.
O cavalo de judeu pousou no
balcão da venda. Dé Cristão bateu a mão em cima, arrancou a cabeça, jogou fora
e comeu o resto, jogando a pinga por cima. Ninguém nem reparou. Todos já
estavam acostumados ver ele sentar na venda, beber e comer tudo que andava,
voava, nadava ou rastejava. Era nojento, mas era o costume dele.
De cristão só o nome. O resto não tinha nada. Era um
sujeito que, diziam, aprendera com a mãe, dona Filinta, a ter governo só pela
paga. A viúva, não se sabia de quem, morava na última casa da rua. Um lugar que
dava medo em qualquer um.
Dele, se dizia de tudo. Que nunca dormia, que comia de
um tudo, mas só cru. Que tinha parte com o diabo e não dava conta de contar
quantos já tinha despachado para o inferno ou para o céu; vai lá saber o
merecimento de cada um. Não escolhia ferramenta para o serviço, isso era só na
hora. Única coisa que aceitava combinação era na paga, o jeito de fazer o serviço,
esse não.
Quando perguntado pelo oficio, respondia.
- Ninhum.
Calado demais, rir ninguém ainda vira. Quando estava à
toa, era na venda do Manco, bebendo cachaça. Chegava, batia no balcão.
- Como vai, seu Dé?
- ...
Pegava a garrafa no balcão e dali não saía prosa
nenhuma.
Dos poderosos, não havia
quem não tivesse tido Dé Cristão a seu serviço por algum tempo, e era isso que
garantia ele andar por onde quisesse. Até o delegado chamava ele de seu Dé.
Fora
do ofício, não fazia mal a ninguém. Era até respeitador: o medo que tinham dele
ajudava muito, apesar de saberem que ele não tinha luta sua, só labutava na dos
outros.
Em qualquer lugar que fosse, não ia só. A uns cinqüenta
metros acima de sua cabeça, sempre o urubu-rei, voando em círculos. Se parado,
ele pousava no perto, vez ou outra no ombro de Dé. A noite, na casa, diziam que
ele dormia empoleirado na guarda da cama. Mas quem conversava com o urubu-rei
era a mãe. Ele era os olhos dela.
Quando
em serviço de passamento, tocaia ou coisa carecida de despiste, o bicho sumia;
mas não sumia não, voava muito alto para ninguém ver. Na morte semeada, chegava
logo. Bicava a melhor parte e seguia no depressa do acoitamento com Dé. Quando
era serviço de guarnição, com companheiros, tomava a dianteira ou a traseira
para dar os avisos de que carecessem.
Mês de maio, Dé Cristão voltando da empreita, tendo que
margear o Corumbá, no rumo contrário do rumo para misturar rastro. Serviço
feito com gente de família grande e importante, carecia cuidado melhor em
acoitar nos caminhos.
Urubu-rei deu aviso; era a tropa do Baldino seguindo
estrada com uma moça. Entrou no mato, se escondendo. Baldino parou para pouso.
Dé Cristão ladeou subindo no corte do morro até varar doutro lado, no emparelho
do caminho.
Chegou
madrugada minguando no dia. Esperou o Manco abrir a venda, bebeu sua cachaça
até o meio da manhã. E foi para casa.
À
medida que ia subindo a Rua de Cima, começou a notar os urubus nas taquaras das
cercas, nos telhados, nas mangueiras dos quintais. Pôs atenção, não viu o
urubu-rei. Voltou à venda e não achou o bicho. Desassossegou, foi no trote rua
acima. Ao se aproximar da casa, eram mais urubus assentados nas cercas, nas
casas e nos lugares. Quando deu na vista a casa da mãe, o telhado estava preto,
a cerca, o terreiro também. Nunca vira tanto urubu. E o urubu-rei voava em
círculos, baixo, soltando um grito estridente. Dé Cristão chegou no galope e
apeou correndo antes do cavalo parar. Os urubus assentados nem se mexeram. Dé
entrou pela porta da casa gritando:
-
Mãe...
O
corpo estava estendido no rabo do fogão; fogo ali não havia há dias, o corpo já
exalava cheiro. Dentro da casa, nenhum urubu, a não ser no batente das janelas
abertas. Dé Cristão enterrou a mãe ali mesmo no quintal. Quando acabou, nenhum
urubu.
Antes
de entrar pela porta da cozinha, ainda com a enxada na mão, quatro tiros acertaram
seu peito.
E
o urubu-rei soltou um grito estridente ao longe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário