O Compositor e o Sabiá
É interessante como uma coisa leva a outra. Um tanto cansado de literatura adulta, só pra relaxar, resolvi ler Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Ponto. Daí que nesse domingo mais recente, após o almoço, lá fui eu encarar a pia lotada. E, como já virou hábito, peguei meu iPod, fui até o youtube e procurei alguma entrevista interessante pra ouvir enquanto lavava os pratos. Acabei escolhendo um programa Ensaio, da TV Cultura, que eu ainda não vira, justamente um cujo entrevistado era Celso Viáfora, um de meus compositores preferidos. Em determinado momento contou ele que o mote de uma de suas canções havia sido “roubado” de um sabiá. E é aqui que volta o livro supracitado. Na hora deu um "clique" em meu cérebro e, embebido de Lobato e de Viáfora, me disse, “taí um bom material pra um conto!”. O resultado é o que vocês lerão abaixo.
O Compositor e o Sabiá
Por Léo Nogueira
Então, essa música, pra falar a verdade, a primeira frase, “peroberó peroberó beró”, eu roubei de um sabiá. Eu preciso falar isso agora pra desencargo de consciência. É uma história longa, mas, se eu não desabafar, vou passar o resto da vida me sentindo um plagiador. Tudo começou faz alguns anos. Naquela madrugada eu fui acordado por uma melodia. Isso é comum pra compositor, a gente costuma sonhar com melodias, daí acorda procurando um gravadorzinho pra fazer um registro dela, pra não perder a ideia. Só que naquela madrugada eu não sonhei, a melodia vinha de fora. Olhei pro despertador, eram 4 horas. E aquele som, meio assoviado, me encantou. Tentei não acordar minha esposa, fui tateando no escuro até achar meu gravadorzinho. Sim, eu sempre durmo com um gravador à mão pra uma situação dessas.
Daí achei o gravador e apurei os tímpanos pra ver de onde vinha o som. Vinha da janela. Caminhei até ela, tropeçando no escuro, e abri uma fresta pra poder ouvir melhor. Era um sabiá. Tem uma árvore na frente da minha casa, e naquela madrugada um sabiá tinha pousado ali e tava cantando esse “peroberó”. Achei tão bonito, que gravei. Depois voltei pra cama, mas quem disse que eu conseguia dormir? Aquela melodia não me deixou em paz enquanto não fui pra sala, peguei meu violão, um papel e uma caneta, e, um pouco sussurrante, pra não acordar minha mulher e as crianças, acabei compondo de chofre essa melodia de que te falei agora. Foi assim que ela nasceu. Claro, as outras partes melódicas quem fez fui eu, mas, se não fosse aquele “peroberó” inicial, ela não tinha nascido.
Mas o que aconteceu depois foi que me deixou encafifado. Vou falar um negócio pra você, eu componho faz tempo, as pessoas costumam gostar de minhas canções, mas essa... Com essa foi diferente. A coisa foi demais da conta. Desde a primeira vez que a mostrei pras pessoas, todo mundo adorou. Mas adorou MESMO! Não tinha um cristo que não se emocionasse com ela. Tanto, que eu fiquei até meio sem jeito de contar como ela nasceu. Já tive oportunidades pra isso, em algumas entrevistas cheguei a esboçar uma explicação, mas na hora H gaguejava e acabava inventando uma história qualquer pra justificar a existência dela. Pra você ter uma ideia, nem pra minha mulher eu tive coragem de contar. Sabe, a gente, compositor, é orgulhoso, a gente quer emplacar um sucesso, passa a vida tentando, daí, quando consegue, é em parceria com um sabiá?
Mas o pior ainda tava por vir. Isso foi só o começo. Aconteceu que, algum tempo depois, a história se repetiu, igualzinha. Lá estava eu sendo acordado por uma melodia maravilhosa, levantando, pegando meu gravadorzinho, vendo as mesmas 4 horas no despertador etc. E isso passou a ser um hábito. De tempos em tempos, lá vinha o tal do sabiá assoviar à minha janela. E sempre... SEMPRE com uma melodia diferente. Ele ficava uns tempos sem aparecer, de repente, do nada, vinha ele com um “peroberó” diferente. E lá ia eu gravar, depois ia pra sala, completava a melodia, criava uma letra e voltava pra cama umas duas horas depois com uma nova canção. E cada uma mais bonita que a outra. Quando dei por mim, já tinha um repertório inteiro pra um disco.
Sim, eu sei, eu devia era ter ficado feliz. O problema é que fiquei dependente desse bendito sabiá. Quando ele sumia, eu não conseguia compor nada. NADA! Passava horas e horas tocando violão à procura de alguma inspiração, mas tudo o que eu fazia me parecia superficial, sem consistência. E, em contrapartida, todas as canções que fiz “em parceria” com o tal sabiá se tornavam sucessos instantâneos, caíam na boca do povo. Quando pensei que não, já andavam por aí, independentes de mim, sendo cantadas em rodas de samba e tal. Muitas delas chegaram mesmo a ser gravadas por intérpretes de renome, e sempre com êxito. Um dia ouvi uma delas tocando no rádio, pouco tempo depois, outra já tinha entrado pra trilha sonora de uma novela. Até que em certa ocasião recebi um telefonema de uma gravadora com a proposta pra gravar um disco.
E de lá pra cá minha vida virou um turbilhão. Shows, viagens, entrevistas, o diabo a quatro. Você sabe. E eu nunca, NUNCA tive coragem de contar pra ninguém essa história. Pra não dizer que não contei, uma dessas canções batizei de O Canto do Sabiá, que acabou sendo também o título do disco, mas, quando alguém pedia pra eu contar a história dessa canção, eu desconversava, inventava uma balela qualquer... Você sabe, eu sempre fui bom de papo, daí era só abrir a boca e dizer o que viesse à mente. O problema era que eu esquecia o que tinha dito, daí, cada vez que dava nova entrevista, inventava nova história, e acabou que hoje já tem várias versões diferentes espalhadas por aí pra explicar como nasceram essas canções e, consequentemente, esse disco. O engraçado é que ninguém acredita mais nelas, mas, como conto tão bem, todo mundo continua perguntando.
O fato é que, apesar de todo esse sucesso, fui ficando deprimido. Até que um dia, numa madrugada, o sabiá apareceu de novo cantando à minha janela, como já virara rotina. Olhei a hora no despertador, eram 4h. O danado tinha uma pontualidade britânica. Só que dessa vez, em vez de correr pra janela com o gravador, tomei coragem e acordei minha mulher. Sacudi a pobre e perguntei “Querida, tá ouvindo o sabiá?”. Resolvi que eu ia contar tudo pra ela. Não podia mais viver com esse segredo. “Tá ouvindo, querida?”. Ela, naquele estado de quem se encontra meio desperta, meio dormida, balbuciou um “Que sabiá?”. Tomei-a pelo braço, levei-a até a janela, que abri de supetão, e falei, apontando, “Aquele!”. Ela arregalou bem os olhos, procurou, procurou, e sentenciou “Não tô ouvindo nem vendo nada. Volta pra cama, meu bem, você sonhou”. Mas eu ainda tava ouvindo!
Comecei a suspeitar de que eu tava ficando louco. O tal do sabiá não existia! Você sabe, eu sempre fui um cara inseguro, e, como tal, vivo meio que procurando motivos exteriores pra justificar minhas vitórias. Mas eu tava decidido, não ia enlouquecer. NÃO! Justo agora que tudo tava indo bem pra mim? Necas! Eu ia continuar tocando o barco... aliás, o violão. Daí que resolvi a questão me autoinduzindo a acreditar que esse sabiá era uma espécie de bruxo ou o espírito de algum antepassado que queria me ajudar. E, se ele queria, por que eu iria pôr tudo a perder? Não, senhor. Assumi uma postura positiva e toquei adiante a vida. Dizia pra mim mesmo que “esse sabiá não existe, mas eu acredito nele”. E assim continuou nossa relação tácita. Vez em quando ele aparecia, e eu sempre repetia a ladainha.
Até que um dia, quando eu tava na sala fazendo uma nova canção em parceria com o sabiá, de repente me assustei. Era meu filho mais novo, na época não mais que uma criança, que apareceu na sala, de pijama, bocejando e esfregando os olhos, e me perguntou: “Papai, tá ouvindo o sabiá que tá cantando lá fora?”
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Valeu, Quinan!
ResponderExcluirAbração,
Léo.