quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Padre Inocêncio - MQ


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Foi numa noite fria e úmida, num agosto entrando, as batidas na janela me acordaram, daquele sono de começo de noite. Era o Anésio afobado e tropeçando nas palavras.

 

- Corre, home de Deus, o padre ficou doido, dona Lica mandou chamá na urgência. Corre, que vai acontecer uma disgrama.

 

Mal tive tempo de vestir a roupa, chegou o Onório, com a mesma urgência, se benzendo todo.

 

- O padre ficou doido, não deixa ninguém entrar na igreja. Dona Lica já chamou todo mundo. Ele acabou de rezar a missa e endoideceu, começou atirando as velas acesas no povo que rezava a novena da padroeira, enxotou todo mundo da igreja, fechou a porta e disse que só abre se o compadre for lá.

 

Que sandice era aquela? Por que eu? Mania tinha ele de me chamar para tudo. Às vezes por coisa à-toa lá vinha recado.

 

- O padre pediu p’ro senhor passar na igreja ainda hoje.

 

Chegava lá era só para conversar, falar da festa, da procissão ou qualquer outra coisa à-toa, quase sempre essas conversas acabavam no cigarro que ele me encomendava fazer. Sempre aquela conversa sobre anjos que eu ouvia calado. Coitado do padre Inocêncio. Seria a idade agarrando ele? Pensava, enquanto apressava o passo, deixando Anésio mais Onório para trás.

Lá chegando, a pequena multidão foi abrindo caminho, espaçando, me deixando bater na porta.

 

- Padre Inocêncio, estou aqui.

 

Nenhuma resposta. Num tempo o barulho da matraca manifestou, vindo meio de cima, como se estivesse sendo tocada em cima do andaime que o Zé do Vidro usava para trabalhar.

 

- Padre Inocêncio, sou eu. Abre a porta.

 

O grito veio em seguida.

 

- Arromba, Arcanjo, mas não deixa ninguém, fora você, entrar.

 

Arrombar aquela porta de carvalho, talhada em recortes de formão, com duas polegadas e meia de grossura? Realmente ele não estava no seu juízo. Dei a volta e entrei pela porta lateral, arrombada sem muito esforço.

 

- Padre Inocêncio, onde o senhor está?

 

- Aqui em cima, Arcanjo. Acode aqui, Arcanjo.

 

Padre Inocêncio estava em cima do andaime, com a matraca numa mão e um castiçal com três velas acesas na outra. Encantoava um vulto que, de longe, não distingui, só percebi o contorno na sombra. Era baixo, envergado para frente e estava trepado no alto do altar em construção. A sombra projetada na parede, pela luz tênue do castiçal, só se mexia quando o padre, receoso, tentava chegar mais perto apontando as velas em riste. Nessa hora, o efeito era assustador, o vulto não tinha mais para onde correr, padre Inocêncio dominava a situação.

 

- Arcanjo, é ele, está cercado o anjo ruim, o cão, peguei. Segura a vela e a matraca, não deixa ele escapar que vou buscar os paramentos e a água benta. Peguei ele agachado atrás do altar e tirei todos de dentro da igreja, esse bicho é perigoso, quando falei com ele, não respondeu e foi fugindo, pulando dentro das sombras. 

O padre suava nervoso, demostrando uma agilidade quase impossível na sua idade. Enquanto ele descia do andaime, fiquei vigiando a sombra, espantado, ao mesmo tempo que tentava chegar mais perto para ver se distinguia pelo menos a fisionomia do coisa ruim. Foi no chegar o castiçal mais perto que me espantei mais ainda, o diabo não era o vulto. Nem fugir ele conseguiria, estava mais assustado que padre Inocêncio que já voltava para exorcizar o lugar  com seu latim fluente.

 

- Padre Inocêncio, esse coitado não é o coisa ruim, é o Ditinho da Juvina, ele é surdo-mudo e ruim da idéia, deve de ter fugido da Malhada.

 

Ele fez o pelo sinal enquanto fui ajudando o coitado do Ditinho passar do altar para o andaime. Na porta, arrombada, o povo espiava de soslaio o medo com que o pobre diabo olhava o padre Inocêncio recolher a matraca num silêncio todo.

 
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