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Vagava na chapada, havia
mais de vinte anos, conhecia ela como a palma das mãos, caminho, atalhos, jeito
de chegar. Era Baltazar. Uns diziam que era descendente de ciganos, outros que
era dali mesmo. O certo é que cruzava aquelas terras, trabalhando ora aqui ora
ali, sempre muito considerado por todos. Da família diziam que só restava ele.
- Seu Baltazar, apeia.
- Cumo vai dona Filó? Bom dia, seu Aniba.
- Dia. Chegô na hora, Filó cabô de passá um café.
Achegue.
- Cum gosto, seu Aniba, cum muito gosto.
Ali mesmo, entre gole e prosa, tratou do serviço. Na
preferência de Baltazar, trabalhar ali era o melhor. Fosse pela paga, fosse
pelo trato, além de poder pôr os olhos em Das Dores, que quanto mais passada do
tempo, mais boniteza acumulava. Em sendo filha única de seu Aniba e dona Filó,
ficava no vantajoso da herança, mas isso não era cobiça de Baltazar.
Das Dores, moça donzela, jeito de menina ainda, apesar
do maduro nos anos, vivia na conformação de solteira vida afora. Bonita, isso
sim, ela era: o rosto, os olhos claros, os cabelos lisos sempre presos para
trás, e o corpo escondido naquele mesmo jeito de se vestir. Baltazar não tirava
a atenção dela. Coisa que seu Aniba logo avaliou nele foi a bem querença
escapulindo nos olhos, nessas horas.
- Seu
Baltazar, já pensô tomá sussego na vida, pará num canto, radicá?
- Dô prá isso não seu Aniba, ponho custumação in lugá ninhum.
Ponho gosto é nos caminho, na istrada.
- I’eu mais Filó tamo ficano véio, nóis só tem Das
Dores e a terrinha. Se nóis fartá é ela só no mundo.
Numa pausa.
- Faço cumbinação, cunheço ocê prá mais de vinte ano,
ponho reparo nos oiá docêis dois, fereço a mão dela e tudo que carecê.
- Na honra fico seu Aniba, no acanho de respostá tamém.
A conversa acabou ali. No outro dia, nem a paga
Baltazar esperou. Ganhou estrada.
Dois anos passados.
Das Dores estendia as roupas na frente da casa para
quarar, quando avistou no longe o cavaleiro, caminhou até o batente da
porteira, enxugando as mãos no avental. Distinguiu Baltazar ainda no longe. Seu
coração disparou; sem pensar muito, abriu a porteira.
- Cumo vai, Das Dores?
- No custumá, em como Deus qué.
- E seu Aniba, vim tê uma prosa mais ele.
- Foi na rua cum a mãe, apeia.
Baltazar desceu do cavalo, levou o animal para o cocho
e sentou na soleira da porta.
- Nem fiz armoço ainda. Se quisé merendá, a mãe dexô
quitanda feita. Vô passá um café.
- Carece não, Das Dores. Gradeço. Sabe do assunto qui
quero pôr trato cum seu pai?
- Magino, mania do pai querê rumá casamento de
cumbinação, mais quero não, quero só se for de bem querê.
Baltazar ficou surpreso e envergonhado, disfarçou o
quanto pôde, tentou mudar o rumo da conversa, mas ela insistiu.
- Foi pur isso que ocê sumiu, igual fugino, foi o pai?
- Cumbinação foi não, ele só falô que punha gosto.
-
E ocê põe?
Ele ficou um bom tempo pensativo, meio encabulado, sem
saber o que fazer com o chapéu que tinha nas mãos. Mas respondeu balançando a
cabeça afirmativamente.
Das Dores abriu um sorriso e falou bem baixinho,
enquanto olhava Baltazar bem nos olhos.
- Brigado Santo Antônio.
Ele, por sua vez, sentiu o coração bater mais depressa.
Nunca tinha sido olhado daquele jeito antes. Conhecia o afeto de muitas pessoas
encontradas vida afora por onde seu caminho levava, nada como o que Das Dores
demonstrou com aquele olhar. Os dois parados no meio da cozinha, água fervendo
no fogo, nem notaram a chegada de seu Aniba e dona Filó que, da porta, os
olhavam. Seu Aniba tossiu e pôs o quebrar naquele momento.
- Cumo vai Baltazar. Veio recebê a paga?
- Vim foi pôr trato de casamento cum Das Dores, se
ainda é do agrado do sinhor e dela.
- É do seu agrado, minha fia?
Ela, baixando o olhar, sem graça:
- Se for do seu, pai, do meu é.
- Vamo cunversá lá no terrero, seu Baltazar.
Estranheza de Das Dores, que conversa seria essa? O pai
vivia tentando arranjar marido para ela.
Tomando o rumo da cerca, seu Aniba foi pensando na
conversa que tivera com ele, no seu sumiço de dois anos, e em toda aquela
situação repentina, agora.
- É de seu querê mesmo? Tá resorvido tomá sussego? Puis
reparo no que aconteceu dois ano atráis.
- O sinhor sabe da minha andança, que sô respeitadô;
nesses dois ano garrei a pensá na vida. Das Dores tá no meu pensá faiz muito.
Fugi no acanho de num sabê do gostá dela. Agora sei.
O casamento se realizou meses depois. Os dois viveram o
primeiro ano sem filhos; no segundo, nasceu o primeiro e, daí em diante, foi um
atrás do outro, para alegria de Das Dores. No todo, doze.
Baltazar tomou amor pela lida e, uma vez por ano,
levava o gado para vender no curtume. Demorava mais que o necessário, mas era
do saber de Das Dores que ele corria a chapada toda matando a saudade das
gentes e dos lugares. Mas quando voltava, era como no dia em que pediu sua mão.
Tocava o berrante no longe e chegava sempre cantando.
quando ando
no sertão
careceno
pricisão
eito prá
invergá o corpo
sei que num
farta não
quem me é de
valia
ladainha
creio
rezei tantas
esqueço não
Das Dores largava tudo o que estivesse fazendo e o
esperava com a porteira aberta e a quantia de amor que cabia no seu olhar.
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