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Acha que tem dó no mundo, pois não tem; ninguém tem dó
nem do cavalo nem do cavaleiro.
Pensa
que eu não penso que é só labuta? Que sou ensinado porque venho do pasto
sozinho, engano. Tenho é dó e nesse costume, qualquer dia vão me soltar no
pastinho de arreio e tudo. Acho que eles deixam ele dormir de roupa.
Consideração pouca tem esse povo dele mas... o de comer quem traz?
Deixaram
de novo ele deitado no banco. Vem pôr esse arreio logo, menino. Enquanto não
enfio a cara na janela da cozinha, dona Socorro não esperta. Qualquer dia vou
dar é um coice na porta.
Chegou
o arreio, depressa menino, cedo é a hora melhor. Rimmm... Minha boca, seu
moleque desgraçado.
Isso
é todo dia a mesma coisa, subir ele na sela, e a má vontade do menino em nos
levar até o começo da rua. Era trabalho nenhum. Depois, era eu que fazia todo o
caminho, debaixo do sol quente, parava em todas as casas, por conta da caridade.
Quando
o menino ia junto, era mais fácil. As pessoas se assustavam, menos com o
Divino, coitado, magro demais, todo torto e paralisado de um lado, a mão
esquerda prejudicada, parecia mão de menino pequeno. A perna esquerda, de tanto
sentar para um lado só da sela, murchou. Mas o que mais assustava as pessoas
era o balançar dos olhos de um lado para o outro, muito rápido, juntado com o
tremor generalizado do corpo, a baba e o puxar do ombro esquerdo para cima.
Aquela
comichão no corpo dele começava de baixo para cima e sacudia até o meu pêlo.
Era como se o tremor fizesse parte do respirar dele.
Tinha
dia que a doença atacava mais, ele se desgovernava e caía da sela. O povo
passava mas não socorria, tirando Da Luz, essa sim, se via, corria e punha ele
de novo na sela. Sempre comentando, como se Divino entendesse:
-
Por que seu povo não te trata direito? Seu menino devia estar junto. Onde já se
viu. Nem banho tão te dando.
Essa
era criatura boa. Do povo da Vila, a única que não fingia não ver. Qual fosse o
dia, o ajutório dela vinha para dentro do saco.
Sina
dele, assustar; a minha, tolerar o sol quente o dia inteiro. Do peso dele
reclamava não, era coisa pouca. Mas ficar na porta das casas esperando as
pessoas reparar para pôr um ajutório dentro dos sacos amarrados na sela, isso
era penoso. Mas enfiar a cabeça na janela como fazia com dona Socorro,
assustava. Já tentei antes e uma vez levei um balde d’água na cara.
Não
que tivesse escolha, mas esse serviço não prestava. Às vezes, parado na porta
duma casa, via passar os outros cavalos e os invejava. Aquilo é que era vida,
não essa de carregar Divino pedindo esmola pela Rua de Cima inteira e, depois
pela Rua de Baixo, todos os anos, nessa mesma lida.
Apeava ele direto no banco e tirada a sela, me soltava
no pasto com aquele tapinha na bunda que me enfurecia tanto. Diversas vezes
tentei acertar o coice, mais aquele menino só tinha o de danado.
Da
beira da cerca via o jeito que tratavam ele na hora de esvaziar os sacos e
trocar aqueles pelos limpos. Único asseio daquela gente. A mulher dizia que os
sacos tinham que estar limpos para ninguém ter receio de pegar neles para pôr
as esmolas. Mas Divino, para esse tinha que faltar asseio e despertar dó. Ainda
reclamavam: “só deu isso?”
Já
tinha visto muito o jeito de eles dar banho. Banho de acento aquilo lá, não era
não. Jogavam dentro da bacia e deixavam horas misturando lá o tremor do frio
com o tremor do sestro dele.
Pensa
que eu não penso, era só o que eu fazia. Ver todo dia aquela judiação e a cada
dia Divino mais velho e pior da doença, e eles falavam que era sestro. E, cada
dia, o trato piorava. O menino crescia e ia ficando pior.
Um
dia, notei que ele estava balançado mais que o normal, seus olhos indo na
intenção de enxergar o lado esquerdo e o direito do horizonte, ziguezagueando
por essa linha, parecia querer ver os dois lados ao mesmo tempo. Alarmei e fui
direto para porta da casa de Da Luz, onde comecei a relinchar o mais alto que
podia. O socorro veio, mas quando ela chegou no portão e pôs a mão na tramela,
o corpo despencou do arreio e Divino já caiu no chão, morto.
Passei
mais de mês me escondendo do menino no pastinho, e procurando jeito de tirar
aquela sensação de tremor do meu pêlo, mas mal o sol nascia a comichão começava
e ia até a noitinha. Não escapei de nenhum, o menino me achou e o tremor ficou
agarrado em mim, marcando a sina.
Dona
Socorro arremedava. No começo mal, mas com o tempo e ajudada pelo meu próprio
tremido, foi se acostumando e fingia nos mínimos detalhes a doença do marido. O
povo generoso dizia que a coitada tinha pegado a doença dele.
O
costume de vir do pasto sozinho, mantive. Mas o resto mudou, dona Socorro
começou a afinar, atrofiar e a babar como Divino. O menino continuou a me puxar
pelo cabresto até o começo da Rua de Cima. Mas, da feita que entrávamos na rua,
quem ditava as regras era eu.
No começo ela sofreu tanto que chegou a trocar de
cavalo por uns dias. Mas não deu certo, o colega não era acostumado, não tremia
como eu. O que não ajudava nada o fingimento dela.
Dona Socorro pena até hoje, quando fico tempo demais
nas portas da caridade, debaixo de sol quente. Não pode pôr comando na frente
dos outros, nem quando chegamos em casa. Se me judia, como no começo, me
escondo no pasto e o de comer tem que esperar o menino me achar.
Não
ponho governo nela, nem deixo ela pôr em mim. No menino já acertei muitos
coices por conta daqueles tapas na bunda.
Na
porta da casa de Da Luz, com ela nunca parei. O saco pendurado no arreio volta
sempre mais minguado que nos tempos de Divino.
Foi
assim que tirei proveito da minha sina. Porque cavalo também pensa. Ora se
pensa.
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