segunda-feira, 1 de junho de 2015

Cavalo de guia - MQ


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Acha que tem dó no mundo, pois não tem; ninguém tem dó nem do cavalo nem do cavaleiro.

Pensa que eu não penso que é só labuta? Que sou ensinado porque venho do pasto sozinho, engano. Tenho é dó e nesse costume, qualquer dia vão me soltar no pastinho de arreio e tudo. Acho que eles deixam ele dormir de roupa. Consideração pouca tem esse povo dele mas... o de comer quem traz?

Deixaram de novo ele deitado no banco. Vem pôr esse arreio logo, menino. Enquanto não enfio a cara na janela da cozinha, dona Socorro não esperta. Qualquer dia vou dar é um coice na porta.

Chegou o arreio, depressa menino, cedo é a hora melhor. Rimmm... Minha boca, seu moleque desgraçado.

Isso é todo dia a mesma coisa, subir ele na sela, e a má vontade do menino em nos levar até o começo da rua. Era trabalho nenhum. Depois, era eu que fazia todo o caminho, debaixo do sol quente, parava em todas as casas, por conta da caridade.

Quando o menino ia junto, era mais fácil. As pessoas se assustavam, menos com o Divino, coitado, magro demais, todo torto e paralisado de um lado, a mão esquerda prejudicada, parecia mão de menino pequeno. A perna esquerda, de tanto sentar para um lado só da sela, murchou. Mas o que mais assustava as pessoas era o balançar dos olhos de um lado para o outro, muito rápido, juntado com o tremor generalizado do corpo, a baba e o puxar do ombro esquerdo para cima.

Aquela comichão no corpo dele começava de baixo para cima e sacudia até o meu pêlo. Era como se o tremor fizesse parte do respirar dele.

Tinha dia que a doença atacava mais, ele se desgovernava e caía da sela. O povo passava mas não socorria, tirando Da Luz, essa sim, se via, corria e punha ele de novo na sela. Sempre comentando, como se Divino entendesse:

 

- Por que seu povo não te trata direito? Seu menino devia estar junto. Onde já se viu. Nem banho tão te dando.

 

Essa era criatura boa. Do povo da Vila, a única que não fingia não ver. Qual fosse o dia, o ajutório dela vinha para dentro do saco.

Sina dele, assustar; a minha, tolerar o sol quente o dia inteiro. Do peso dele reclamava não, era coisa pouca. Mas ficar na porta das casas esperando as pessoas reparar para pôr um ajutório dentro dos sacos amarrados na sela, isso era penoso. Mas enfiar a cabeça na janela como fazia com dona Socorro, assustava. Já tentei antes e uma vez levei um balde d’água na cara.

Não que tivesse escolha, mas esse serviço não prestava. Às vezes, parado na porta duma casa, via passar os outros cavalos e os invejava. Aquilo é que era vida, não essa de carregar Divino pedindo esmola pela Rua de Cima inteira e, depois pela Rua de Baixo, todos os anos, nessa mesma lida.

Apeava ele direto no banco e tirada a sela, me soltava no pasto com aquele tapinha na bunda que me enfurecia tanto. Diversas vezes tentei acertar o coice, mais aquele menino só tinha o de danado.

Da beira da cerca via o jeito que tratavam ele na hora de esvaziar os sacos e trocar aqueles pelos limpos. Único asseio daquela gente. A mulher dizia que os sacos tinham que estar limpos para ninguém ter receio de pegar neles para pôr as esmolas. Mas Divino, para esse tinha que faltar asseio e despertar dó. Ainda reclamavam: “só deu isso?”

Já tinha visto muito o jeito de eles dar banho. Banho de acento aquilo lá, não era não. Jogavam dentro da bacia e deixavam horas misturando lá o tremor do frio com o tremor do sestro dele.

Pensa que eu não penso, era só o que eu fazia. Ver todo dia aquela judiação e a cada dia Divino mais velho e pior da doença, e eles falavam que era sestro. E, cada dia, o trato piorava. O menino crescia e ia ficando pior.

Um dia, notei que ele estava balançado mais que o normal, seus olhos indo na intenção de enxergar o lado esquerdo e o direito do horizonte, ziguezagueando por essa linha, parecia querer ver os dois lados ao mesmo tempo. Alarmei e fui direto para porta da casa de Da Luz, onde comecei a relinchar o mais alto que podia. O socorro veio, mas quando ela chegou no portão e pôs a mão na tramela, o corpo despencou do arreio e Divino já caiu no chão, morto.

Passei mais de mês me escondendo do menino no pastinho, e procurando jeito de tirar aquela sensação de tremor do meu pêlo, mas mal o sol nascia a comichão começava e ia até a noitinha. Não escapei de nenhum, o menino me achou e o tremor ficou agarrado em mim, marcando a sina.

Dona Socorro arremedava. No começo mal, mas com o tempo e ajudada pelo meu próprio tremido, foi se acostumando e fingia nos mínimos detalhes a doença do marido. O povo generoso dizia que a coitada tinha pegado a doença dele.

O costume de vir do pasto sozinho, mantive. Mas o resto mudou, dona Socorro começou a afinar, atrofiar e a babar como Divino. O menino continuou a me puxar pelo cabresto até o começo da Rua de Cima. Mas, da feita que entrávamos na rua, quem ditava as regras era eu.

No começo ela sofreu tanto que chegou a trocar de cavalo por uns dias. Mas não deu certo, o colega não era acostumado, não tremia como eu. O que não ajudava nada o fingimento dela.

Dona Socorro pena até hoje, quando fico tempo demais nas portas da caridade, debaixo de sol quente. Não pode pôr comando na frente dos outros, nem quando chegamos em casa. Se me judia, como no começo, me escondo no pasto e o de comer tem que esperar o menino me achar.

Não ponho governo nela, nem deixo ela pôr em mim. No menino já acertei muitos coices por conta daqueles tapas na bunda.

Na porta da casa de Da Luz, com ela nunca parei. O saco pendurado no arreio volta sempre mais minguado que nos tempos de Divino.

Foi assim que tirei proveito da minha sina. Porque cavalo também pensa. Ora se pensa.

 

 

 
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