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Ao sentar do sol vinham João Colonado, mulato zanoio e forte, com as últimas folhas de buçu que faltavam pra cobrir a maloca; a mulher Tenanaí, índia tembé, moça ainda, seguindo atrás com o jamaxim cheio de açaí e nas mãos o cacho de pupunha. Andavam pelo caminho novo, volteando o igapó rasado com a maré, quando começaram ouvir o barulho, vozes e as pancadas secas, seguidas de outras abafadas, vindo da parte mais firme do Penacova. Parou no caminho, procurando a direção do vento com o meneio da cabeça para ouvir melhor. Pressentiu coisa ruim, mandou Tenanaí seguir só e foi por entre o mato espiar o que era.
Enquanto caminhava, o silêncio foi permeando e o barulho sumiu no ar, dificultando achar o lugar de onde vinha. Por entre as folhas, observou tudo que vazava o silêncio, nada viu. Dispunha-se desistir quando ouviu o grito lhe dando o rumo. Eram marinheiros que se lavavam no igarapé. João Colonado observou as ferramentas amontoadas junto ao fardamento e, temendo ser descoberto, voltou às folhas de buçu, seu caminho, chegando à aldeia junto com a noite.
Não quis contar o que viu, pareceu esquecer mas na verdade o pensamento não se punha noutra coisa. Sabia os homens serem estrangeiros, mesmo forro, tinha remado por muitos anos, daí ter conhecido os Tembés, o proeiro Cananaú, irmão de Tenanaí. Sabia o ofício da marinhagem, os homens que se lavavam pareciam fazer alguma coisa escondida, seria ouro? Casa de canhão? Precisava descobrir o que era. A noite não lhe arrumava sono, aquele supor o impeliu a voltar ao Penacova antes que o dia viesse.
Armou-se de borduna, facão, farinha com peixe seco e vagou pelo lugar até encontrar no limpado os três montes de terra, aproximou-se, cuidando o menor barulho no medo que alguma vigília houvesse, na valia do que fosse.
O escuro da noite abria um tom em volta do enorme buraco negro feito pela marinhagem. Parecia reter a escuridão tragada de todas as noites. Sentiu medo da grande cova, lembrou da bexiga matando tantos, o cemitério cheio, as valas comuns abertas no cemitério novo, a pústula vitimando autoridades, senhores, escravos, índios e raciados. Sem escolher situação, privando os poderosos das exéquias e honras militares.
João Colonado esperou o levantar do sol. Escondido na toiça, mastigou o peixe seco com farinha, abasteceu a cuia de água e viu as primeiras horas da manhã passar no trinado dos pássaros. Atento, acompanhava cada movimento de bicho, de vento e da preamar. Pensava de novo na doença; fosse ela por que abrir cova tão longe? Distraído, só percebeu a presença de Tenanaí quando ela tocou-lhe o ombro. O susto não foi maior do que ver chegando os marinheiros transportando corpos, muitos corpos. Trazendo e os atirando no buraco. Todos homens, muitos fardados, brancos, negros, mulatos e cafuzos com pouca marca de luta, mas com sangue seco pelas roupas, todos com o rosto e as partes do corpo muito amareladas, engelhadas, como fossem anosos.
O casal viu jogarem na cova mais de duas centenas de cadáveres, em muitas viagens que deram até a margem; dali não podiam sair sem serem vistos. Quatro marinheiros armados de mosquetes vigiavam as ordens do oficial.
De onde se escondiam, João Colonado não entendia o jeito de eles lidarem com aqueles mortos, o descaso com as pústulas quando as tocavam sem temor. A mulher ao seu lado, sem senso, acompanhava cada pá de terra jogada como se contasse o tempo, querendo sair dali.
O quente do dia parecia alongar as horas que duravam aquele grande enterro comandado em língua inglesa, familiar a João Colonado, mas que ele não entendia palavra. Só tinha certeza da febre pútrida dizimando de novo.
Depois da última pá, enquanto uns esparramaram a terra, nivelando o terreno, cobrindo de folhas, outros se banharam e embarcaram no lanchão.
Em marcha rápida, João e Tenanaí voltaram à aldeia convocando todos, contando o que viram. No mesmo dia, os Tembés se puseram em rumo ao fundo mais fundo da mata, contrário ao Penacova.
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