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No embornal, levava a
paçoca feita por Didinha na véspera; na mala de saco, traspassada na sela, duas
mudas de roupa e, no coração, vontade de chegar logo e ver como era ela. Meu
olhar ficava perdido nas patas da mula da frente, como se cada passo deixasse
para trás um pedaço.
Distraía tanto no pensar
que nem ouvi o urro da onça no Capão de Dentro, terras de Cristino da Barreira.
Mas a mulada ouviu e se assustou fazendo trote, desorganizando a comitiva. Bem
que o pai tinha avisado para esperar o cometa do Baldino; acompanhar a boiada
era mais difícil.
Apesar de as mulas com o
rancho estarem na frente da boiada, quando elas se assustaram, o gado ficou
nervoso e se dispersou pelo mato afora com o descontrole dos vaqueiros de
Tertuliano. Juntar a boiada de novo foi trabalho de um dia; mais de dez
novilhos desembestaram para o lado do mato contrário ao urro da onça, na
juquira pura, terminando no Ribeirão da Concórdia. E foi lá, no contrário do
urro, que achamos, na outra margem, a toca da onça.
Foi só contar, que Zé da Cabaça já começou a se arrumar
para a espera, apesar da reclamação de todos, fosse pelo carecer do serviço,
fosse pelo perigo. Avaliando o urro, era bicho grande, pelo tamanho da toca,
então, assustava mais ainda. Mas Zé da Cabaça não labutava com medo, não. Afamado,
tanto na mira como pela paciência; caçador de paca sem igual. Capaz de ficar
noite inteira em cima do jirau, à espera. O apelido era por causa da cabaça
onde urinava nessas horas, para não deixar cheiro e a caça espantar. Matar uma onça
era um ato de respeito que, até hoje, ele não
havia feito, e agora não ia desperdiçar uma chance daquelas.
Acompanhou a boiada até meia légua do lugar, esperou
organizar o pouso e a noitinha chegar e saiu rumo da toca da onça.
A merenda já estava cheirando quando apareceu Zé da Cabaça,
cabeça baixa.
- Ela num apariceu, disse. E se ensimesmou no resto da
viagem.
Chegamos ao curtume já no
meio duma manhã de domingo; despedi dos companheiros e na casa do padrinho
Delmiro banhei, indo, com ele direto para a casa dela.
Conheci primeiro o pai e a
mãe. O café. Ela que fez, disse dona Laura. Depois de muito prosear, falando
dos teres e haveres, foi que a chamaram. Era muito formosa, mais que podia ser
no meu pensamento.
Pouco mais de mês fiquei no Vai Vem, em compromisso do
noivado; marcamos data e tive estrada, levando, dentro, o cheiro dela.
Fui, com o padrinho, até a Forquilha no compromisso
dele e, de lá, na passada do Baldino, segui com ele.
O pai tinha razão, com o cometa a viagem demorava
menos, apesar do descarrego e carrego das mulas em cada dormida, dos pousos
demorados por conta dos negócios de Baldino.
Na passagem pelo Capão de
Dentro, avistamos ao longe um homem entrando nos matos; quando chegamos perto,
era Zé da Cabaça lidando com o almoço. Seis codornas, já assando, pareciam nos
esperar.
- Suzinho no mundo, seu Zé da Cabaça. Falou Baldino.
- Tô na labuta cum onça, seu Baldino.
E contou que já fazia mês que estava à espera da onça;
passava a noite em cima do jirau e nada da
bicha. De dia, distanciava para o cheiro
não acusar. Não a viu nesse tempo todo,
mas as marcas do rastro estavam por todo lado. Já tinha estudado o terreno por
onde ela chegava; tinha entrado na toca
muitas vezes para ficar com o cheiro dela. Não tomava banho, só passava as
folhas do mato no corpo para não recender cheiro de gente. E nada da onça. Mas
que ela estava por perto, ele tinha certeza.
Seu Baldino ria muito e falava para o Zé da Cabaça:
- Onça é bicho tinhoso. Ela já sabe que ocê tá tocaiano
ela, ela óia mais procê do que ocê prá ela. Ela sabe mais docê que ocê dela. É
no dia que ela tá drumino, inganano o amigo.
- Deveras seu Baldino?
Seguimos viagem, deixando ele resolvido tapear a onça;
pondo sentido no de dia e no de noite.
Didinha fez paçoca,
almôndega, farofa, piou na vara muitas galinhas e mais um-sem tanto de matula.
E dessa vez toda a família, mais dois vaqueiros, num todo de vinte bocas para
comer as gostosuras de Didinha, caminho afora. E meu coração querendo chegar
logo, saudades dela, cheiro dela cheirando em mim.
Chegando ao Capão de Dentro, quando eu contava ao pai a
história do Zé da Cabaça com a onça, o cheiro de perdiz assada, denunciou: era
ele.
- Seu minino, como vai? Inda num topei cum ela.
Quase ano ficou Zé da
Cabaça ali, à espera da onça. Até roça ele fez, distância de quarta de légua da
toca, com a permissão de Cristino da Barreira.
- Seu Baldino tava certo, ela vai no igual que i’eu. Já
tive de testa cum ela muitas veiz; quando faço a mira, ela some. Tamém ela
quase me cumeu, mas o gaio quebrô e dotra veiz i’eu pulei no corgo e nadei nus
debaxo.
O tempo passou. Meu mais novo já ia fazer sete anos,
quando passei no Capão de Dentro de novo, conduzindo uma boiada, já com minha
própria comitiva. Quando lembrei do Zé da Cabaça, toquei o berrante como
marcando o lembrar. Senti o cheiro do assado no ar. Era ele mesmo, Zé da
Cabaça, ali, no mesmo lugar, com duas codornas e uma perdiz já no ponto de
comer.
- Seu minino, cumo vai?
- Vou bem seu Zé. E a onça, já matou?
- Inda não, meu fio. Mais já tá marcada de chumbo. I’eu
das unha dela.
Abriu a camisa mostrando a cicatriz das garras da onça.
- I’eu num mato ela e ela num mata i’eu; custumamo e vamo
seguino a lida.
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