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Quando viu, veloz e em saltos no meio fechado do mato,
pensou: guariba. Não era. Pensou pintura sem preceito, desar. Não era. Caça
fora de hora no espaçado do dia, parecia.
Acompanhou pisando
silêncios até o destro gesto. No outro, metade susto, metade medo. Caça nada,
parecia resto de fogo sem fumego, avaliou quanta carne, armou a borduna de
tucum, recém tirada.
Queria o assado vivo, pensou; esse prostrou manso
facilitando o golpe ou adivinhando intenção de ser levado. Olhou no detalhe
cuidando distância; viu os molambos que o outro vestia; a pele porejando,
escura e brilhante. Não resistiu, baixou o braço e o tocou com a ponta da arma
falando.
- Iên... iên... iên...
De joelhos,
sem entender aquela língua mais estranha ainda do que a que vinha ouvindo desde
o navio, levantou a cabeça e gesticulando desandou a contar sua história para
espanto e risos do pajé. Ria de sua fala mais enrolada que a dos outros e de
seu jeito de animal já ferido. Sem entender as risadas, o negro voltou cabisbaixo
para sua submissão. Calaram-se. O escravo esperava o golpe, o pajé queria ouvir
mais, apontava a arma:
-
Iên... iên... iên... pedia ouvir.
Ficaram
tempo... um gesticulava e falava muito; o outro ria sem abandonar o domínio da
presa. Quando o índio ria, o negro parava e abaixava a cabeça. Parecia uma
brincadeira, o índio lembrava o movimento da dança do tamanduá, boleando a
arma. O negro medrava como precito, bongando dor como no castigo do bambaquerê.
Entraram
juntos para espanto da aldeia, o pajé o exibindo como um animal de estimação.
Esperou juntar todos em volta e cutucou falando:
- Iên... iên... iên... repetindo a brincadeira que fez muitas risadas.
Desse dia em
diante, o negro virou a sombra do índio, sempre um passo atrás, acompanhando
onde quer que fosse, era servidão e a curiosidade em aprender puçangas e
feitiços, não ocultando modos que sabia, conhecimentos de raízes, folhas e
musgos. Quando os dois se embrenhavam no mato, ficavam por dias e dias colhendo
toda sorte de ervas e, de retorno, faziam experimentos, beberagens e inalações
como se fossem dois boticários em pesquisa de cura.
Virou um igual
- de nome ficou Iên - a sombra do pajé a quem chamava Zu Munducu. Inseparáveis.
Calada a língua, falando por olhares,
sinais e meios, se entendiam mais ainda no colher ervas, em lidar com as encantarias
e na evocação de espíritos, sabedoria de um e de outro se misturando e
misturando as línguas.
Iên vivia na maloca sem participar de nenhuma festa,
deles, recebia nestas ocasiões, o naco de comida das mãos de Zu Munducu; mas
pelas frestas do palhiço acompanhava as cerimônias de preparo da carne, fosse
caça ou carne humana; as danças e rituais de alegria e cura.
Afastado dos demais, ficou até o dia que trouxeram um dos
presos, peado no cercado. A pancada na testa derrubou o corpo no chão. Iên
olhou Zu Munducu, viu consentimento. Correu, tomou a dianteira pra descarnar,
cabendo, valente, nas vistas de muitos e no espanto do pajé. Cortou como eles,
limpou, corou como nunca viram, esfregava as costas da mão esquerda na cavidade
do ventre e entoava palavras parecidas com as já ouvidas. Soaram melancólicas,
calando qualquer riso. Foi olhado de um modo diferente quando pelou pernas,
braços, separou a cabeça e entregou ao pajé, murmurando profundo como no
ritual. Serviu as partes dando gritos e rindo alto, tinha aprendido tudo.
No passar do
tempo a aldeia foi se acostumando com a presença do negro, todos o tratando
como igual, aceitando outros escravos fugidos, como ele, aparecendo sozinhos,
em pequenos grupos e, às vezes, misturados com índios de outras aldeias, chegados
por vontade, sem lutas.
O lugar ia
cafuzando, crescendo seus domínios, misturando as raças e os costumes,
protegido pela valentia e mistério. O jeito dos negros em tratar os fugidos
contaminava. Passaram a fazer o mesmo com os capturados transformando o Abaribó
numa mistura de muitas tribos com quilombolas. Lugar de liberdade, calaçaria, igualdade,
magia, dançarás e alegria.
Tapuiúnas e
tapuitingas impregnados naquelas matas surpreendiam comboieiros e grandes
descimentos, aumentando a população raciada de índios, negros e mestiços
aldeados na extensão de muitas léguas.
Acumulavam a
comida viva, aprisionada, para grandes festejos. Comum, Zu Munducu, separar dos
brancos os que tinham algum traço de sua raça ou da de Iên. Esses viviam em
liberdade, a menos que não se submetessem, eram tratados como iguais,
alimentados e não trancados em cercados vigiados, como os outros.
Eram mais de
sessenta peados, um jesuíta e oito brancos fortemente armados. Foram dominados
na escaramuça, maior grupo preso pelos abaribós, dos oito brancos, três
feridos, dois mortos e comidos no local do encontro. Primeira vez que
capturavam um padre, causou rebuliço. Muitos ali conheciam os jesuítas das
missões, esse foi mantido separado dos demais, era um fascínio para as mulheres
que dele cuidavam, comia muito e nunca foi comido, morreu velho, ensinando
coisas, trancado mas espalhando descendentes. Do tempo, desse dia, ficaram poucos
rituais. Os capturados serviram de
escravos até se acostumarem ao jeito de viver no Abaribó, virando gente de lá,
se misturando nos quereres de todos, plantando mandioca, fazendo farinha,
aprendendo junto alegrias e todas as danças.
Os infensos
acabavam por deixar envelhecer cativos no mais bruto dos fazeres, vigiados sem
castigo até a morte. Serviam de brincadeira para as mulheres e crianças. Uns
tentavam fugir, sem caminhos, errando o rumo das águas, se perdendo dos limites
e se embrenhando na sesmaria dadivosa, corpos nunca achados, virando húmus ou
comida de animais.
A sabedoria de
Iên e Zu Munducu perdurava pela lembrança de todos; anos de harmonia com o natural
e as encantarias, inçando quem chegasse fugindo do que quer que fosse.
Quanto mais
crescia o lugar, mais ousados ficavam, indo longe buscar pelas trilhas,
capturar viajantes de quem esbulhavam tudo. Como os dois ancestrais cuidavam
harmonia. Nessas incursões fizeram o primeiro contato com um regatão, na tensão
de armas que só não resultou em luta porque a cor da pele identificou iguais de
um lado e de outro.
Dali ficou, para
os abaribós, o comércio das drogas do sertão, as trocas e a fama do lugar que
correu pelas águas, levada pelo comércio ambulante dos poderosos, ligando-os
aos oprimidos e desvalidos, atraindo fugidos que achavam o rumo das suas
terras, lugar onde tudo se podia.
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