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Mougins, 2 de dezembro de 1968
Estou lhe escrevendo, pois nestes
tempos estava revisitando minha vida. Acho que está chegando a hora. A saúde
não anda boa. Aquela coisa que você, Miró e eu chamávamos de “insanidade de
Deus”, lembra? Essas moléstias... Como pode alguém construir algo que deveria
ser eterno, mas que é bastante perecível? Estou fazendo um projeto com gravuras
agora, nada de pincel para não dar aos críticos engraçadinhos a possibilidade
de analogias simplórias com meu último nome. Ou cansar este braço por demais
cansado. Estava lembrando a infância, e outros caminhos que percorri. Muitos
momentos. Em alguns deles estava você. E no mais marcante também. Ainda não
consigo me perdoar por aquilo. Aquilo me persegue até hoje. Comecei a planejar
uma nova obra, composta de 347 gravuras. Pois bem, nos temas novos o circo, as
touradas, situações eróticas, claro. Esses 87 anos me ensinaram a gargalhar em
silêncio. Situações eróticas... Que coisa! Chega de pintar a pobreza, a cegueira, a alienação e o
desespero. Gilot não gosta muito deste assunto erótico propriamente dito. Ela insiste
que eu volte às raízes. Mas sabe como é mulher, acha que somos sempre completos
como no começo de toda relação, e não sensivelmente fracos a nos apaixonar por
novos hábitos, novas idéias. Lembra das litografias e cerâmicas? Queria ser
somente um artista na perecividade da vida. Mulheres... Passei a chamá-la de
“Gilotina”. Cortante assim.
Lembrando estes dias moribundiantes, consegui colori-los
com as memórias. Lembro-me de quando foi me ver antes de ir ao Louvre. Daquele
seu olhar asfixiante, reverenciando-me de uma forma que não esquecerei. Essa
loucura que você sempre teve, e que as pessoas achavam que era fazendo tipo.
Quem sabe até Leonardo estivesse realmente a frente de nosso tempo, e na
antítese de Mona Lisa estivesse essa loucura que falo do seu olhar. Nós em
Paris, discutindo seu anarco-monarquismo. E boas doses de álcool. Ah, estas
doses, com tantos goles... Nós na inebriante Catalunha, cambaleando por aquelas
ruas, anônimos. Você, Miró e eu. Da Passagem Saint-Lorrane, aquela dos
prostíbulos. Eu só de lembrar que você fazia aquela brincadeira de mexer as
orelhas, assustando as moças. Uma veio correndo em minha direção dizendo que
seu bigode estava batendo asas. Miró já atordoado, inebriante e gritando:
“Corre senão ele abre a boca e solta o pássaro que está lá dentro pra te
pegar”. Lembra? Aquela epidemia espanhola que se espalhou, dizem, pelos
pássaros. As brincadeiras que você fazia com as moças. Ah, este tempo que não
volta. Estas mãos trêmulas, em tinta viva. A carne ficou nos quadros. E quando
lembro dos seus não me perdôo. Ah, Dali, sei que a inspiração de um artista
sobrevive de tragédias. Pode ser no amor que ela aconteça, mas é pela tristeza e
pela tragédia que a inspiração permanece.
Nao sei se escrevo me despedindo, ou se de certa forma
tento me desculpar por algo que nao consigo voltar atrás. Perdoa seu amigo. Não
consigo me redimir daquilo. Aquela noite que fundamos algumas bases que estes
novos artistas usam até hoje. Aquele papo do Miró de técnicas de tracejamento.
Eu nao consigo esquecer aquela sua coleção de relógios. O que fiz foi
imperdoável, mas você imortalizou em sua obra. A sala de sua casa era
magnífica, com todos aqueles relógios, dos mais diversos lugares do mundo, de
presentes de diverso governos, alguns até mantidos na família por gerações. Eu
e este meu sono profundo, pesado, causamos tudo aquilo. A forma como virei,
sonambulamente na madrugada, e bati com força naquela frágil parede derrubando
e quebrando a maioria dos relógios da sala. Eu sei que voce conseguiu salvar
apenas dois, mas me penitencio pelos outros cinquenta. Até entendo que nossa
relação naquele momento rachou, embora tenhamos conseguido retomar de um ponto que
me orgulho. Mas hoje choro por lembrar da forma contemplativa como me olhou
naquela primeira vez. Você diz que meu trabalho lhe inspirou bastante, que fui
seu mestre em alguns momentos de indecisão no processo criativo. Que ter
destruído sua coleção de relógios lhe marcou muito, mas quando vi seu primeiro
quadro, onde eles aparecem, nao parei de chorar por muitos dias. Os relógios
“escorrendo”. Aquele tempo que não volta. E que nao pára. Perdoa-me neste fim
da vida. Perdoa-me por ter te inspirado tragicamente a retratar estes relógios
esvaindo pelo chão, este tempo que escorre ainda hoje de minhas mãos. Perdoa-me
por um prejuízo que lhe pago de uma outra vez. Numa outra insanidade de Deus.
Eternamente
Pablo Diego José Francisco de
Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santissima Trinidad
Ruiz y Picasso.
Marco Antonio Quinan
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