Ajudante ponçador, com a mão suja no esbulho urdido nos dias, João
Fandro, funcionário encarregado da impressão dos títulos, separava desadorada
quantia para o bolso.
Avaro sabido por todos de sua convivência, possuía escravos comprados em
muitas pagas mensais, disfarçando seus atos. Eram só machos, fugidos maltratados
pela captura; peças rejeitadas, com cacundas, dentes apontados, sinais de
açoite e toda sorte de defeitos.
A escravaria alugada aparentava se sustentar e sustentar o seu aumento,
mas, na verdade, era um negócio sem renda que acobertava o espoliado dos cofres
da província.
João Fandro levava a sério o fingimento, parecia o que fingia, brigava
pela menor diferença no preço do serviço ou em qualquer negócio, e cuidava dos
negros com zelo, muita farinha e peixe seco. Viviam longe de assuadas e
feitiçarias, nenhum escravo seu era visto desocupado ou com a roupa molhada.
Chamado para, com eles, aumentar uma multidão, levava uma metade parecendo ter
só aqueles.
Gastava devagar os títulos que circulavam como moeda, fingia alheamento
com as demissões e nomeações, ora o tirando do cargo, ora nomeando para um
outro.
Com o depresso, tantos querendo vender para fugir, o medo dos cabanos
dominando a província, ele não acreditando no que os revoltosos pregavam sobre
a libertação dos escravos; adquiria todos que lhe surgiam em modalidade de
preço conveniente a sua conhecida sovinice. Em poucos dias, comprou mais negros
que os mais abastados comprariam em muitos anos, gastando tudo o que tinha.
Esperto que era os ofereceu em aluguel, parte ao comandante das armas do
governo cabano, e a outra à marinhagem nos navios que lhes opunham.
Francisco Rugoso, seu mais antigo escravo, velho de orelhas cortadas em
castigo, carapina de olhar limpo e bom remeiro foi o único que ficou com João
Fandro.
Quando iam aos navios, Rugoso sentia vontade de delatar João Fandro aos
oficiais, entendia pouco o que se passava mas, os cabanos não cumpriam a
promessa de liberdade, então era mais vantagem ser escravo de abastados
senhores do que dos foreiros e arrendados. Pensava.
Quando andava pelas ruas, sentia a mesma vontade de falar com os chefes
cabanos da esperteza do dono. Ouvia entre os negros e mestiços dizer que
estavam organizando o governo da província para depois cumprir as promessas.
Pensava em João Fandro contando tudo que via em terra aos oficiais da esquadra,
dando detalhes do que se passava. Sentia raiva de não delatar, se misturava aos
valentes, ouvindo contar a vitória, era um deles nessa hora.
Uma noite, remando de volta, fez um barulho a mais e recebeu a vergasta
no rosto, a raiva o ajudou a decidir, ia denunciar João Fandro aos cabanos. A
rapidez dos acontecimentos adiou sua decisão, em poucos dias o governo mudou.
Em meio àquela confusão, Rugoso não sabia mais que partido tomar, os cabanos
brigando entre si, a esquadra fundeada no largo em alerta, recebendo pessoas
fugindo da desordem. Resolveu esperar.
João Fandro não notava no escravo qualquer possibilidade de insubmissão.
Para ele, Rugoso era cúmplice devotado e incapaz de sair do seu mando. Achava
que os comentários que fazia sobre estar dos dois lados e o tratamento zeloso
fosse o suficiente para mantê-lo fiel. Acenava com vida boa, sonhando com a
nomeação para a provedoria da fazenda, fosse num governo ou em outro, cortejava
e tinha promessas dos dois lados, dizia ao escravo, acreditando fazê-lo lembrar
os tempos passados de muita fartura.
O dia que Rugoso decidiu e
denunciou João Fandro, os cabanos entregaram o governo da província, nem
prestaram atenção nas acusações. Rugoso morreu como um desconhecido, pouco
tempo depois, fugido e em armas junto com os mais radicais que atacaram e massacraram
a Vila de Vigia.
João Fandro perdeu muitos que seguiram o mesmo caminho de Rugoso; foi nomeado
funcionário pelo novo presidente da província e manteve o que restou deles no
ganho pelas ruas. Nunca entendeu o velho carapina ou fez queixa de nenhum dos fugidos.
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