sábado, 3 de agosto de 2013

Vicença e Marteniano - MQ

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O Auto de Perguntas dava todas as indicações da fuga. O perguntado, judiado até não suportar, urinado e defecado estava caído no soalho, morto. Peças do Senado da Câmara misturados com as dos moradores de São José do Macapá; machos, fêmeas e muitas crianças. Segundo as respostas, teriam primeiro destino a ilha de Mexiana ou Caviana, não sabiam qual, iam em, de emenda de dois paus, remados com as mãos.

De tudo sabido pela leitura que lhe fizeram, sem poder levar junto o mestiço tucuju; de certo sabia mais; sabia os caminhos daquela rota. Pensava o capitão do mato Maltino d’Almeida, saindo na captura.

Em Caviana, Marteniano e os dezoito fugidos da pedreira, mais os dezenove liderados por Vicença, oito crianças e a coragem de romper o sopro do vento até subir pela foz do Araguari, trabalhavam fazendo jangadas, remos, palhiças e juntando o de comer para a jornada.

Não chegaram a sair dali. O capitão e sua gente os tiveram peados no outro dia. Marteniano condenado à calceta; Vicença açoitada pelo próprio Maltino d’Almeida. Os demais castigados, mas sem a mesma severidade, foram reconduzidos aos seus donos.

As autoridades se reuniram para criar as rondas e impedir que escravos particulares tivessem qualquer contato com os do Senado da Câmara que construíam a Fortaleza, estivessem eles trabalhando nas pedreiras do Auará-peru e Cururu, nos olarias, telheiros de tijolos, fornos de cal, serrarias ou nos carretos e remos.

Marteniano e Vicença pela liderança naquela tentativa de fuga, a maior que se teve notícia, mais que todos eram vigiados e trancados. Ela, escrava doméstica com muita influência entre os índios tucujus e os outros escravos, sabia para onde ir viver em liberdade. Ele, carreteiro na pedreira, muitas tentativas de fuga, marcadas em sinais de castigo por todo o corpo, sonhava ser livre como o vento que soprava da foz do Araguari, aonde em suas fugas nunca conseguira chegar, sonhava atravessar o mar e voltar a sua origem.

Com o tempo, o castigo aos dois foi abrandando, Marteniano passou a trabalhar nos fornos de cal e, apesar das rondas, conseguiram ter contato um com o outro através da índia Turici que punha comida nas caieiras. Por ela, combinaram outra tentativa, desta vez por terra. Levariam somente Turici e seu filho rapaz.   

Andaram por planagens e igapós dias e dias sem detença, a não ser para tirar das roças que encontravam o da fome; margearam, não muito à beira da larga, mas na distância que dava pra ouvir o barrulho da mupororoca e por ele se guiando. Subiram pelo furo e o encachoeirado, encontrando o mocambo do Barreiro.

Estavam magros e cansados, cada corpo marcado pela fadiga foi tratado logo com sangrias, infusões e muita galinha. Todos vinham ver os chegados, buscando parentes e conhecidos. Vicença encontrou a irmã fugida fazia mais de dois anos. Turici e o filho, quase toda a aldeia. Marteniano não tinha ninguém para encontrar, sabia todos mortos no tumbeiro antes de chegar a Turiaçu. Sudanês andou de mão em mão, contrariando a fama da sua raça, sempre fugido, capturado, castigado. Sempre sonhando entrar no vento contra, era como imaginava voltar à África, por sobre as águas.    

Mais de duas centenas de índios e negros trabalhando o barro, fazendo tijolos para os franceses, no pequeno arruado, uma capela pra São Benedito erguida por eles com a orientação do padre francês que ali vivia. O lugar, organizado como se fosse uma vila com as raças misturadas no trabalho e no jugo da ordem, tinha do religioso direção.

Os mocambeiros viviam na alegria do cauim e dos batuques suas melhores horas. Para Marteniano era quando o banzo o pegava, ia para a beira e se deixava ficar de olhos fechados sentindo o vento esparramar as lágrimas no rosto e se imaginava numa jangada veleada, voltando.

Vicença sabia que um dia ele tentaria atravessar, ficava calada em pensar se a levaria junto, nos filhos que não teriam por conta seus dos testículos esmigalhados pela calceta; como era a África? Nunca ouvira falar de lá; igual não ouvira dos pais.

 Quando trouxeram Maltino d’Almeida e outros dois peados, caçadores caçados nos domínios dos quilombolas, Marteniano terminava de amarrar os dois troncos e fincar nas entalhas os mastros do velame. Julgando ser um fugido que chegava nem prestou atenção, foi preciso Vicença vir lhe chamar.

O olhar de menoscabo de Maltino d’Almeida, mesmo peado como fizera com tantos que o olhavam, era igual. Dispunham-se a azorragá-lo quando o padre interveio impedindo com o bom preço que os franceses pagariam por ele.

 Marteniano olhou de longe para o capitão do mato e de perto para Vicença com a cumplicidade que existia em suas vidas. Esperaram anoitecer e, andando pelas sombras,  soltaram-no e levaram para prender nos troncos.

No arrebol, aproveitando a primeira maré baixa do dia, amarrado pelas pernas na atada com a madeira da jangada, as mãos livres para remar, Maltino d’Almeida, escravo precito ia.

Juntos, Marteniano e Vicença, por dentro do vento, rente ao mar, começavam a travessia para a África.



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