O rosário corria pela mão fina de
Madalena, era o último dia da novena e ela não sabia o que fazer. Ele lhe
dissera que viria naquele dia. Ela rezava para que nunca chegasse. Os dedos
puxando cada conta do terço e o medo tomando
conta, medo de sair da igreja e encontrá-lo na porta.
Por que concordara com aquilo, não
era do seu querer mas mesmo assim dera a palavra sem nem conhecê-lo.
Antes de se benzer e sair, pediu a
Nossa Senhora da Conceição que mandasse o seu anjo de guarda para que a
protegesse e desceu as escadas puxando o véu da cabeça para os ombros. Foi
alívio que sentiu até a porta da casa quando viu o cavalo preto amarrado no
poste.
O corpo tremeu, era ele sentado na
varanda, muito bem vestido, todo de preto, chapéu de abas e botas de cano alto.
O bigode fino, e as sobrancelhas arqueadas davam a aparência de que ao sorrir seu
rosto se enchia de sombras.
Estava lá, sentado junto à
família, calado, esperando. Calado era o jeito dele, assim ficava.
Dali em diante, dormia na pensão e
mal o dia amanhecia estava ele de volta. Ficava o dia inteiro ali, entre
sentado na varanda enrolando o cigarro ou em pé, encostado no batente da porta.
Palavras poucas, vez ou outra, na cozinha, um cafezinho.
Acompanhava Madalena até a porta
da igreja todos os dias e ficava esperando a missa acabar na venda em frente.
No caminho de volta o silêncio era o mesmo. O medo dela era grande e o
arrependimento também.
Às vezes chegava a se surpreender
em maus pensamentos, uma morte qualquer... picada de cobra, um tombo do cavalo;
talvez, que as sombras do rosto dele o engolissem ou que o preto de suas roupas
o levasse para o quinto dos infernos. Quem sabe não engasgasse com alguma palavra,
já que falava tão pouco.
O dia ia chegando, ele esperando e
ela se preparando. A Tia ajudava no mais, a amiga Das Dores achava ele bonito,
fino. Das Dores dizia, sem graça e sem inveja, que ela ia acabar gostando.
Seria possível um dia gostar dele?
Do lugar onde iria morar? Do silêncio daquele homem sombrio?
Com o passar dos dias, foi se
acostumando com seu destino. Encontrava até alguma alegria em arrumar suas
coisas, terminar seus bordados em sua presença calada. Começou a reparar melhor
em suas feições, no jeito de lidar com o cigarro, com o cavalo. Percebia no
particular de seus gestos certo carinho. Era na véspera, até sorriu.
No dia, frente ao altar, reparou
ele todo. Cada passo que dava pensava no tanto que havia se avezado com ele. A
amiga Das Dores tinha razão, distinguia a beleza dele naquela hora da manhã, no
reflexo dos vitrais em seu semblante, ali esperando no altar. O sombrio de seu
rosto ficou para trás, naquela hora parecia um anjo. Quando ele estendeu a mão
para recebê-la no altar, Madalena sentiu aquele calor percorrer seu corpo e no
olhar dele uma promessa de amor, em silêncio.
Na despedida, o choro foi normal e
nas léguas passando, aquela mistura, a lembrança do que sentiria falta com o
que imaginava ser sua vida, dali agora.
Chegaram na hora do dia de mais
silêncio, ao avistar a casa toda caiada, varanda em volta, bica d’água com
monjolo na porta da cozinha e, ao lado, a horta verdejando. Lembrou de Das
Dores, falando que ela ia acabar gostando.
Quando viu na curva do rio o mato
virgem com os pés de ipê amarelo, todos floridos, entendeu o jeito calado do
marido. Era tanta beleza ali, os buritis formando, lado a lado, o caminho bem
cuidado, aquele dia claro e luminoso como se enfeitado para ela.
Nas poucas palavras dele mostrou
tudo e ela sentiu como se fizesse parte dali. Nas primeiras manhãs faltou
apenas ir à missa, depois nem se lembrou mais.
Foi se acostumando com o jeito
dele, nas intimidades, um fogo só, no gostar de andar sempre de preto, no modo
de lidar com os agregados, sempre com poucas palavras.
Ela nunca viu nada de estranho
naquele lugar, apenas o silêncio. Era raro um canto de passarinho, um mugido no
curral, até a chuva ali caía fininho, farfalhando pouco nas folhas; trovejo só
se ouvia longe.
Não estranhou nem mesmo quando, ao
tirar as botas do marido, descobriu o aleijão em seus pés repartidos em dois
dedos, como pés de cabra.
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