Ela cardava o algodão ensimesmada,
triste e calada, aquele choro miúdo para dentro. Lembrava Altino, Eleonora e o
pai, sentia tristeza sentada no canto, nem o gato Beleu, brincando com os
novelos, lhe tirava dos pensamentos.
Pensava no para trás da vida,
lembrava do dia que Altino chegou, empoeirado, arrastando a perna quebrada e
ela o socorrera. Lembrava daquele olhar que lhe dera, do prazer de rasgar a
perna da calça, os dois sozinhos na casa inteira, no dia inteiro. O pai mais
Eleonora chegando de noitinha com trovejo e uma chuva miúda, perguntando quem
era estendido no catre da sala, aquela brabeza de sempre, condenando tudo que
ela fazia.
O interesse de Beleu, passando de
um lado para o outro, encostando na perna sã de Altino.
Doía recordar, a invídia da irmã
manifestada na hora que o moço acordou, o interesse do pai quando soube ser
Altino sobrinho do seu Rubilão da Malhada, fazendeiro próspero e conhecido de
todos, a melhor terra do lado de Minas. Antevia ele casamento, não dela, sempre
restando, mas de Eleonora. Acabava assim, com o encanto de ter sido notada por
Altino.
Lembrava da conversa na cozinha,
sentados no banco rente ao fogão abrandando o frio que a chuva trouxera, e
daquele vento esparramando carusma na toalha que Eleonora, exibindo as prendas,
punha na mesa. O olhar perdido e a voz dele explicando o tombo na grota e o
desnorteio do rumo. Quando encontrando o dela, era como se a chamasse de anjo.
Cardava devagar aquelas
lembranças, misturando-as ao algodão de primeira apanha, nas lágrimas escondidas
no olhar distante, sentia a inveja da irmã e o desprezo do pai, ainda ali,
naquela casa vazia, sentindo ainda o cheiro dele. Ouvia sua voz, no longínquo
do pensamento, pedir a mão de Eleonora. Quanta vontade teve de chorar na hora,
e mais ainda, quando sozinha no quarto.
Ajudando preparar a viagem do pai
e da irmã para casa dele em Minas. Vontade de chorar, mas só o fez por dentro.
Sozinha aqueles meses todos e depois quando convivia com eles casados, morando
naquela casa tão sua, tão só sua, vontade de chorar.
Lembrava de esforçar naturalidade
quando via chamego entre os dois. Quando começou a pensar em fazer, não
lembrava o momento exato, ficou perdido na memória, resvalando entre o dia em
que os vira nus, se pertencendo, e quando eles e o pai a apartara duma conversa
a respeito da lida na fazenda.
Lembrava o escorralho da caneca de
alumínio que ela limpou bem antes de devolver ao criado no quarto do pai. Ele
não devia nem ter sentido o gosto do veneno ao tomar de uma vez a água que
sempre levava à noite para o quarto. Para Eleonora e o marido ele morrera de
repente e assim foi enterrado.
Foi o tempo mais difícil e que ela
lembrava mais fácil, quando os três ficaram sós e ela se submetia, quase com
servidão, aos mandos da irmã que não falava em dividir as terras, igual o pai
fez quando a mãe morreu. Sempre deserdada de carinho. Às vezes, Altino reparava
e tentava bondade com ela. Quase iludida, teve dúvidas no que planejou fazer,
mas fez.
Foi numa noite enluarada, daquelas
que dá gosto ver as estrelas recamadas no céu. Foram dormir tarde. Perpétua
fingiu passar mal e pediu para irmã ficar no quarto com ela naquela noite. Por
insistência de Altino, Eleonora concordou.
Na madrugada, o travesseiro no
rosto da irmã e o corte na garganta não permitiu nenhum grito. No raiar do dia,
pouco se ouviu ele gritar enquanto debatia com o azeite fervendo ouvido a
dentro, escorrendo, e ela falando...
– Adeus meu amor.
Era tão exato o calor queimando os
dois ali no pensamento e tudo que deles tinha o cheiro. Seu olhar, ainda,
refletia aquelas chamas distantes. Enterrados num canteiro de cravos nunca
cuidado, esquecido, debaixo de sua janela, sempre fechada.
Ela cardava o algodão ensimesmada,
triste e calada. Cardava no canto daquela sala antiga, suas lembranças, dor sem
dor, esperando chegar alguém. Olhava distante Beleu brincar com o mosquito na
soleira da porta, esperando naquele mês chegar alguém.
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