Davina era só pensamento, de tanto
o padre falar em anjos, pensava como seria a vida deles, por que cada um tinha
um da guarda? Será que, também, tinha um demônio para cada um, na tentação?
Olhava a figura do santinho que a
mãe lhe dera quando pequena, o anjo protegendo a criança quase caindo no
abismo. Era tão bonito aquele anjo. Será que cara teria o demônio? Pensava.
Será que o padre ia zangar com ela se perguntasse? Será que Lalinha tão sabida,
lia tantas coisas, podia explicar?
Davina ficava pelas tardes perdida
dentro da imaginação, sonhava com o anjo, com aquela beleza toda, lhe dando a
mão como fosse a criança do santinho.
Um dia, pediu que Lalinha
explicasse se, como o anjo da guarda, todos tinham um demônio da tentação. Como
era a cara do diabo, do anjo da guarda ela conhecia, tinha o santinho. Mas se o
demônio aparecesse como ia distinguir.
Lalinha, cheia de mistério, contou
que o diabo era a tentação em tudo, tinha qualquer cara que quisesse, ardiloso,
era coisa ruim, era o mal. Lembra dos sete pecados? Orgulho é coisa dele, a
inveja também, até uma bem pequena. Preguiça era ele atentando, a gula era ele
comendo dentro da gente, a ambição e raiva, tentação dele, e a luxuria era a vontade
de fazer coisas, sem-vergonhices.
Gostar de doce de leite era
pecado? Perguntava Davina. Gostar não era pecado, mas comer mais do que a fome
era. Respondia Lalinha.
As duas ficavam nessa conversa por
horas, enumerando situações de raiva, inveja, preguiça e ambição, quando
chegava na luxuria Davina queria saber mais. Não pode, é desonra, mas quando
você casar pode, não é pecado, Lalinha respondia como se soubesse tudo sobre
aquilo. Como? E não dói? Perguntava Davina. Não devia doer era abençoado por
Deus, deve de ser bom, mas sai um pouco de sangue. Antes de casar é como se
fosse o diabo fazendo, dizia Lalinha.
Durante muito tempo era o assunto
das duas, onde Davina visse Lalinha sempre tinha uma pergunta. Perguntava se
ela já tinha beijado. Se era pecado. Tinha que confessar? Isso era tentação?
Lalinha demonstrava conhecer o que
só tinha no curioso, nunca ia contar que sabia bem pouco daqueles assuntos,
gostava da admiração da amiga.
Necão conhecia todos na sala mas,
mesmo assim, não se dirigiu a ninguém, foi passando, generalizando o cumprimento.
- Tarde.
Nem prestou atenção se lhe
responderam ou não, foi direto para a cozinha em sorriso nenhum. A mulher do
Donato, que fazia o café, foi quem lhe falou.
- O senhor acalme seu Necão que
não há de ser nada, a mãe está com ela no quarto, a menina já serenou e o padre
foi chamado.
- Padre, prá quê! E esse povo aí
na sala? Que ajuntamento de gente é esse?
- O senhor não sabe o que
aconteceu com a menina? Se pôs no choro desde cedo e começou a gritar, não
deixando ninguém chegar perto, agora que abrandou. Gritava muito e falava
embaralhado, sem sentido.
- Por que chamar o padre?
Perguntou Necão, entrando no quarto onde a mãe e a filha abraçadas choravam.
- Foi o diabo, pai. Foi ele sim.
Enquanto falava, Davina se
encolhia na cabeceira da cama num choro doído, com as cobertas tampando o
corpo, ficando só a cabeça de fora. A mãe chamava por Nossa Senhora da
Conceição, e Necão, sem reação nenhuma, parado no meio do quarto não entendia
nada. Nesse momento o padre chegou, Davina, ao vê-lo, começou a chorar mais
alto ainda e a gritar.
- Foi o diabo, seu vigário, eu não
queria não.
O pai, se refazendo do susto,
esbravejou com uma raiva que nunca ninguém vira.
- Diabo coisa nenhuma, cadê esse
safado? Conta quem é, Davina, vou acabar com a raça dele. Quem é o desgraçado,
me conta, filha?
- Calma, seu Necão, pediu o padre.
- Ela está possuída? Perguntava a
mãe, chorando.
Com muito custo, o padre convenceu
o casal a sair do quarto e rezou por mais de hora, enquanto os vizinhos se
juntavam pelo resto da casa como se tivesse morrido alguém. Nessa hora, Necão
não agüentou e pôs todo mundo para correr, já com a espingarda na mão.
- Ela falou o nome do desgraçado?
Perguntava ao padre que saía do quarto com cara de pouco adianta.
Dobrando os paramentos, disse que
ela nem deixava ele chegar perto e que era um despautério essa história de
diabo, mas, por via das dúvidas, ele exorcizou a menina e benzeu o lugar.
Necão enfurecido entrou no
quarto seguido do padre e da mulher e encontrou Davina, ainda chorando, quase
nua, com o sangue escorrendo pelas pernas, tentando esconder o lençol sujo. A
mãe ao ver a filha daquele jeito, tirou o marido e o vigário do quarto,
chorando, ajudou a filha limpar o sangue do seu primeiro menstruo.
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