...
Nhãnacinha era nova e
miúda, mestiçada na proficiência da cura, herdade de africanos, holandeses e
nheengaíbas. Vivia com a mãe na casa velha abandonada, ao lado do cemitério. Usava fumo, pólvora,
caachica e copaíba em segredo de misturação; juntava emplastos, pedilúvio e
fumaça de diamba, variando modos para cada moléstia; isso não ensinava a
ninguém, enquanto fosse nova ainda, dizia.
Até a enfermidade exsudar
não saía de junto, trocando panos, untando partes, dando beberagem, mudando, se
preciso fosse, as infusões. Aparadeira, como gostava de ser chamada, lidando
com o natural de nascer, não dispensava as usanças, meizinhas feitas em fogo de
coco tucumã e emplastos com casca de anileira, ramos e raízes de ervas aromáticas
pondo asseio no ar.
Dores lancinantes,
submissão do conhecimento ao desígnio da morte, bafejando hálito frio na mãe e
no filho quase nascendo. Assim ele descrevia na sala, o parto. Que dia aquele,
chamar uma mestiça, feiticeira visitadora, com aquelas rezas e tratando o caso
com um esparregado sabe lá de quê, pensava o boticário Bartolomeu, demonstrando
no semblante sua indignação, mas dali não sairia; ia esperar o padre chegar,
queria ver sua reação.
Na cozinha e no quarto, o
corre-corre contrastando com o silêncio do resto da casa; um olor de muitas
misturas prenunciou os gritos da criança saindo para o mundo. Nhãnacinha
derramou uma casca ralada na farinha escaldada, deu colher por colher até se
apagar a alvura do corpo da quase morta, saindo silenciosa sem ninguém notar.
Quando chegou,
paramentado para a extrema-unção encontrou a mãe amamentando o filho ao lado do
marido, em meio ao ar perfumado. Bartolomeu queria ver o espanto que o
acontecido ia causar no padre, esperava conjuras. Mas tal não houve, ele apenas
quis saber quem chamara e onde estava a visitadora. Foi quando deram falta de
Nhãnacinha e o marido disse ter autorizado a parteira buscar a benzedeira, em
recurso de aflição depois de até o boticário desenganar.
O padre atribuiu à fé de
todos naquela casa, o milagre. Rezou o terço, respondido pela família, os presentes
e os escravos contritos. Recomendou antes de sair mais orações, talvez uma
novena e muita caridade.
Bartolomeu ainda demorou
em perguntas sobre Nhãnacinha, de quem ouviu quase nada. Curava, curava
qualquer moléstia era o que sabiam dizer. Nunca conseguia encontrá-la em casa,
a mãe não entendia, nem falava nada, parecia morta por dentro, ficava só
olhando, ausente, cuspilhando por entre os dentes podres.
O encontro dos dois se
deu por acaso nas matas de Nazaré. Ela sentada embaixo da copada parecia cantar
baixinho. Ele primeiro observou de longe antes de chegar perto.
-
Que
fazes Nhãnacinha?
-
Côiu
cura, seu.
-
Cura?
-
N’ora cá
vida anda nus drento, seu.
-
Tem hora
de colher?
-
Tem nas
foia, nus talo, nas raiz, nus musugo, n’ora du sagadro, dus cada, seu
Parecia falar sem sequer
abrir a boca, respondia como se adivinhasse o que ele ia perguntar. Espalhados
pelo chão em pequenos amontoados, cascas, raízes, favas, folhas secas, umbrelas
e, nos bornais, besouros e outros insetos. Admirado com a facilidade das
respostas, perguntava mais.
-
Colhe
cura também? Apontando o besouro.
-
Só côiu
cura, seu. Nus tudo, bichu, pexe, us qui avoa, in qui tudo tá vivim, se murre
ind’atá vivim, sirvintia dum nus otro.
-
Como
curou o parto?
-
I’eu?
Aparano... aparano...
Falava colocando e
tirando as mãos da testa, olhando desconfiada. Bartolomeu insistia em saber
mais, contava que também curava doenças, sabia muitos segredos, fazia remédios.
Ela apenas olhava e mexia a cabeça como se fizesse um círculo.
- Rhum, inda tô vivi’nha muto,
ensi’não.
-
Onde
nasceste? perguntou Bartolomeu.
- Baribó, seu.
Bartolomeu conviveu com
Nhãnacinha a partir daquele dia, aprendendo sempre alguma coisa, mais por
observá-la lidando com o colher cura,
como dizia, do que ouvindo dela. Nos muitos anos nunca soube tudo o que
continha, a dosagem e a mistura de seus preparados, nem como fazer os emplastos
e infusões, quando a levava na botica e mostrava os vidros com as diversas substâncias,
ela cheirava cada uma sem falar nada. Não raro era encontrar depois, quando
trabalhava na manipulação, um pedaço de casca, raiz ou até insetos em cima da
tampa dos vidros. Ia perguntar.
-
Nhãnacinha
ensina?
-
Chuu...
pirgunta, pirgunta... boca cume.
E juntando os dedos da
mão, apontando pra debaixo das pernas.
-
Discume...
ruim. Cura qui, seu.
E apontava o dedo nos
olhos, nos ouvidos, na outra mão e depois o passava pelo corpo todo.
-
Qui, qui
e qui...
Quando a encontrava na
mata, recebia bornais de folhas, casca de anileiro, em pequenos maços separados
e amarrados com palha de tucum ou a cuia de girinos; com o movimento, ensinava
esfregando com a mão fechada, a palma estendida da outra, o modo de extrair as
substâncias.
Bartolomeu, com a convivência,
aprendeu a perguntar sem palavras, ora com os olhos, ora tentando cheirar,
ouvir ou fazendo um gesto com as mãos, era o jeito de arrancar dela mais respostas.
De uma primeira vez
seguiram outras mais; Nhãnacinha numa serventia o levou junto. Ela o deixava ir
mas nunca se aproximar e conhecer seus modos. Ele de longe via aquela criatura
franzina, de mãos pequenas, se transmudar em meio às mazelas e o abandono
daquelas cabanas miseráveis.
Bartolomeu pedia com os
olhos, ensina mais?
-
Rhum, inda
tô vivi’nha muto, ensi’não, seu.
Mas ensinava a seu modo e
Bartolomeu ia aprendendo e sempre pedindo fora das palavras, mais.
Mal abriu as portas,
chegou o recado urgente, doença, mando de Nhãnacinha. Foi o mais rápido que pôde
e a encontrou prostrada na rede, emborcada no fundo parecendo ter diminuído de
tamanho, com as pequenas mãos segurando a fronte como se a cabeça doesse
muito.
- Nhãnacinha, o que tu sentes?
-
Gorinha,
onte, tavo vivi’nha muto, seu.
E
começou a tossir seu último suspiro.
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