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E muitos vinham tirar
água do manadeiro, escravos, alugados, de ganho, forros, mestiços curibocas,
mamelucos e cafuzos. No lugar, quase ermo, próprio para bebedice, fartavam-se de cachaça, taniça e achavam tempo
para emboança e arrelias.
O mais antigo aguadeiro, Tranca de Rio, negro congo, pés grossos e
disformes, alforriado em recurso de compra, à noite, fazia babaçuê no mato
perto do Sumidouro onde evocava elementos, orixás e calungas, num batuque
remedado das matracas, dali tirava pagas em aguardente e fumo que vendia aos
demais. Durante o dia, mantinha a freguesia de água, alugando braços ou
cobrando favores dos iguais.
Das imediações do Pau Água quase nunca saía, era também uma espécie de
conselheiro para qualquer assunto. Sabia ouvir e, com muito jeito, arrancar e
contar segredos. Nada se passava na cidade sem que soubesse com detalhes. Ria
muito, por qualquer coisa e seu riso parecia contaminar o corpo todo num tremor
que findava nos pés desproporcionais, batucando o chão como tocasse tambor de
revira.
O respeito foi adquirindo quando comprou a alforria e nas todas vezes que socorria quem
necessitasse. Paravam na rua para falar com ele como fosse um principal. Padre
Batista o chamava pelo nome. Não recusava nenhum convite pra esmolar, até
conduzia a imagem do santo, puxando as rezas da igreja. Sabia todas, parecia
professar a fé católica.
Tranca de Rio ouvia contar da política, das perseguições e deserções com
atenção disfarçada, comendo farofa de manicoaras que levava pronta no farnel
surrado, sempre amarrado na cintura. Dali abastecia, do que descobria acontecer
entre os reinóis e os estrangeiros abastados, sua gente que se armava para
lutar contra a escravidão e a miséria.
Fazia delato na conveniência de sua justiça, sempre dizendo ouvir dizer,
confidenciando ilícitos de funcionários, militares, meirinhos, desonestidade de
grandes comerciantes, lascívia de senhores com índias e escravas. De suas
conversas saíam fel e mel, nunca diretamente ao interessado, sempre por
intermédio de algum aguadeiro familiar às partes envolvidas.
Se arvorava arrumar o errado por via das rezas que dominava e de fazer
correr a verdade no meio dos enganados, prevalecia seu julgamento. Ninguém
percebia, que seu jeito simples e risonho, esmolando nas casas, ouvindo
escravos, disfarçava um zeloso seguidor do padre Batista.
Ao mesmo tempo que servia a todos, obtinha, com seu riso, parecendo um
cacoete, informações importantes que fazia chegar à casa do padre através do
velho Bartolo.
As armas começaram a surgir em meio a deserções, no escuro das
madrugadas, provinha do alistamento obrigatório, da perseguição ao padre
Batista em fuga pelo interior, dos foreiros chamando quem quisesse lutar. Sem
que ninguém soubesse, Tranca de Rio aliciava os descontentes, falava da
abolição prometida, induzia escravos a fugir, índios e mestiços a se juntarem
no interior com os pequenos grupos que iam se formando.
O repicar fúnebre dos sinos começou junto com a manhã em todas as
igrejas. Tranca de Rio recebeu a notícia sério demais, como não era seu costume
ser. Padre Batista era a esperança de tanta gente, quem iria se opor as
injustiças, quem iria lutar nos corredores dos palácios contra os reinóis. Queria
pôr-se a caminho das matas de Nazaré, mas foi incumbido ficar por Bartolo. Mais
que antes, precisavam juntar gente para a luta que estava próxima, ficar atento
nos sinais combinados, marcado o ataque, saberia e se incorporaria à luta.
Os dias passavam com uma lentidão medonha, quase ninguém aparecia para
tirar água, alguns largavam o pote e se embrenhavam no mato sem falar nada,
prenunciando um conflito como nunca visto. Por ali passavam famílias inteiras
carregando seus poucos pertences, pedindo rumo a Tranca de Rio, falando no
assassinato do padre, mesmo depois de se confirmar sua morte natural, imputavam
culpa aos reinóis pela perseguição que lhe faziam, obrigando a vagar, sem
recurso, pelo interior da Província.
As milícias se postavam na saída das igrejas prendendo qualquer um que
tivesse idade de lutar, alistamento obrigatório ferindo leis de exceção,
exacerbando as famílias. Nos navios fundeados, uma movimentação nunca vista.
Foram os primeiros efeitos que aquela morte produziu. Com os dias passados,
tudo voltava ao normal na cidade do Pará, mas o interior fervilhava, lideranças
apareciam em todos os lugares. Armados do que dispunham, foram se concentrando
e formando pequenos grupos, encorajados pela indignação de suas misérias.
No escuro, Tranca de Rio esperava amainando a impaciência com goles cada
vez mais fartos de aguardente. De repente, a fuzilaria começou, seguida de
ordens e assuadas. Com a borduna em riste, partiu para o rumo do embate, rindo
com todo o riso do seu natural, o corpo dançando no meio do fogo cruzado, num
sapateio envolto por fumaça, cheiro de pólvora e gritaria, mais bizarro ainda
quando as primeiras balas quebraram seu corpo, acelerando os movimentos do
tronco, atingido muitas vezes, não parou de bater os pés, como se dançasse dois
ritmos diferentes ao mesmo tempo. Parte do corpo dançava seu riso e o outro sua
morte. Tranca de Rio findou estendido, estrebuchando, mexendo os pés como se
estivesse rindo.
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