quinta-feira, 1 de junho de 2017

Olho do boi

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Não queria ir, indo.
Calvário meu.
Puxado pelo laço prendido na argola do focinho, Lambari parecia ter entendido tudo. Caminhava lento, parava toda hora e olhava comprido para trás.
Desassossego meu, e as lembranças cutucando por dentro.
 
Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...
 
Sentado no cabeção, enxergando o pai por entre os chifres na entrada da Rua de Cima, provocando cobiça de Zarias pela canga de bois.

- Põe preço, seu Lino...
- O que num tem preço, no preço está, seu Zarias, dizia o pai passando a mão no lombo de Lambari.
 
Não queria fazer, fazendo.
Casa de Dito Cotobó, uma das primeiras da rua, com um pequeno curral na porta.
 
- Só pago 100. É boi véio, inda mais de carro, carne dura, só pago os 100. Ocê me dá ele morto, vivo num negoceio não.
 
Prevalecia Dito da situação. Quem num sabia da seca? Da tristeza do pai com a lida, depois da morte da mãe e de tudo que aconteceu? Nunca mais saíra de casa, falava quase nada o dia inteiro, era a vida da morte estampada na figura definhada, inconformada e sofrida. Desistindo da vida, como se todos os anos de labuta despencassem em cima, duma vez.
Dito sabia disso tudo e agora tirava proveito da minha pouca idade, da necessidade aparecida de dinheiro.
 
- E só compro o boi em consideração ao seu pai, prevalecendo.
 
Quando percebi, já estava com o machado na mão e ouvia Dito recomendar:
 
- Se quiser amarra ele no tronco.
 
Me vieram os pedaços primeiros da infância. Lambari descendo da invernada, garboso, encostando no cocho, esperando pela lida.
Lambari entristecido com a morte de Cafuncho, seu par de junta, picado de cobra.
Lambari, já velho puxando arado, serviço miúdo, não para ele que também nessa labuta tinha garbo.
Tristeza, e aquele machado queimando minhas mãos.
Me veio bem-querença, desde os primeiros alembros.
Calça curta ainda, ver Lambari descendo da invernada todo dia, no raiar, tomar encosto no cocho e esperar Lopoldo acabar de tirar o leite. Depois, o cangar das juntas.
 
Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...
 
O machado nas mãos, o lembrar queimando por dentro.
Quando saí na porta do terreiro, o olhar de Lambari me pegou inteiro. O brilho do olho foi se apagando devagar e aquela tristeza resvalou para dentro de mim. Não usei o laço, não carecia. Lambari ficou parado na minha frente, olhar mais triste que o do pai desistindo da vida. Ergui o machado e naquela hora nada se mexeu, nem eu. Lambari se virou em trote pequeno ganhou distância e veio em galope, como se  sua sina fosse só correr. No começo, achei que era em minha direção, mas não conseguia me mexer. À medida que o boi avançava, fui percebendo seus olhos, agora não me olhando mais, parecia fitar um ponto qualquer.
Poeira e o boi se aproximando.... Barulho do galope e o boi se aproximando.
Sentia o suor escorrer pelas costas, o corpo todo paralisado como pedra. Vinha ele.
À pouca distância, soltou as patas dianteiras no ar e cravou a testa no tronco, caindo morto ao meu lado, no meio da poeira que levantou.
Muitos anos já se passaram, hoje não careço precisão, mas não passa um só dia sem que o olhar do boi Lambari não lateje dentro de mim.
 
Êia, Lambari, êia, Cafuncho...
Milho indo, estrada ficando...
Boi formoso, carro cantando...
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