No Reduto de São José, despojado de tudo na vida e dela se preciso fosse,
Nhanubuí, padecendo da agonia de tirar desforço do oficial das armas, fingia
dormir enquanto esperava a hora. A noite punha manto, um negrume retinto na
friagem da brisa e nas marolas quebrando silêncios.
Ardentias da aguardente mitigava a espera; o fel todo dentro de dois
bornais com pólvora juntada grão a grão durante meses. Tinha demorado a
reconhecer o tal Antônio Gomes, agora oficial de farda; não fosse pela cicatriz
nas costas até o alto das coxas, que viu quando levou a água do banho, nunca
lembraria.
O Itapicuru fazia a água toda, remansado. O casco boleava sem pressa, iam
descendo farinha, mel e trançados para a feira no Largo de Nazaré, quando avistaram
na margem, o primeiro corpo, antes de encostar avistaram os outros, mortos e
retalhados. O choro da criança foi o único sinal de vida... nascia desnatural,
do corte mortal na barriga da mãe agonizando.
Criada pelos pacajás, sem peito de mãe, desde pequena ouviu a história do
massacre de sua gente, o pai tapuio, pescador de ofício; a mãe índia pacajá com
seus quatro irmãos; o avô velho e dois tios com suas mulheres e filhos. Ao todo
quinze parentes. Contavam que a mãe, antes de morrer, falou da luta, do ferido
que ela mesma lanhou com o terçado, repartindo a carne das costas até as coxas.
Nhanubuí cresceu nos remos e na feitura de farinha, ouvindo sobre sua
gente e o jeito como nasceu. Alistado muito novo, andou em muitas Vilas, por
muitos anos na Fortaleza da Barra e, por fim, no Reduto de São José;
cartucheiro de carga rápida e bom manejo, se preciso fosse. Já estava ali fazia
tempo, nem se lembrava mais de sua história, sentia uma pouca lembrança da
aldeia onde fora criado, mas vivia sabendo que guardava uma raiva que não sabia
de quê; ficava agastado sem motivo; mas gostava de fazer tudo que lhe mandavam.
Muito calado, raramente ficava ouvindo as histórias dos outros soldados em
volta do fogo.
No Reduto de São José, nenhum comandante durava; cada disputa política na
província, saía um e entrava outro. Com eles, novos praças, novas ordens, restando
uns poucos, entre eles sempre Nhanubuí que não tomava partido de ninguém, era
por si, cuidava as ordens; bebia aguardente escondido antes de dormir, somente
quando vinha a zanga.
O novo oficial das armas de nome Antônio Gomes era famoso comboieiro e
chefe de captura; velho de riso destravado no olhar ruim; de todos, o melhor comando,
camaradeiro e de pouco rigor com as normas. Para Nhanubuí, mais um que tudo
queria e pedia só a ele, acostumado a servir prontamente.
Quando entrou com a água quente o viu de costas, nu, com o sujo manchando
o corpo e a cicatriz, um risco reto das costelas até a nádega direita quase
formando outra.
A lembrança do que ouviu quando pequeno chegou junto com a danação;
estava na frente do homem que matou sua mãe e seus parentes. O sangue
esquentou, calando dentro de si a vontade de acabar com ele no mesmo momento
que lembrou.
Desse dia, prestou mais atenção no que o oficial contava em suas
bravatas; histórias das cambocas seviciadas com os homens da aldeia, peados
assistindo a tudo; dos negros homiziados trazidos sem colhões e orelhas. Cada
uma delas ouvidas pelos praças, entre risos e a bazófia que tinham pra contar,
a minoria, mestiços como Nhanubuí que, silencioso, agora descobria suas pendências...
pensava crueldades; lembrava da aldeia onde foi criado... de falarem da beleza
da mãe; dele, menino olhando o fogo queimar.
Daquele dia em diante,
começou a trabalhar a acangatara, plumagem por plumagem, pena por pena,
trançado por trançado, assomado em saber, depois de tantos anos, quem esperava
estar morto ser Antônio Gomes. Juntava a pólvora, a aguardente e os chumaços de
algodão, escondendo no quarto de banho, esperava o dia.
Nesse, ao ouvir o grito
pedindo a água quente, se despiu do fardamento; apenas de acangatara, um archote
acesso na mão e o terçado na outra, entrou e fechou a porta com a tranca sem
que o oficial nem percebesse. O primeiro golpe acertou a cabeça e a
consciência; o segundo abriu a barriga de fora a fora onde Nhanubuí enfiou os
dois bornais de pólvora, estancou a sangria com algodão e esperou que ele se
mexesse para acender os chumaços embebidos de aguardente enfiados pelos
orifícios naturais.
O velho chefe de captura,
com a boca cheia de algodão, acabou nem tentando gritar, consciente, olhava o
mestiço pacajá vestido para uma grande cerimônia como uma alucinação; sentiu a
dor das carnes expostas, o cheiro de sangue e o calor do algodão queimar nos
ouvidos.
Tentava soltar o trançado
que lhe amarrava as mãos, quando a fumaça encheu o ar e o ventre queimou de uma
só vez. Uma dor lancinante o empurrou para nascer dentro da morte.
Nhanubuí ninguém nunca
mais viu.
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