sábado, 20 de setembro de 2014

João Fandro e Francisco Rugoso - MQ

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Ajudante ponçador, com a mão suja no esbulho urdido nos dias, João Fandro, funcionário encarregado da impressão dos títulos, separava desadorada quantia para o bolso.


Avaro sabido por todos de sua convivência, possuía escravos comprados em muitas pagas mensais, disfarçando seus atos. Eram só machos, fugidos maltratados pela captura; peças rejeitadas, com cacundas, dentes apontados, sinais de açoite e toda sorte de defeitos.


A escravaria alugada aparentava se sustentar e sustentar o seu aumento, mas, na verdade, era um negócio sem renda que acobertava o espoliado dos cofres da província.

João Fandro levava a sério o fingimento, parecia o que fingia, brigava pela menor diferença no preço do serviço ou em qualquer negócio, e cuidava dos negros com zelo, muita farinha e peixe seco. Viviam longe de assuadas e feitiçarias, nenhum escravo seu era visto desocupado ou com a roupa molhada. Chamado para, com eles, aumentar uma multidão, levava uma metade parecendo ter só aqueles.

Gastava devagar os títulos que circulavam como moeda, fingia alheamento com as demissões e nomeações, ora o tirando do cargo, ora nomeando para um outro.

Com o depresso, tantos querendo vender para fugir, o medo dos cabanos dominando a província, ele não acreditando no que os revoltosos pregavam sobre a libertação dos escravos; adquiria todos que lhe surgiam em modalidade de preço conveniente a sua conhecida sovinice. Em poucos dias, comprou mais negros que os mais abastados comprariam em muitos anos, gastando tudo o que tinha. Esperto que era os ofereceu em aluguel, parte ao comandante das armas do governo cabano, e a outra à marinhagem nos navios que lhes opunham.

Francisco Rugoso, seu mais antigo escravo, velho de orelhas cortadas em castigo, carapina de olhar limpo e bom remeiro foi o único que ficou com João Fandro.

Quando iam aos navios, Rugoso sentia vontade de delatar João Fandro aos oficiais, entendia pouco o que se passava mas, os cabanos não cumpriam a promessa de liberdade, então era mais vantagem ser escravo de abastados senhores do que dos foreiros e arrendados. Pensava.
Quando andava pelas ruas, sentia a mesma vontade de falar com os chefes cabanos da esperteza do dono. Ouvia entre os negros e mestiços dizer que estavam organizando o governo da província para depois cumprir as promessas. Pensava em João Fandro contando tudo que via em terra aos oficiais da esquadra, dando detalhes do que se passava. Sentia raiva de não delatar, se misturava aos valentes, ouvindo contar a vitória, era um deles nessa hora.

Uma noite, remando de volta, fez um barulho a mais e recebeu a vergasta no rosto, a raiva o ajudou a decidir, ia denunciar João Fandro aos cabanos. A rapidez dos acontecimentos adiou sua decisão, em poucos dias o governo mudou. Em meio àquela confusão, Rugoso não sabia mais que partido tomar, os cabanos brigando entre si, a esquadra fundeada no largo em alerta, recebendo pessoas fugindo da desordem. Resolveu esperar.

João Fandro não notava no escravo qualquer possibilidade de insubmissão. Para ele, Rugoso era cúmplice devotado e incapaz de sair do seu mando. Achava que os comentários que fazia sobre estar dos dois lados e o tratamento zeloso fosse o suficiente para mantê-lo fiel. Acenava com vida boa, sonhando com a nomeação para a provedoria da fazenda, fosse num governo ou em outro, cortejava e tinha promessas dos dois lados, dizia ao escravo, acreditando fazê-lo lembrar os tempos passados de muita fartura.

O dia que Rugoso decidiu e denunciou João Fandro, os cabanos entregaram o governo da província, nem prestaram atenção nas acusações. Rugoso morreu como um desconhecido, pouco tempo depois, fugido e em armas junto com os mais radicais que atacaram e massacraram a Vila de Vigia.

João Fandro perdeu muitos que seguiram o mesmo caminho de Rugoso; foi nomeado funcionário pelo novo presidente da província e manteve o que restou deles no ganho pelas ruas. Nunca entendeu o velho carapina ou fez queixa de nenhum dos fugidos.




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