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Ordenhou a vaca, escolhida no zelo da confiança, tirou tipuca separada na
cuia ornada que Dedé Peixada trouxe da Vila de Monte Alegre, esperou o terço
canto de galo e caminhou pra cozinha, certo do cheiro, café acabado de coar.
Acocorou no batente da porta, depois de deixar a cuia em cima da mesa grande,
enredando capim-açu, formato laço como de cabelo que deixava todo dia secando
na ponta do varal das lingüiças - pra
acendê fogo, dizia a Deralda.
Era assim, não parava quieto, lidava com o gado de curral ainda escuro.
Quando recendia o cheiro do tição, apagado na véspera, sendo acesso junto com
lenha nova, as vacas paridas já iam longe das vistas. A bezerrada berrava miúda
no cercado. O tempo de esperar Sinhá comer biju e notar a cuia cheia, de ele
tomar a bênção; era o de trançar um laço.
Conhecido no nome de Antoíno Boi, dado por dizer ser boi quando, no meio
deles, conhecer o que pensavam os muitos. Seu modo de lida, apreciado pelo
dono, o distinguia dos outros escravos, quase todos filhos dos dois casais
comprados de um arruinado, vindo da Guiana.
Benquisto desde menino, cresceu
levando o gado para pastar capim-da-praia e ajudando no curral. Rapaz, ajudava
nos aceiros, alotava e acunhava o gado no embarque nas gambarras. Agora cuidava
de tudo, até do leite gordo da Sinhá.
Ouviu falar por Dedé Peixada numa salga de pirarucu. Era coisa séria,
logo iam tomar a província, alforriar todos, expulsar os estrangeiros, todos
iam lutar; contou que a Vila estava cheia de soldados, oficiais estrangeiros,
viu descarregar pólvora, armas e até uma canhoneira, fundeada.
Antoíno pensava na vida que tinha, a fartura; nunca faltava nada pra
eles, podiam plantar o que quisessem, até fumo, todos muito sadios, cuidados em
qualquer doença, a bondade do Sinhô e a Sinhá rezando junto, rezou quando o pai
morreu, rezou e também chorou quando a mãe morreu. Cuidou a febre de Deralda
quando cobra ofendeu. Ali nunca viu usar o ferrete, a não ser no gado.
Aceitavam a alegria deles, vinham ver dançar lundu e batuque.
Conversava com os outros, cada um pensava dum jeito. O irmão mais velho
ia embora, junto com outros dois parentes, pro Acará; diziam juntar pra fugir
mais de trinta. Sonhavam ser brasileiros livres.
Nunca lembrava do pai achar a vida ali ruim, ou falar de onde veio;
lembrava sim, de vê-lo com a mãe, ajoelhados, rezando junto com Sinhá. De falar
dos franceses da Guiana, nunca da África onde nasceu. Da liberdade, dizia que
era pra cada um, uma coisa diferente, era o que convinha. Se sentia livre sendo
escravo de quem era, provido de tudo, nunca fora humilhado como sabia muitos,
para esses sim, a liberdade era outra coisa.
Desde menino, Antoíno via os principais, reunidos na mesa grande do
salão, falando dos reinóis explorando tudo na província, o preço da carne e o
transporte, seus armazéns sobrepondo preço para os foreiros e mestiços sem
trabalho de renda.
Naqueles dias, muita gente apareceu em conversas demoradas, Sinhô passava
tempo com o cenho franzido. Todos falavam do movimento dos navios, vistos de
longe entrando pelo Rio Pará.
Dedé Peixada encostou trazendo recado; era chegada a hora; quando fizesse
noite iam desarmar a Vila, tirar as armas e remar pro Acará. Num meio de dia,
começou a chegar gente de todo lugar, muitos armados, outros com machados,
facões e outras ferramentas. Antoíno nunca tinha visto tanta gente reunida, nem
no pátio nem na cozinha onde preparavam a munição de boca. Até Sinhá ajudava
Deralda dar as ordens.
Na varanda, Sinhô esperava por ele. Ia ficar só com Sinhá, as mulheres e
crianças, disse-lhe. Elas ajudam lidar
com o gado. Recomendava o manejo, a caça aos morcegos e o cuidado nos
embarques. Enquanto ouvia, pôde ver o irmão mais velho distribuindo os poucos
cartuchames, não precisou fugir, ia lutar junto com Sinhô. A liberdade para os
dois era parecida.
Nos dias, Sinhá pedia conta de todo o serviço, ouvia atenta, perguntava.
Punha ordens. Contava na cozinha histórias da mocidade, perguntava casos.
Antoíno e a meninada ficavam sentados no chão, ouvindo também, era o que mais
gostava, depois de agradar a Sinhá com tipuca.
Empaiolava o milho, as poucas braças colhidas por Severa e os filhos,
quando a notícia chegou. Na cozinha, o vozerio abafou os mugidos dos bezerros,
passando de hora de serem desapartados. Deralda gritou da porta chamando.
Tinham tomado o governo, estavam todos vivos.
Antoíno tocou os bezerros na aberta, margeando o canavial, até a eira
velha, sentou na areia, enquanto a bezerrada lambia sal, olhou a larga do
Marajó, respirou fundo e lembrou o pai, liberto como ele.
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