quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Celeste - MQ



Nenhuma lágrima verteu, apenas a sensação de todas elas dentro de si. Não demonstrava o sofrimento, gemendo no corpo junto com o cansaço dos últimos dias na cabeceira da cama. Dor tecida com a ausência que foi se consumando pela madrugada até o passar de Rosário.  

O banho solitário, possuído pela ausência, a escolha do vestido que havia de ser belo e discreto como o corpo macio e quente que fora seu, só seu, durante toda a vida.

Um silêncio maculado pelo Corpo de Pedestres desfazendo o ajuntamento na porta da frente, as frases distantes:

 

-         Dispersar... 

 

-         É um veloro.

 

As mãos seguravam o cabo do espelho e o pente sobre as coxas, como se estivessem mortos e insepultos, sentia um calor diferente tocando naqueles objetos.

No mesmo dia, embaixo da janela do quarto, cavou com suas próprias mãos e enterrou o espelho e o pente sob olhares espantados de todos da casa. Em silêncio, esperou duas lágrimas caírem, secando na terra, passou com suavidade as costas da mão direita no lugar e chorou outras mais.  

O vestido preto com mangas compridas e gola alta cobria seu corpo todo. Na cabeça, a mantilha preta com as pontas perpassadas e presas por um nó por cima da cabeça, cobrindo as orelhas lhe dava um ar de tristeza que fazia chorar pelos cantos os serviçais espantados com aquela tristeza.

Nas mãos luvas pretas quase transparentes, mantinha o anel no dedo da esquerda envolto em fita fina de seda, os grandes brincos encapados com o mesmo tecido preto, luto por todos os objetos do quarto conservado fechado, um tom de ausência, proibindo a luz do dia.

Passava dias e noites sentada na marquesa sem se alimentar, entre suspiros murmurando:

 

– Quero morrer também...

 

Do quarto nunca mais saíra, recebia as poucas visitas ali mesmo. Não falava com elas, só se deixava observar, olhando o vazio. O desatino que os da casa e quem a visitava não compreendiam, ia sendo falado por todos, seu corpo  perdendo as carnes, o mal cheiro exalava a falta de asseio. Era triste.         

 O tempo passava e passava seu silêncio. Dera de falar muito lembrando a infância, os pais, a convivência com as notícias de morte, as perseguições dos conhecidos, o surto de bexiga e um muito de coisas, algumas até, que ninguém entendia. Mas continuava recusando comida, dizia:

 

– Onde está, ela não come...

 

Os móveis cobertos de poeira e abandono, o lugar da casa onde ninguém mais entrava, um quarto abafado, sem uma réstia de sol, proibido a todos.

Foi encontrada já em estado de putrefação, sentada com a cabeça reclinada, na mesma marquesa, com o traje de seu luto puído pelo tempo, seu único alimento, a ausência, em restos espalhados nos detalhes da mobília do quarto enlutado.
 
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