Horas esquecidas aquelas. Parecia madrugada. Silêncio e silêncio. Nenhum
remeiro. Nenhum carpinteiro de machado, nem calafates ou o oficial de mancebos.
Viva alma parecia estar na Casa das Canoas. A guarnição dormia, o oficial e os
praças de pré, em descuido com a munição que deveriam vigiar.
No palácio, o mesmo se dava porque só o Provedor dos Contos trabalhava em
silêncio, apenas deixando-se ver pela janela. De repente o martelar na madeira.
Hora que começava a funcionar a oficina do Padre Lázaro, no Carmo. Entalhador
já no fim da idade mas mantendo o ofício através das mãos de índios e
mamelucos. Despertava todos da modorra do meio de dia encalorado.
A oficina esculpia inúmeras peças ao mesmo tempo. O serviço dividido em
muitas etapas e por muitos braços tinha em João Curto o mais desenvolvido
artífice, orgulho de Padre Lázaro, já fizera um sem número de peças para enviar
a Portugal e Espanha, era quem dava os retoques finais em púlpitos, santos,
anjos tocheiros, móveis e ornatos. Comandava, junto com o padre, vinte e dois artesãos
entre oficiais e ajudantes. O apelido Curto vinha dos pequenos braços que no
começo de seu aprendizado entalhava nas imagens.
Era índio canoeiro, levado com a família para as fazendas da Santa Casa
ainda menino e de lá para o Carmo pelo Padre Lázaro que via nele o dom de lidar
com a madeira, educado na arte e na religião foi sempre o principal ajudante do
religioso.
Não falava muito mas era perspicaz e paciente. Usava com desenvoltura as
ferramentas, muitas aprimorou para melhor cortar a madeira e dar as formas.
Passava todo o tempo na oficina onde dormia. Parecia seu único interesse as
imagens que nasciam de suas mãos.
Padre Lázaro envelhecia depressa; fraco, já encurvando e enxergando
pouco, passava muito tempo na rede. Dali um dia não levantou mais, a morte o
levou silenciosamente.
Foi enterrado na igreja cujos entalhes e imagens foram feitos por ele
mesmo com a ajuda de João Curto, pequeno ainda. Seu orgulho de artista era a
pequena igreja e o Santo Alexandre, esculpido em itaúba e pintado com as cores
mais fortes que se conseguia tirar, tintas feitas de misturas, ensinamentos do
velho remeiro mundurucu, de nome Antu que tirava tonalidades do urucu e de
muitas outras bixáceas.
As exéquias foram acompanhadas pelas pessoas mais influentes e
importantes da província, todos os sinos ecoaram doloridos pela Cidade do Pará.
Emissários foram enviados ao interior proclamando o luto.
Terminada a cerimônia, João Curto foi chamado pela Provedoria dos Capelos
e Resíduos onde foi submetido a muitas indagações, recebendo depois, em testamento
nuncupativo, surpreso, os pertences pessoais do protetor e uma provisão em
moedas portuguesas.
Na manhã, conheceu Padre Serzedelo, o novo mestre dos artesãos. Quando
ele entrou, João Curto preparava, entristecido, urucu-una para um sombreado.
Quando o viu, sentiu um profundo no peito, uma ausência e não conseguiu fazer
mais nada direito; sua vida a partir daquele dia mudou, virou um tormento.
Começou a não se importar com o ofício; deixou de dormir no Carmo uma primeira
vez, ficando à mercê da aguardente. Foi acostumando sair todas as noites; numas
voltava, outras não, e em todas bebia.
O deszelo com o ofício deixava Padre Serzedelo enfurecido. João Curto
mudara completamente; passava muito tempo alheado, olhando uma imagem começada
com o enxó na mão, recusando ajudante; outras vezes parecia furioso e fazia em
horas o serviço de semanas. Se bebia, não encostava as mãos nas ferramentas;
aparecia desfigurado, sujo e taciturno.
O novo mestre dependia muito dele e não vendo outra forma de tirá-lo da
aguardente, confiscou as moedas que restavam; no mesmo dia, começou a sumir
vinho do sacrário. Reunida, a Provedoria dispensou João Curto dos afazeres, sem
permitir rogativa de Padre Serzedelo, tirando-lhe o lugar de dormir e proibindo
sua permanência nas dependências do Carmo.
João Curto nunca mais foi visto por ninguém; sabia-se dele apenas que,
por muitos dias, a aguardente que suas moedas puderam comprar ele tomou,
desaparecendo depois.
Os tocheiros, esculpidos em imbaúba, foram encontrados um ano depois dele
ter sumido; um de cada lado na porta da igreja, onde Padre Lázaro foi
enterrado, guardando a entrada.
As imagens de uma beleza nunca vista, pareciam vivas; as pessoas paravam
para admirar. Eram a perfeição. Os olhos pareciam de verdade enxergar; das tochas,
as chamas quase dançavam, apenas os
braços curtos seu autor delatavam.
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