Vinha no rebojo do braço
de rio que crescia e minguava solavancando as águas, remoinhando como numa
bateia, fúria de vento encanando rodopio, hora tardia de margear, pensou antes
de avistar o mandiocal.
A riqueza estava ao seu
alcance, podia tocá-la; com a moeda entre os dedos, pensativo, passou o polegar
no serrilhado como se conferisse o valor, pôs-se na direção até enxergar a
casa.
O silêncio conferiu,
todos dormindo; no claro da noite escolheu onde esperar a melhor hora. Na
aurora ouviu os primeiros movimentos, se aproximou vendo Vicente Martins Lopes
sentado na rede calçando as botas, subiu dois degraus da varanda e disparou. O
estampido ressoou pela casa na primeira hora da manhã, quem correndo chegou
perto ainda viu o último sangue esguichando, estava morto.
Pantaco, sem que ninguém
o visse, entrou pelos matos, mesmo caminho que veio, atravessou a calma das
águas naquela hora, ia buscar sua riqueza com os irmãos do morto.
Vicente Martins Lopes era
o primogênito, filho de reinóis, nascido na Cidade do Pará, beneficiado com o
morgado do pai, herdade, escravos, casa comercial e outras rendas.
A irmã, Constância, viúva
sem filhos, vivia com ele no casarão da Rua dos Mártires; seu irmão, Jorge
sempre em viagens pela Europa, custeadas por Vicente que nunca se casara,
passava muito tempo na fazenda desde que se unira aos foreiros para se opor aos
sucessivos governos portugueses e seus simpatizantes que menoscabavam o valor
dos brasileiros.
Pantaco, de mãe africana
e pai mameluco, moreno claro, forte, bem vestido e calçado por exigência de
sinhá, parecia um alforriado bem sucedido quando andava pelas ruas. Mas vivia
junto com os outros quatro escravos no casarão, era o preferido da senhora e a
servia como se fosse uma mucama.
Jorge, sempre que voltava
de suas viagens, manifestava à irmã o descabido; não dividirem os cabedais
deixados pelo pai. Precisavam fazer alguma coisa, não podiam ficar à mercê do
irmão que vivia metido com foreiros, pregando idéias de infames. Queria vê-lo
morto, já que não aceitava falar em dividir os bens.
Observava a dedicação do
escravo à irmã com malícia no olhar mas também com a naturalidade de homem
muito viajado, freqüentador da corte, acostumado com o predomínio da vontade
dos mais poderosos. Via em Pantaco, escondida, a mesma ambição que sentia.
Aliciá-lo, para seu propósito, foi mais fácil que convencer Constância.
Pôs em sua mão a primeira
moeda portuguesa das muitas que receberia; instruiu, junto com a irmã, a alforria.
Combinaram esperar seu embarque para Portugal, a animosidade aumentar na
política da província e os outros da casa acostumarem com Pantaco dormindo, de
vez em quando fora, em serviço de aluguel na marinhagem. Constância concordava
em acompanhar pelo pasquim pregado na porta da Lopes & Filhos, a situação
política e dar o dia certo da consumação.
A notícia chegou do Acará
junto com o corpo, um casal de escravos e o velho tapuio Buiú. Espalhou-se
entre os políticos rapidamente levando muitos deles, consternados, a se reunir,
partidários e oponentes culpando uns aos outros.
Pantaco providenciou, na
igreja, o sepultamento, a mortalha, a música fúnebre e o pagamento das mortuárias.
As exéquias, no mesmo dia, foram assistidas na igreja, cheia de partidários do
morto, muitos comerciantes e algumas autoridades, num ambiente tenso de olhares
acusadores e de muita tristeza da irmã.
Na cerimônia, o
comandante das armas fez a promessa de todos os esforços para encontrar o
assassino que já estava sendo procurado pela milícia desde aquela manhã. Tropas
tinham sido enviadas à Vila do Acará para investigar junto com as autoridades
de lá.
Sem testamento, o espólio
foi arrolado, enquanto Jorge voltava de viagem, os negócios tocados por Constância,
com ajuda de Pantaco, na cidade, e do tapuia Buiú, na fazenda, pois mais
entendia das ocupações já que vivia lá desde menino, sempre o braço direito do
patrão.
No mesmo dia em que o
navio aportou trazendo Jorge, Buiú chegava do Acará. Vinha trazer a farinha e
buscar o de prover. Encontraram-se na Rua do Norte e seguiram juntos até o
casarão onde o tapuia sempre dormia junto com os escravos.
O encontro de Jorge com a
irmã e Pantaco foi mais de silêncios do que de cumplicidade; alguma coisa
estava diferente, o escravo aumentara a intimidade com a irmã que parecia se
submeter ao olhar dele. O acerto se deu poucos dias depois, venderiam e
dividiriam tudo. Jorge queria viajar pelo mundo, Pantaco receberia sua pequena
fortuna em moedas portuguesas como combinado e teria oficializada sua alforria.
Constância sonhava morar na França.
Começou desconfiar no dia
do enterro, passada a cerimonia. Pantaco pareceu inquieto demais; nos dias em
que ficou no casarão Buiú notou as pequenas coisas que aconteciam, incomuns
antes da morte do patrão: o escravo dando ordens com voz autoritária, vestindo
roupas que só poderiam ser do morto e recebendo incumbências da senhora sempre
de portas fechadas. Quando acompanhou Jorge pela rua, no dia de sua chegada,
viu a pouca bagagem que trazia, estranhou. Conhecia seus hábitos elegantes
desde pequeno, ao contrário do irmão, um rústico, vivia folgazão, desfrutando
do nome da família pelas altas rodas, sustentado como estudante, sem nunca ter
pisado na escola em Coimbra.
Na casa, mal se via
Constância, sempre pelos quartos trancada numa tristeza maior que o luto quando
o pai morreu.
Buiú andou pelas ruas,
nas bodegas e terreiros. Entre remeiros, aguadeiros, soldados, procurando saber
o que comentavam. Nos ajuntamentos de escravos, apesar de proibidos, ouviu
muito sobre política e deserções, nada do crime.
Procurou os conhecidos
alugadores que viviam se gabando das mortes executadas, ninguém sabia de nada
e, entre eles aquele caso era tido como coisa de família, muito escondida.
Falavam que se fosse política saberiam, quem contrata vingança quer que todos
saibam, modo produzir o temor. Fosse política, mais temor ainda.
O tapuio passou dias
vigiando Pantaco até ficar, sozinho, frente a frente, sustentou apenas o olhar
no susto dele, não disse uma palavra sequer. O negro, com o deixar cair dos
ombros e o semblante, confessou. Foi a reação esperada, Buiú estendeu a mão
esquerda espalmada e com a outra em perpendicular a palma estendida, fez
pequenos movimentos batendo a direita rapidamente, próximo dos dedos, próximo
do punho até ouvir no silêncio de Pantaco, concordância.
Dividiram a pequena
fortuna e nunca mais foram vistos.
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