratar, dar-lhe alforria mediante os
papéis de credito que estavam valendo mais do que moeda cunhada.
Para Amastor, olhar zambro de permeio com os alforriados e voluntários como ele, ajuntados
para embarque, procurava se esconder das vistas do oficial. Matara-lhe o pai
quando muito mais novo.
Aproveitara o ataque, a primeira confusão com os alemães nas matas de
Nazaré para tomar dianteira e entrar na casa do português. Sorrateiro, acordou
e deu fuga aos escravos que quiseram fugir. Os demais, na ponta da arma,
esperaram o dia clarear. Entre eles o menino, mulato, de olhos saltados como os
do pai, segurando no cós da saia da avó, mãe de Luzia.
Amastor, enquanto esperou, pôs Luzia em seu pensamento, sua lembrança
passeava, vendeira mercadejando pelas ruas, com os cabelos presos pelo pente de
casco, marrafa, adornos e um ramo de jasmim emprestando cheiro. Saia rodada
pelos tornozelos, corpete de mangas curtas e tufadas e o cipó catinga
recendendo. Rés ao chão, seus pés pisavam passos de dança. Ela dançava.
A voz do menino perguntando
à avó quem era, trouxe-lhe ao grave da
hora e à imagem de Luzia, escrava de estimação, inerme nas mãos do dono,
abastado, sovina, reinol influente na política que a tomava quando quisesse e
espancava com as próprias mãos.
A resposta na voz da velha, quase um murmúrio, colocou-o na cabeceira de Luzia, uns últimos
suspiros em meio ao seu nome falado baixinho, sem forças. O pedido sussurrado:
–
Mata
ele.
As pessoas chorando,
gritando, a parteira tentando tirar o filho. O corte a facão, a mão puxando por
um fio, e a criança retirada do ventre morto da mãe, um corpo quase mutilado a
pancada, esbulhado da vida e do seu amor, Amastor sentiu desejos de acabar ali
mesmo com o nascido. Foi contido e, naquela mesma madrugada, fugiu depois de
tentar matar o português.
Ficou o mais procurado fugido pelo Corpo de Ligeiros, vagou por aldeias e
quilombolas até encontrar os primeiros sinais do povo Abaribó. Eram poucos.
Índios, cafuzos e alguns negros como ele. Seguiu-os se achando despercebido até
ficar cercado por mais de uma dúzia. Foi levado, misturado a eles sem nenhuma
hostilidade, para a principal aldeia. Deram-lhe de comer e ouviram sua história
sem fazer muitas perguntas.
Olhava o menino com a avó e relembrava sua vida no Abaribó, dia a dia
sonhando voltar e cumprir a promessa feita a Luzia. Queria dizer alguma coisa, quando ouviu o
barulho da porta da casa se abrir, era o português aos gritos, reclamando não
ter ninguém na cozinha. Amastor esperou ele dar os primeiros passos e se
revelou de arma abaixada para que fosse bem visto, tomou mira e acertou o
balaço no peito. O português estrebuchou aos seus pés, sem ais.
Apenas um instante durou sua
hesitação, a avó e o menino se colocaram na sua frente fazendo com que
desistisse de entrar na casa e fugisse pelo mato. A cidade já estava quase toda
tomada pelos companheiros, a euforia contaminava quem saísse pelas ruas, havia
balbúrdia e confusão, nelas Amastor não queria concorrer, para o Abaribó não
voltou, viveu vagando de um lado para outro, primeiro com os cabanos em Luzéia,
até aceitarem a anistia, depois entre os anambés e mundurucus, fugindo do Corpo
de Trabalhadores, envelhecendo. Acostumado à vida errante, nem sabia onde era o
Paraguai, mas era pra lá que queria ir.
Foi interrompido nos pensamentos pela
ordem de embarque, sentiu-se descoberto. Procurou com as vistas fracas e viu o
oficial vindo em sua direção, esperou ser acusado, depois de tantos anos, de
assassino. Tal não aconteceu, o jovem militar só se aproximou o suficiente para
um profundo olhar, olho no olho. Era gratidão, era o olhar de Luzia que o filho
herdara.
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